Trigo de Deus
Versão para cópiaTRIGO DE DEUS
Aqueles eram dias semelhantes a estes.
O poder temporal galopava o ginete das ambições desmedidas, submetendo povos e nações ao talante das suas arbitrariedades.
A criatura humana, despojada dos direitos legais, embora triunfasse por um dia no fausto e na glória, noutro, vencida pelas guerras cruentas e incessantes, passava à condição servil, valendo menos que um animal de carga.
Os valores éticos, desconsiderados, estabeleciam o caos nos relacionamentos individuais e comunitários, facultando a hediondez e a predominância do egoísmo, que favoreciam o orgulho vil, conduzindo as criaturas sob terríveis inquietações.
Dominavam a suspeita sistemática e a desconsideração moral, permitindo que os ideais da Humanidade fossem manipulados pelas conjunturas políticas odientas, que levavam aos escombros as construções espirituais e filosóficas do passado.
A Terra era, então, uma imensa seara, na qual o trigo se encontrava mirrado, vencido pelo escalracho destruidor.
A fome, a doença, a viuvez e a orfandade desvalidas davam-se as mãos, a fim de disputarem os cadáveres e se nutrirem dos restos, que devoravam como chacais, e lhes eram destinados pelos ricos, nos arredores das cidades, além dos muros...
Mas hoje ainda permanece quase tudo assim.
Mudaram as épocas, aumentaram as populações, e prosseguem quase as mesmas causas da miséria, que é filha dileta do egoísmo e da avareza de alguns poucos homens, como ocorria naqueles tempos.
Foi nessa paisagem que Jesus veio apresentar a Doutrina de amor, propondo uma Nova Ordem fundamentada na solidariedade fraternal.
Todo o Seu empenho centrou-se na transformação moral da criatura terrestre, que deveria considerar como essencial a sua destinação espiritual, portanto, eterna.
Abrindo a boca e os braços, Ele cantou a música sublime das bem-aventuranças, conclamando todos os seres a irem na Sua direção, pois que os albergaria no seio generoso.
Seu poema incomum tomou das coisas simples e transformou-as em diamantes estelares, como ninguém o fez com tanta eloqu
̈ência.
Realizou mais do que anunciou; falou e comoveu as multidões; porém, foi mais importante o que não enunciou; poderoso, tornou-se frágil, e sábio, apresentou-se comum, a fim de melhor fazer-se entender, vivendo quase anônimo ao lado daqueles que O não podiam identificar...
Presciente, aguardava os acontecimentos com naturalidade, negando-se às profecias atemorizantes e perturbadoras.
A Sua Boa Nova é toda uma cascata de luz e de alegria, prenunciando a vitória da vida sobre a morte, do bem sobre o mal, da bondade sobre a perversidade...
O trigo bom da Sua palavra, lentamente, foi-se generalizando na gleba imensa, enquanto a erva má era arrancada e levada à fogueira.
Depois dEle, quando o incêndio do amor tomou conta das vidas e os mártires se levantaram para glorificá-10, colocando sobre os ombros as cruzes dos testemunhos 1nácio de Antioquia, Seu discípulo, denunciado e condenado, antes de seguir a Roma para o holocausto, declarou:
— Sou trigo de Deus e desejo ser triturado e os dentes das feras devem moer-me, para que possa ser oferecido como limpo pão de Cristo.
Recusou o apoio dos amigos influentes na capital do Império, porquanto a sua maior ambição era a doação total, recordando o seu amado Crucificado, cujo madeiro lhe pesava sobre os ombros.
... E desde então, a aceitação do Evangelho unia à pessoa o martírio futuro.
Hoje, ainda permanece assim.
As cruzes mudaram de forma e as suas traves são invisíveis; a fogueira é interior e o circo aumentou as dimensões alcançando todo o planeta...
Fidelidade a Jesus torna-se auto-imolação com o sacrifício da renúncia.
O escárnio mal disfarçado e o menosprezo dos vitoriosos no mundo atiram suas pechas depreciativas naqueles que amam por Jesus e por Ele vivem.
Nem sempre são aceitos nas altas rodas, senão como personalidades singulares, estranhas, merecedoras da curiosidade e, logo depois, do desdém.
Podem chamar a atenção por um instante como exóticos, raramente, porém, recebem respeito e poucas vezes são tidos como honrados, mesmo que homenageados por um momento.
E natural que assim aconteça, e eles o sabem, porque o reino, pelo qual anelam, não é deste mundo.
Vive-se a hora da grande transição, e as sombras que se adensam, logo mais, serão diluídas pelo Sol do Novo Tempo.
O trigal estua na gleba terrestre, mas pouco é o trigo de Deus.
Examinamos e revimos alguns episódios da vida de Jesus naqueles memoráveis dias e os reunimos neste modesto livro, para estimular aqueles que O amam, chamar a atenção de quem não se interessa por Ele, ensejar reflexões cuidadosas nas almas que cultivam as Suas lições...
São revistas pela nossa óptica pessoal, como resultado de comentários e apontamentos que recolhemos em nossa Esfera de ação espiritual, tentando participar do esforço dos cristãos-espíritas interessados em reviver o Mestre, no seu dia a dia, quando se indagam: — Nesta situação e circunstância em que me encontro, como faria Jesus?
São também recordações de que nos encontramos impregnada e que repassamos aos puros de coração, aos pobres de espírito, aos simples e desataviados, objetivando comer com eles o pão feito com o trigo de Deus.
Salvador, 30 de dezembro de 1992.
Amélia Rodrigues
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