No mundo maior

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Capítulo XV

Apelo cristão


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Estavam prestes a terminar minhas possibilidades de estudo, em companhia de Calderaro, quando, na véspera da prometida visita às cavernas do sofrimento, o estimado Assistente me convidou a ouvir a palavra do Instrutor Eusébio que, naquela noite, se dirigiria a algumas centenas de companheiros católicos-romanos e protestantes das Igrejas reformadas, ainda em trânsito nos serviços da Esfera carnal.

— São irmãos menos dogmáticos e mais liberais que, em momentos de sono, se tornam suscetíveis de nossa influência mais direta. Pelas virtudes de que são portadores, tornam-se dignos das diretrizes dos Planos mais altos.

Não ocultei a estranheza que me tomara de assalto ante a informação, mas Calderaro ajuntou sem demora:

— Importa compreender que a Proteção Divina desconhece privilégios. A graça celestial é como o fruto que sempre surge na fronde do esforço terrestre: onde houver colaboração digna do homem, aí se acha o amparo de Deus. Não é a confissão religiosa que nos interessa em sentido fundamental, senão a revelação de fé viva, a atitude positiva da alma na jornada de elevação. Claro é que as escolas da crença variam, situando-se cada uma em um círculo diferente. Quanto mais rudimentar é o curso de entendimento religioso, maior é a combatividade inferior, que traça fronteiras infelizes de opinião e acirra hostilidades deploráveis, como se Deus não passasse dum ditador em dificuldades para manter-se no poder. Constituindo o Espiritismo evangélico prodigioso núcleo de compreensão sublime, é razoável seja considerado uma escola cristã mais elevada e mais rica. Possuindo tamanhas bênçãos de conhecimento e de amor, cumpre-lhe estendê-las a todos os companheiros, ainda quando esses companheiros se mostrem rebeldes e ingratos em consequência da ignorância de que ainda não conseguiram afastar-se. A compaixão de Jesus poderia ser medida pelo estado de evolução daqueles que o seguiam de perto. Diante da mente encarcerada no vaidoso intelectualismo de muitas personalidades importantes de sua época, vemo-lo inflamado de energia divina; pelo contrário, em Jerusalém, no último dia, à frente do populacho exaltado e ignorante, arraigado embora aos princípios da crença, encontramo-lo silencioso e humilde, solicitando perdão para quantos o feriam.

Imprimindo inflexão mais carinhosa à palavra, acrescentou, bondoso:

— Não nos esqueçamos que, acima de tudo, nos empenhamos numa obra educativa. Salvar alguém, ou socorrê-lo, não significa subtrair o interessado à oportunidade de luta, de alçamento ou de edificação. Constitui amparo fraternal, para que desperte e se levante, entrando na posse do equilíbrio que caracteriza aquele que o ajudou. O Supremo Senhor não se compraz com o possuir filhos miseráveis e infelizes na Criação; espalha bênçãos e dons, riquezas e facilidades eternas a mancheias, esperando apenas que cada um de nós se disponha a reger com sabedoria o patrimônio próprio. Como vemos, todos os setores do serviço espiritual reclamam a divina assistência.

Antes de mais amplas elucidações referente ao assunto, alcançamos o campo tranquilo, onde o nobre emissário se fazia ouvir.

De relance, observei que a reunião, agora, não se assinalava por grande número de colegas encarnados, que ali se contavam por poucas centenas, assistidos por quantidade considerável de cooperadores da nossa Esfera de ação.

O luar balsamizava docemente o arvoredo, que se inclinava à passagem do favônio.

Imponente, pela claridade sublime que lhe aureolava a figura veneranda, Eusébio, ao que me pareceu, havia iniciado a preleção desde muito. Extasiados, os ouvintes registravam-lhe o verbo tocado de luz celestial, com pasmo indisfarçável a lhes alterar as fisionomias. Confundidos e ajoelhados, em grande número, na relva fresca, sentiam-se repentinamente transportados ao paraíso…


O Instrutor, envolvido em safirinos reflexos, falava com irresistível poder de atração:

— “Se o patrimônio da fé religiosa representa o indiscutível fator de equilíbrio mental do mundo, que fazeis de vosso tesouro, esquecendo-lhe a utilização, numa época em que a instabilidade e a incerteza vos ameaçam todas as instituições de ordem e de trabalho, de entendimento e de construção? Não vos assombra, porventura, acordando-vos a consciência, a borrasca renovadora que refunde princípios e nações? Supondes possível uma era de paz exterior, sem a preparação interior do homem no espírito de observância e aplicação das Leis Divinas? Por admitir semelhante contrassenso, a máquina, filha de vossa inteligência, vos anula as possibilidades de mais alta incursão no reino do Espírito Eterno.

“Ser cristão, outrora, simbolizava a escolha da experiência mais nobre, com o dever de exemplificar o padrão de conduta consagrado pelo Mestre Divino. Constituía ininterrupto combate ao mal com as armas do bem, manifestação ativa do amor contra o ódio, segurança de vitória da luz contra as sombras, triunfo inconteste da paz construtiva sobre a discórdia derruidora.

“Ante o moloque do Estado Romano, convertido em imperialismo e corrupção, os sectários do Evangelho não se expunham a polêmicas mordazes, não se enredavam nas teias do personalismo dissolvente, não dilapidavam possibilidades preciosas, a erigir fronteiras dogmáticas… Entreamavam-se em nome do Senhor, e ofereciam a própria vida, em penhor de gratidão Àquele que não trepidava em seguir para a Cruz, por amor a todos nós. Erguiam os seus mais sublimes santuários na comunhão com os princípios santificantes que os identificavam com o Salvador do Mundo. Sabiam perder vantagens transitórias, para conquistar os imperecíveis tesouros celestiais. Sacrificavam-se uns pelos outros, na viva demonstração do devotamento fraternal. Repartiam os sofrimentos e multiplicavam os júbilos entre si. Morriam em testemunhos angustiosos, para alcançar a vida eterna. Guerreavam os desequilíbrios de sua época e de seus contemporâneos, não a golpes de maldição, nem a fio de espada, mas pela prática da renunciação, submetendo-se a disciplinas cruéis e revelando, nas palavras, nos pensamentos e nos atos, a mensagem sublime do Mestre que lhes renovara os corações.

“Entretanto, herdeiros que sois daqueles heróis anônimos, que transitaram nas aflições, de espírito edificado nas promessas do Cristo, que fizestes vós da esperança transformadora, da confiança sem vacilação? Onde colocastes a fé viva que os vossos patriarcas adquiriram a preço de sangue e de lágrimas? Que é do espírito de fraternidade que assinalava os aprendizes da Boa-Nova? Enriquecidos pelas graças do Céu, pouco a pouco olvidastes as portas da Revelação Divina em troca das comodidades humanas.

“Construístes, entre vós mesmos, barreiras dificilmente transponíveis.

“Intoxica-vos o dogmatismo, corrompe-vos a secessão. Estreitas interpretações do Plano divino vos obscurecem os horizontes mentais.

“Abris hostilidade franca, em nome do Reino de Deus que significa amor universal e união eterna.

“Conspurcais a fonte das bênçãos, amaldiçoando-vos uns aos outros, invocando, para isso, o Príncipe da Paz, que, para ajudar-nos, não hesitou ante a própria morte afrontosa.

“A que delírio chegastes, estabelecendo mútua concorrência à imaginária obtenção de privilégios divinos?

“Antigamente, os companheiros do Cristo disputavam a oportunidade de servir; no entanto, na atualidade, procurais as mínimas ocasiões de serdes servidos.

“Reverenciais no Senhor a Luz dos Séculos, e mantendes-vos nas sombras do nefando egoísmo.

“Proclamais n’Ele a glória da paz, e incentivais a guerra fratricida, em que homens e instituições se trucidam reciprocamente.

“Recorreis ao Divino Mestre, centralizando em sua infinita bondade a fonte inesgotável do amor; entretanto, cultivais a desarmonia no recôndito do ser.

“Por que estranhas convicções supondes conquistar o paraíso, à força de afirmativas labiais?

“Esquecestes que o verbo, divino em seus fundamentos, é sempre criador? Como admitir a redenção ao preço de simples palavras a que nenhum significado objetivo emprestais pelas atitudes?

“Todavia, é imperioso reconhecer o caráter sublime de vossa tarefa no mundo.

“Jesus fundou a Religião do Amor Universal, que os sacerdotes políticos dividiram em várias escolas orientadas pelo sectarismo injustificável. Mau grado esse erro lastimável dos homens, a essência dos vossos princípios é aquela mesma que sustentou a coragem e a nobreza dos trabalhadores sacrificados nos primeiros dias do Cristianismo.

“Porque alguns missionários das verdades religiosas olvidassem a Paternidade Divina e se permitissem desmandos da autoridade, preferindo a opressão e a tirania, não sois menos responsáveis, agora, pelos sagrados depósitos que Jesus nos confiou, destinados aos serviços de elevação humana e de santificação da Terra.

“O Evangelho, em suas bases, guarda a beleza do primeiro dia. Sofisma algum conseguiu empanar o brilho de “amai-vos uns aos outros, como eu vos amei”… (Jo 15:12)

“Perante os desafios do Céu, credes, acaso, servir a Deus, encarcerando os serviços da fé nos templos suntuosos? A pompa do culto exterior só faz realçar o desatino de vossas perigosas ilusões acerca da vida espiritual.

“Infrutífera seria a divina missão do Mestre, se a Boa-Nova permanecesse circunscrita às trincheiras sectárias, onde presunçosamente vos refugiais, com o objetivo de inflamar a execranda fogueira das hostilidades simuladamente cordiais.

“Não encontrastes outra fórmula de externar a crença, além da concorrência menos digna?

“Em vão ergueis castelos de opinião para o verbalismo sem obras, porque, se a morte surpreende o materialista revel, descortinando-lhe o realismo da vida, o túmulo abre também o tribunal da reta justiça a quantos se valeram da religião para melhor dissimular a indiferença que lhes povoa o mundo íntimo.

“Não julgueis esteja a fé consagrada ao menor esforço.

“Qual ocorre à ciência, a religião tem o seu trabalho específico no mundo. Força equilibrante do pensamento, seus servidores são chamados a colaborar na harmonia da mente humana.

“Na atuação da fé positiva reside a força reguladora das paixões, dos impulsos irresistíveis da animalidade de que todos emergimos no processo evolucionário que nos preside à existência.

“Jesus, por isto, não confinou seus ensinamentos ao círculo estreito dos templos de pedra… Reverenciou, em verdade, os monumentos que recordassem os “lugares santos da oração”, consagrados às manifestações superiores do espírito; entretanto, não se cristalizou nas atitudes adorativas: viveu conquistando amigos para o Reino do Céu.

“Não impôs aos seus seguidores normas rígidas de ação: pedia-lhes amor e entendimento, fé sincera e bom ânimo para os serviços edificantes.

“Aproximando-se de Madalena, não extravaga em baldas conversações: interessa-lhe o coração no sublime apostolado renovador. Visitando Zaqueu, abençoa-lhe o esforço nobre e construtivo. Dirigindo-se à mulher samaritana, não desce às contendas inúteis: impressiona-a pelo contato de sua alma divina, fazendo-a abandonar o velho cântaro da fantasia, para que busque as fontes eternas. Convivendo com cegos e leprosos, loucos e doentes de todos os matizes, exemplificou a vida social, baseada na fraternidade mais pura e nos mais elevados estímulos à santificação. Por fim, imolado na cruz, seus dois últimos companheiros eram ladrões confessos, aos quais não hesitou dirigir a palavra fraterna, inflamada de amor.

“Como invocar-lhe a nome para justificar os desvarios da separação por motivos de fé? Como apoiar-se no Amigo de Todos para deflagrar embates de opinião, acendendo fogueiras de ódio em prejuízo da solidariedade comum que Ele exemplificou até ao supremo sacrifício? Não será denegrir-lhe a memória, difundir a discórdia em seu nome?”

Notei que as palavras do orientador provocavam funda impressão. A maioria dos ouvintes chorava em comoção irrepressível, sentindo-se tocada pelo Juízo Celeste.

Eusébio, que mantinha presa a atenção geral, prosseguiu, impávido:

— “Não se vos reclama a transferência do depósito espiritual da crença veneranda. Em todos os setores, onde a sementeira do Cristo desabrocha, é possível honrar a Divina Lei, gravando-lhe os parágrafos sublimes no coração. O que se pede do vosso espírito de crença é o aproveitamento das bênçãos celestiais esparzidas sobre vós em caudalosas correntes de luz.

“Não limiteis, portanto, a demonstração da confiança no Altíssimo aos cerimoniais do culto externo. Varrei a indiferença que vos enregela as basílicas suntuosas. Convertamo-nos em verdadeiros irmãos uns dos outros. Transformemos a igreja no doce lar da família cristã, quaisquer que sejam as nossas interpretações. Esqueçamos a falsa afirmativa de que os tempos apostólicos passaram para sempre. Cada aprendiz do Evangelho guarda, na própria vida, um reduto destinado ao culto vivo do Divino Mestre, perante o qual escoa a multidão dos necessitados, todos os dias…

“Amando e socorrendo, crendo e agindo, Jesus amparou a mente desequilibrada do mundo greco-romano, infundindo-lhe vida nova, em favor da Humanidade mais feliz. Assim, igualmente, cada discípulo da fé redentora pode e deve cooperar no reerguimento dos irmãos frágeis e vacilantes.

“Fugi ao farisaísmo dos tempos modernos que se recusa ao auxílio fraternal, em nome do gênio satânico do cisma dogmático. Jesus nunca foi pregador da desarmonia, jamais endossou a vaidade petulante dos que pelos lábios se declaram puros, mantendo o coração atascado no lodo miasmático do orgulho e do egoísmo fatais!

“Mobilizemos nossa confiança no Todo-Misericordioso, dilatando-lhe o reino bendito de redenção.

“Aguardar o Céu, menosprezando a Terra, é obra de insensatez.

“Nenhum de nós peitará a Justiça Divina, embora permaneçais cultivando, muitas vezes, a ideia de um comércio ridículo com a Divindade.

“Se um lavrador jamais é postado sem obrigações diretas diante do matagal inculto ou do pântano perigoso, como permanecer sem deveres imediatos junto às paisagens de crime e treva, de inquietação e sofrimento?!…

“O irmão caído é nossa carga preciosa, a dificuldade é nosso incentivo santo, a dor nossa escola purificadora.

“Abracemo-nos, pois, uns aos outros, em nome do Cordeiro de Deus, que nos reformou a mente, alçando-a a Planos superiores pela ascensão gloriosa, através do sacrifício.

“Somente assim, meus amigos, é possível atender à elevada destinação que nos cabe.

“Diante do mundo periclitante, alucinado por ambições rasteiras e dominado pelo ódio e pela miséria, sequências das guerras incessantes e aniquiladoras, harmonizemo-nos em Jesus-Cristo, a fim de equilibrarmos a Esfera carnal.

“Sombras perturbadoras vagueiam em torno de vossos passos e de vossas instituições, em ronda sinistra.

“Evitai a subversão dos valores espirituais, afugentai as trevas que vos ameaçam as organizações político-religiosas. Temei a ciência que estadeie sem a sabedoria, livrai-vos do raciocínio que calcula sem amor, revisai a fé para que seus impulsos não se desordenem, à míngua de edificação.

“A Crosta da Terra é atualmente um campo de batalha mais áspera, mais dolorosa…

“Despertai a consciência adormecida e afeiçoai-vos à Lei Divina, olvidando o cativeiro multissecular da ilusão.

“A salvação é contínuo trabalho de renovação e de aprimoramento.

“Ao mundo atormentado proclamemos a nossa fé em Cristo Jesus para sempre!…”


Eusébio, ao terminar, estava aureolado de prodigiosas emissões de luz.

A assembleia prosternada mostrava semblantes lívidos de estupefação.

Enorme grupo de colaboradores de nosso Plano elevou a voz em harmonias, entoando comovente cântico de glorificação ao Supremo Senhor.

As melodiosas notas do hino perdiam-se, ao longe, no arvoredo distante, nas asas de suave brisa…

Terminados os serviços da reunião, reparei que os amigos encarnados, sob o amparo de colegas das nossas atividades socorristas, não se afastaram animados e otimistas, porque muitos deles, compreendendo, talvez com mais clareza, fora do veículo denso da experiência física, os erros da crença transviada, se retiravam cabisbaixos, soluçando…




[No há a descrição de outra reunião, no mesmo recinto natural.]



André Luiz
Francisco Cândido Xavier


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João 15:12

O meu mandamento é este: Que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei.

jo 15:12
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