No mundo maior
Versão para cópiaNo Lar de Cipriana
Encerrada a semana de estudos que me propusera e guardando valores novos no espírito, acompanhei Calderaro, em pleno crepúsculo, à benemérita fundação nas zonas inferiores, a que o Assistente chamara “Lar de Cipriana”.
Extremamente perplexo, ante o problema que me demandava a atenção, qual o de reencontro inesperado com meu avô, não me sobravam, agora, motivos para longas perquirições de ordem filosófico-científica junto à privilegiada cultura do instrutor, prestes a despedir-se.
A pesquisa cedera lugar à meditação, o raciocínio ao sentimento. Recolhera extenso material referente às manifestações da mente, obtendo valiosas conclusões para definir os desequilíbrios da alma; examinara diversos doentes, com os quais travara relações; identificara moléstias cujas causas se prendiam às mais profundas e menos conhecidas raízes do espírito; entre as novidades, porém, encontrara um enfermo que me transferira, da ardente curiosidade intelectual às acuradas reflexões no tangente ao destino e ao ser.
Reconhecia, agora, que, para conseguir a sabedoria com proveito, era indispensável adquirir amor.
Naqueles instantes, calavam em meu ser as perguntas inquietas, sofreadas pelo coração dolorido.
Poderia, em verdade, ter avançado muito no domínio dos conhecimentos novos, conquistado simpatias prestigiosas, renovado as concepções da vida e do Universo, melhorando-as; no entanto, de que me valeriam semelhantes troféus, se me não fosse possível socorrer um benfeitor em dificuldade?
De pensamento fixo na surpreendente questão da hora, cheguei, em companhia de Calderaro, à enorme instituição em que Cipriana administrava o constante benefício de seu devotamento fraternal.
Tratava-se, a meu ver, de casa socorrista diferente de quantas conhecia; parecia grande centro de trabalho propriamente terrestre.
A maioria dos companheiros que aí se agitavam não eram portadores de luminosa expressão, mas típicas personalidades humanas em processo regenerador. Com exceção de Cipriana e dos assessores que lhe compunham o séquito, a comunidade, não pequena, era formada de criaturas evidentemente inferiores: homens e mulheres análogos, no aspecto, aos que povoam os Círculos carnais.
Como acontecia habitualmente, Calderaro me veio em auxílio, esclarecendo:
— Irmã Cipriana idealizou este amorável reduto de restauração espiritual, e concretizou-o, usando os próprios irmãos sofredores e perturbados que vagueiam nas regiões circunvizinhas.
É claro que não reside sistematicamente aqui; todavia, neste colégio regenerador passa grande parte do tempo, que consagra ao seu ministério santificante nas Esferas de baixo nível de evolução. No fundo, a organização funciona, sob a vigilância dos próprios companheiros que vão melhorando. Trata-se, pois, de importante escola de reajustamento anímico, de auto-reconhecimento e de preparação, para indivíduos de boa vontade. Nossa benemérita amiga iniciou a obra e tornou-se-lhe provedora fidelíssima. Contudo, o instituto é de região inferior para criaturas que desejem melhorar suas condições de existência. Educandário de trânsito, sob a ação direta dos que dele colhem proveito, passou, destarte, a valioso núcleo de instrução e de amparo. Individualidades libertas da carne, em penosas condições íntimas nos setores do conhecimento, aqui recebem precioso concurso, a fim de se readaptarem convenientemente à vida.
Grupos diversos de mediana condição dirigiam-se para um edifício ao centro da vastíssima organização, no qual adivinhei o templo votado à prece.
Muitos companheiros se encaminhavam céleres, conversando, ao nosso lado. Havia ali tanta gente alegre e tanta gente preocupada, como em qualquer via pública de grande cidade no Plano denso; tive a impressão de que visitávamos enorme universidade, situada em clima sombrio.
Embora, quanto ao aspecto, fossem distintos entre si, quer os pequenos, quer os numerosos ajuntamentos de irmãos, que aí se moviam, eram idênticos uns aos outros pela nota viva de esperança, que a todos luzia no olhar percuciente. Quantos se nos deparavam, exibiam atitude iniludível de trabalho e de renovação; ainda mesmo os aleijados e doentes que aí estacionavam, em grande número, mostravam disposições de otimismo transformador.
— A venerável instrutora, — prosseguiu, benévolo, o Assistente, — montou aqui verdadeira oficina de restauração do espírito. Antigos expoentes do orgulho que entre os homens se engrimponavam na vaidade e no crime, depois de bastos anos de purgação, e ao demonstrarem propósitos reedificantes, são recolhidos a esta casa, onde reorganizam sentimentos e cabedais, a caminho do porvir. Daqui, como de outras instituições do mesmo gênero, localizadas em plenas regiões expiatórias, saem inúmeras reencarnações retificadoras. O programa fundamental de Cipriana é o esquecimento do mal com a valorização permanente do bem, à luz da esperança em Deus. A princípio, a organização custou-lhe muitos sacrifícios, em matéria de tempo e de direito que lhe mereciam os méritos pessoais; no transcurso dos anos, porém, elementos por ela mesma formados passaram a superintender a obra e a conservá-la.
Ponderava eu a bondade e a sabedoria daquela estrênua missionária, pronta a todo serviço de colaboração superior, recordando meu próprio caso ante meu demente avô emaranhado nas sombras, quando penetramos o santuário, onde sua voz se faria ouvir na oração. Cercavam-na diversas criaturas que lhe eram conhecidas.
Um cavalheiro, visivelmente confortado, dizia-lhe, reverente:
— Seguindo-lhe os conselhos 1rmã, não mais senti pesadelos. Renovei minha atitude para com os familiares: passei a cooperar, ao invés de combater.
— Agora, sim! — Exclamou Cipriana, satisfeita; — o bem duradouro é filho da colaboração fraternal. Você verá quão sensível diferença para sua felicidade se verificará em torno de seus passos.
— Irmã, — falou-lhe simpática senhora, — minha situação é outra. Agora, reparo que o mundo não foi edificado para mim, e que me cumpre a obrigação de trabalhar em benefício do mundo.
A respeitável interlocutora estampou bela expressão fisionômica e observou:
— Seu progresso é visível. O esquecimento de nossos caprichos pessoais dilata-nos a compreensão.
Trêmulo velhinho, com todas as características de recém-desencarnado, dirigiu-se a ela, de olhos rasos d’água.
— Irmã, — balbuciou, triste, — ainda experimento os antigos achaques. Há instantes em que me sinto cair, perdendo a noção de mim mesmo, para despertar em seguida, aflito…
A orientadora acariciou-o, discreta, encorajando-o:
— É natural. Esteja, porém, convicto de que a situação melhorará. Gastamos, às vezes, anos, armazenando impressões que naturalmente não se esvaem nalguns dias.
Outros companheiros se aproximavam com o evidente intuito de ouvi-la, mas, notando-nos a presença, veio, sorridente, até nós, informando, obsequiosa:
— André, o problema de nosso enfermo já foi providenciado, em todas as particularidades suscetíveis de solução imediata. Cláudio demorar-se-á no até que se apresente em condições de mudança para nosso instituto regenerativo. Aqui se preparará convenientemente para o retorno aos Círculos carnais. Tudo se processará com a harmonia desejável. Além disto, nossos cooperadores estão instruídos quanto ao auxílio que devemos a Ismênia para a concretização de seus ideais.
Agradeci, confundido e sensibilizado, rendendo graças a Deus. Nosso entendimento não se prolongou. O sinal da oração chamava-nos ao alegre e doce dever.
Cipriana, assumindo a direção da prece, fez-se acompanhar pelos colaboradores diretos que a seguiam no momento.
De alma genuflexa, vi-a de olhos erguidos para o alto, de onde jorrava intensa luz sobre a sua fronte… Do tórax, do cérebro e das mãos brotavam radiosas emissões de força divina, das quais ela se constituía visível intermediária para nós todos.
Alcançados pelos fulgurantes raios que fluíam de Esfera superior através de sua personalidade sublime, sentíamo-nos embalados por indizível suavidade…
Harmonioso coro de uma centena de vozes bem afinadas cantou inolvidável hino de louvor ao Supremo Pai, arrancando-me copiosas lágrimas.
Logo após, a palavra comovente da instrutora vibrou no ambiente, exorando a proteção do Cristo:
Senhor Jesus, Permanente inspiração de nossos caminhos, Abre-nos, por misericórdia, Como sempre, As portas excelsas De tua providência incomensurável… Doador da Vida, Acorda-nos a consciência Para semearmos ressurreição Nos vales sombrios da morte; Distribuidor do Sumo Bem, Ajuda-nos a combater o mal Com as armas do espírito; Príncipe da Paz, Não nos deixes indiferentes À discórdia Que vergasta o coração De nossos companheiros sofredores; Mestre da Sabedoria, Afugenta para longe de nós A sensação de cansaço À frente dos serviços Que devemos prestar Aos nossos irmãos ignorantes; Emissário do Amor Divino, Não nos concedas paz Enquanto não vencermos Os monstros da guerra e do ódio, Cooperando contigo, Em tua augusta obra terrestre; Pastor da Luz Imortal, Fortalece-nos, Para que nunca nos intimidemos Perante as angústias e desesperos das trevas; Distribuidor da Riqueza Infinita, Supre-nos as mãos Com teus recursos ilimitados, Para que sejamos úteis A todos os seres do caminho, Que ainda se sentem minguados De teus dons imperecíveis; Embaixador Angélico, Não nos abandones ao desejo De repousar indebitamente, E converte-nos Em teus servidores humildes, Onde estivermos; Mensageiro da Boa Nova, Não permitas Que nossos ouvidos adormeçam Ao coro dos soluços Dos que clamam por socorro Nos círculos do sofrimento; Companheiro da Eternidade, Abençoa-nos as responsabilidades e deveres; Não nos relegues à imperfeição De que ainda somos portadores! Dá-nos, armado Jesus, o favor de servir-Te E que o Supremo Senhor do Universo Te glorifique Para sempre. Assim seja!… |
Fizera-se resplandecente o recinto do santuário. Vi, então, através do espesso véu de lágrimas que me assomavam aos olhos, que maravilhosa coroa de brilhantes evanescentes cintilou, por instantes, na cabeça venerável daquela missionária do bem, como se ali fora instantaneamente colocada por mãos invisíveis…
Encerrada a reunião, Cipriana, com admirável simplicidade, veio despedir-se de mim.
Porque não dizer? Tinha meus olhos velados de pranto, desejaria segui-la como filho reconhecido para sempre, tais a sabedoria e o amor que lhe transbordavam do espírito glorificado.
Calderaro foi o primeiro a abraçar-me, fazendo votos de boa viagem, a que não pude responder, sufocado pela intensa comoção. Os demais companheiros saudaram-me, enternecidos, e, por fim, Cipriana apertou-me ao peito, beijou-me maternalmente, e disse com olhos úmidos:
— Que o Pai te abençoe. Nunca te esqueça a bondade no desempenho de qualquer obrigação.
E talvez porque me visse tão fundamente sensibilizado, acrescentou:
— Estaremos unidos pelo espírito.
Desvencilhei-me dos seus braços com as saudades do filho, em cujo santuário interior jamais se extingue a chama da gratidão.
De volta, agora, aos trabalhos que me aguardavam, solitário e comovido, aspirei os perfumes da noite clara que se povoava de prodigiosas mensagens dos astros coruscantes…
— Misericordioso Senhor, — supliquei, mentalmente, — digna-Te abençoar o verme que eu sou!…
Tive a impressão de que meu coração pulsava, túmido, dentro do peito. À frente dos meus olhos faiscavam constelações, indicando gloriosos destinos, no futuro infindável…
E ponderando, em silêncio, a grandeza de Deus, verti copioso pranto de júbilo, dando guarida às intraduzíveis sensações que me invadiam a alma, extasiada e feliz sob nova esperança!
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