Libertação

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Capítulo XIII

Convocação familiar


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Alcançando a grande residência em que Margarida descansava, antes de nos instalarmos de novo junto à enferma, Gúbio, assistido agora pelo enorme respeito de Saldanha, dirigiu-lhe a palavra, examinando a oportunidade de conversarmos com o juiz e analisar a situação da filhinha de Jorge, ali refugiada.

O magistrado residia com os parentes na ala central do vasto edifício de que Gabriel e a esposa usavam pequena dependência. Até então, não lhe havíamos atingido a zona domiciliar.

— É possível, — informou o nosso Instrutor, — promovermos benéfica reunião, convocando alguns encarnados a possível ajuste. O juiz, certamente, dispõe de alguma peça em que possamos permanecer congregados por alguns minutos.

Saldanha concordou, através de monossílabos, ao modo do aprendiz que se vê na obrigação de aderir, indiscriminadamente, ao mestre.

— A noite é propícia, — prosseguiu o Instrutor, prestativo e simples, — e atravessamos os primeiros minutos da madrugada.

Entramos, respeitosos, mas confesso que o sono do magistrado não poderia ser tão calmo quanto desejaria, em virtude do grande número de entidades sofredoras que lhe batiam às portas internas. Algumas rogavam socorro em altos brados. A maioria reclamava justiça.


Dispúnhamo-nos a visitar os aposentos particulares do dono da casa, quando um rapaz encarnado nos surge à frente, cauteloso, deslocando-se a caminho do pavimento inferior.

Saldanha tocou, de leve, o braço de Gúbio e notificou:

— Este é Alencar, irmão de Margarida e perseguidor de minha neta.

— Vejamo-lo, — exclamou o interpelado, alterando-nos a direção.

Seguimos o jovem, que nem de longe conseguiria registrar-nos a presença, e observamos que, após descer alguns degraus, se postava à entrada de compartimento modesto, tentando forçá-la.

Em torno, inalava-se-lhe o hálito viciado, percebendo-se que o jovem procedia de grandes libações.

— Todas as noites, — comentou Saldanha, preocupado, — procura abusar de nossa pobre menina. Não tem o mínimo respeito a si mesmo. Reparando a resistência de Lia, estende os processos de perseguição, com ameaças diversas, e acredito que, se ainda não atingiu os fins indignos para os quais se orienta, é porque permaneço a postos, agindo na defesa com a brutalidade que me é característica.

Notamos, admirados, o tom de humildade que transparecia das palavras do vigoroso verdugo.

Saldanha ressurgia visceralmente transfigurado. A consideração que dispensava a Gúbio dava-nos conhecimento da súbita transformação que nele se operara. Mostrava compreensão e doçura nos gestos reverentes.

Ouvindo-o, nosso orientador, sem qualquer alarde de superioridade, concordou:

— Efetivamente, Saldanha, este rapaz se revela possuído de forças degradantes e precisa colaboração enérgica que o auxilie a buscar higiene mental.

Em seguida, atentamente, ministrou-lhe passes magnéticos nos órgãos visuais.

Escoados alguns minutos, Alencar retirou-se, algo cambaleante, para a câmara de dormir, de pálpebras semicerradas, acreditando Saldanha que alguma enfermidade inofensiva, por alguns dias, a partir daquela hora, o ajudaria a meditar nos deveres do homem de bem.

O obsidente de Margarida demonstrava indisfarçável contentamento.


Logo após, em companhia de nosso devotado orientador, passamos ao apartamento privado do juiz.

O magistrado se mantinha de corpo repousado sobre o colchão macio, mostrando, contudo, a mente inquieta, flagelada.

Permitiu Gúbio que eu lhe tocasse a fronte, auscultando-lhe os pensamentos mais profundos.

Naquela hora avançada da noite, o encanecido cavalheiro meditava: “Onde estariam centralizados os supremos interesses da vida? Onde a ambicionada paz espiritual que não conquistara em mais de meio século de experiência ativa na Terra? Porque arquivava no coração os mesmos sonhos e necessidades do homem de quinze anos, quando ultrapassara já os sessenta? Crescera, estudara, casara-se. Todas as lutas, no fundo, não lhe haviam modificado a personalidade. Conquistara os títulos que assinalam no mundo os sacerdotes do direito e, por centenas de vezes, envergara a toga para julgar processos difíceis. Proferira sentenças inúmeras e tivera nas mãos, sob o próprio desígnio, a destinação de muitos lares e de coletividades inteiras. Recebera homenagens de pobres e ricos, grandes e pequenos, nos transcurso da viagem pelo encapelado mar da experiência terrestre em face da posição que desfrutava no ataviado barco do tribunal. Respondera a milhares de consultas em casos de harmonia social, mas, na vida íntima, singular deserto lhe povoava a alma toda. Sentia sede de fraternidade com os homens; todavia, a posse do ouro e a eminência na atividade pública impunham-lhe grandes obstáculos para ler a verdade na máscara dos semelhantes. Experimentava intraduzível fome de Deus. No entanto, os dogmas das religiões sectárias e as discórdias entre elas, afastavam-lhe o espírito de qualquer acordo com a fé atuante no mundo. Por outro lado, a ciência comum, negativista e impenitente, ressecara-lhe o coração. Toda a existência se resumiria a simples fenômenos mecânicos dentro da natureza? Adotada essa hipótese, toda a vida humana seria tão importante como a bolha d’água a desfazer-se ao vento. Sentia-se dilacerado, oprimido, exausto. Ele que esclarecera a muitos, quanto às mais elevadas normas de conduta pessoal, como elucidaria, agora, a si mesmo? Defrontado pelos primeiros sintomas da velhice do corpo de carne, reagia, magoado, contra a extinção gradual das energias orgânicas. Porque as rugas do rosto, o alvejar dos cabelos, o enfraquecimento da visão e o empobrecimento do celeiro vital, se a mocidade lhe vibrava na mente ansiosa por renovação? Seria a morte simplesmente a noite sem alvorada? Que misterioso poder dispunha, assim, da vida humana, conduzindo-a a objetivos inesperados e ocultos?

Retirei a destra, percebendo que o respeitável funcionário tinha os olhos úmidos.

Aproximou-se Gúbio e colocou-lhe as mãos sobre a fronte, comunicando-nos que prepará-lo-ia para a conversação próxima, dirigindo-lhe a intuição para as reminiscências do processo em que Jorge fora implicado.

Daí a instantes, notei que os olhos do juiz exibiam modificada expressão. Dir-se-ia contemplarem cenas distanciadas, com indizível tortura. Mostravam-se angustiados, doridos…

O Instrutor recomendou-me tornar à auscultação psíquica e voltei a pousar a mão direita sobre o cérebro dele.

Com as minhas percepções gerais algo desenvolvidas, ouvi-lhe os pensamentos novos.

— Por que razão se detinha, — meditava o pai de Marigarida, — naquele processo liquidado, a seu ver, desde muito, ferindo o próprio coração? Anos haviam transcorrido sobre o crime obscuro, entretanto, o assunto lhe revivia na cabeça, qual se a memória lho impusesse, tirânica e desapiedada, por disco de estranho padecimento moral. Que motivos o levavam a rememorar semelhante peça judiciária com tanta força? Via Jorge, mentalmente, esquecido no abismo da inconsciência e lembrava-lhe as palavras veementes, afirmando inocência. Não conseguia explicar por que fortes razões lhe recolhera a filha, introduzindo-a no próprio lar. Debalde procurava o móvel secreto que o levava a demorar-se no assunto, naquela madrugada de inexplicável insônia. Recordou que o sentenciado perdera a assistência dos melhores amigos e a própria esposa suicidara-se em pleno desespero… No entanto, porque reter-se naquele caso sem importância! Ele, o juiz, chamado a processos incontáveis, apreciara enigmas muito mais intrincados e importantes. Não conseguia, pois, justificar-se, quanto às reminiscências do humilde condenado, réu de crime comum…


Nesse comenos, o Instrutor recomendou a Elói e a mim o trazimento de Jorge, fora do veículo carnal, ao domicílio do magistrado, enquanto prepararia a este último o desligamento parcial do corpo através do sono.

Voltamos, o companheiro e eu, ao cubículo do obsidiado que se achava ausente do vaso físico, em grande prostração.

Administrei-lhe ao organismo perispiritual recursos fluídicos reparadores e transportamo-lo à residência indicada.

A essa altura, o dono da casa e a neta de Saldanha, provisoriamente libertos das teias fisiológicas, já se encontravam ao lado de Gúbio, que recebeu Jorge com desvelado carinho, e, unindo os três como que identificando-os a uma corrente magnética de forte expressão, emprestou-lhes forças à mente, por intermédio de operações fluídicas, para que o ouvissem acordados, em Espírito, tanto quanto possível. Notei, então, que o despertamento não era análogo para os três. Variava de acordo com a posição evolutiva e condições mentais de cada um. O magistrado era mais lúcido pela agilidade dos raciocínios; a jovem Lia colocava-se em segundo lugar pelas singulares qualidades de inteligência; situava-se Jorge em posição inferior, em face do esgotamento em que se encontrava.

Vendo-se à frente do antigo réu e da filha, que identificou, de pronto, o categorizado expoente da justiça perguntou a esmo, absorvido de insofreável espanto:

— Onde estamos? Onde estamos?

Nenhum de nós se atreveu à resposta.

Gúbio, no entanto, orava em silêncio; e quando formosa luz se lhe irradiou do tórax e do cérebro, dando-nos a entender que o sentimento e a razão se achavam nele irmanados em claridade celeste, exclamou para o assombrado interlocutor, tocando-lhe afavelmente os ombros:

— Juiz, o lar do mundo não é tão somente um asilo de corpos que o tempo transformará. É igualmente o ninho das almas, onde o Espírito pode entender-se com o Espírito, quando o sono sela os lábios de carne, suscetíveis de mentir. Congregamo-nos em teu próprio abrigo para uma audiência com a realidade.

O chefe daquele santuário doméstico escutava, perplexo.

— O homem encarnado na Terra, — continuou Gúbio empolgante, — é uma alma eterna usando um corpo perecível, alma que procede de milenários caminhos para a integração com a verdade divina, à maneira do seixo que desce, rolando nos séculos, do cimo do monte para o seio recôndito do mar. Somos, todos, atores do drama sublime da evolução universal, através do amor e da dor… Indébita é a nossa interferência nos destinos uns dos outros, quando nossos pés trilham retos caminhos. Todavia, se nos desviamos da rota adequada, é razoável o apelo do amor para que a dor diminua.

O magistrado ligou os conceitos ouvidos à presença de Jorge, na sala, e inquiriu, aflito:

— Apelam, porventura, em favor deste condenado?

— Sim, — respondeu nosso Instrutor, sem hesitar. Não acreditas que esta vítima aparente de inconfessável erro judiciário já tenha esgotado o cálice do martírio oculto?

— O caso dele, porém, permanece liquidado.

— Não, juiz, nenhum de nós chegou ao fim dos processos redentores que nos dizem respeito. Não seria Jorge, acusado penitente, o único sentenciado indigno de uma pausa nas dores da remissão.

O interlocutor arregalou os olhos, mostrando certo orgulho ferido e retorquiu, quase sarcástico:

— Mas, eu fui o juiz da causa. Consultei os códigos necessários, antes de emitir a sentença. O crime foi averiguado, os laudos periciais e as testemunhas condenaram o réu. Não posso, em sã consciência, aceitar intromissões, mesmo tardias, sem argumentação ponderosa e cabível.

Gúbio contemplou-o, compadecidamente, e considerou:

— Compreendo-te a negativa. Os fluidos da carne tecem um véu pesado demais para ser facilmente rompido pelos que se não afeiçoam, ainda, diariamente, ao contato da espiritualidade superior. Invocas a tua condição de sacerdote da lei, para esmagares o destino de um trabalhador que já perdeu tudo quanto possuía, a fim de que resgatasse, intensivamente, os erros do passado distante. Referes-te ao título que a convenção humana te conferiu, certamente atendendo a injunções do Poder Divino; entretanto, não me pareces amoldado aos sublimes fundamentos de tua elevada missão no mundo, porquanto o homem que aceitou a mordomia, no quadro dos bens materiais ou espirituais do Planeta, nunca alardeia superioridade, quando consciente das obrigações que lhe cabem, por entender na administração fiel um caminho de aprimoramento, mesmo através de extremo sofrimento moral. Distribuir amor e justiça, simultaneamente, na atualidade da Terra, em que a maioria das criaturas menosprezam semelhantes dádivas, é crivar-se de dores. Admites que o homem viverá sem contas, ainda mesmo aquele que se supõe capacitado para julgar o próximo, em definitivo? Acreditas haja o teu raciocínio acertado em todos os enigmas da senda? Terás agido imparcialmente em todas as decisões? Não creias… O Justo Juiz foi crucificado num madeiro de linhas retas por devotar-se no mundo à extrema retidão. Todos nós, na estrada multissecular do conhecimento edificante, muita vez colocamos o desejo acima do dever e o capricho a cavaleiro dos princípios redentores que nos compete observar. Em quantas ocasiões já se te inclinou o mandato às contrafações da política desintegrante dos homens, ávidos de transitório poder? Em quantos processos permitiste que os teus sentimentos se turvassem no personalismo delinquente?!

O homem, em cuja presença identificava Saldanha perigoso inimigo, revelava-se infinitamente confundido. Palidez cadavérica lhe cobria o semblante, sobre o qual grossas lágrimas principiaram a correr.

— Juiz, — continuou Gúbio, em voz firme, — não fosse a compaixão divina que te concede ao ministério diversos auxiliares invisíveis, amparando-te as ações, por amor à Justiça que representas, e as vítimas dos teus erros involuntários e das paixões obcecantes daqueles que te cercam não te permitiriam a permanência no cargo. Teu palácio residencial mostra-se repleto de sombras. Muitos homens e mulheres, dos que já sentenciaste em mais de vinte anos, nas lides do direito, arrebatados pela morte, não conseguiram seguir adiante, colados que se acham aos efeitos de tuas decisões e demoram-se em tua própria casa, aguardando-te explicações oportunas. Missionário da lei, sem hábitos de prece e meditação, únicos recursos através dos quais poderias abreviar o trabalho de esclarecimento que te assiste, grandes surpresas te reserva o transe final do corpo.

Verificando-se pausa mais longa, o magistrado exteriorizou nos olhos indefinível terror, caiu de joelhos e rogou:

— Benfeitor ou vingador, ensina-me o caminho! Que devo fazer a benefício do condenado?

— Facilitarás a revisão do processo e restituí-lo-ás à liberdade.

— Ele é, então, inocente? — Indagou o interlocutor, exigindo bases sólidas a futuras conclusões.

— Ninguém sofre sem necessidade à frente da Justiça Celeste e tão grande harmonia rege o Universo que os nossos próprios males se transubstanciam em bênçãos. Explicaremos tudo.


E, dando-nos a perceber que precisava gravar na mente do juiz quanto se lhe pedia da ação providencial, continuou:

— Não te circunscreverás à mencionada medida. Amparar-lhe-ás a filha, hoje internada por favor em tua casa, em estabelecimento condigno, onde possa receber a necessária educação.

— Mas, — interveio o jurista, — esta menina não é minha filha.

— Não serias, entretanto, convocado por nós a semelhante encargo, se não pudesses recebe-lo. Crês, porém, que o dinheiro em disponibilidade deva satisfazer tão somente as exigências daqueles que se reuniram a nós, dentro dos laços consanguíneos? Liberta o coração, meu amigo! Respira em mais alto clima. Aprende a semear amor no chão em que pisas. Quanto mais eminentemente colocada na experiência humana, mais intensivo pode tornar-se o esforço da criatura, na própria elevação. Na Terra, a justiça abre tribunais para examinar o crime em seus aspectos variados, especializando-se na identificação do mal; todavia, no Céu, a Harmonia descerra santuários, apreciando-nos a bondade e a virtude, consagrando-se à exaltação do bem, na totalidade dos seus ângulos divinos. Enquanto é tempo, faze de Jorge um amigo e da filha dele uma companheira de luta que te afague, um dia, os cabelos brancos e te ofereça, mais tarde, a luz da prece, quando teu Espírito for compelido a transpor o escuro portal do túmulo.

O juiz, em pranto, interrogou:

— Como agir, porém?

— Amanhã, — informou o Instrutor, calmo e persuasivo, — te erguerás do leito sem a lembrança integral do nosso entendimento de agora, porque o cérebro de carne é um instrumento delicado, incapaz de suportar a carga de duas vidas, mas ideias novas surgir-te-ão formosas e claras, com respeito ao bem que necessitas praticar. A intuição, contudo, que é o disco milagroso da consciência, funcionará livremente, retransmitindo-te as sugestões desta hora de luz e paz, qual canteiro de bênçãos ofertando-te flores perfumosas e espontâneas. Chegado esse momento, não permitas que o cálculo te abafe o impulso das boas obras. No coração hesitante, o raciocínio vulgar luta contra o sentimento renovador, turvando-lhe a corrente límpida, com o receio de ingratidão ou com ruinosa obediência aos preconceitos estabelecidos.

Diante de Saldanha que acompanhava a cena, demonstrando indizível bem-estar, Jorge e a filha trocavam olhares de alegria e esperança.

O magistrado contemplou-os, pensativo, notando-se-lhe o propósito de endereçar ao nosso Instrutor novas interpelações. Dominado, no entanto, pelas emoções do minuto, calou-se, resignado e humilde.


Gúbio, entretanto, perscrutando-lhe os pensamentos, tocou-lhe a fronte, de leve, com ambas as mãos e falou em voz firme:

Gostarias que me expressasse a respeito da culpabilidade do réu, a fim de que a tua consciência de julgador consolide certos pontos de vista, já esposados no processo a que nos reportamos. Em verdade, quanto ao delito de que é presentemente acusado, Jorge tem as mãos limpas. Entretanto, a existência humana é como precioso tecido de que os olhos mortais apenas enxergam o lado avesso. Nos sofrimentos de hoje, solvemos os débitos de ontem. Com isto, não desejamos dizer que nossas falhas, muita vez oriundas da ociosidade ou da impenitência de agora, gerando resultados ruinosos para nós mesmos e para outrem, sejam recursos providenciais ao pagamento de alheias dívidas, porque assim consagraríamos a fatalidade por soberana do mundo, quando, em todas as horas, criamos causas e consequências com os nossos atos cotidianos. As entidades que pranteiam às tuas portas não choram sem razão e, mais dia menos dia, a toga que envergas temporariamente acertará contas com todos aqueles que, em torno dela, se lastimam. Jorge, porém, que aqui não se encontra em reclamações e, sim, trazido por nós para benéfico entendimento, liberou certa parte do pretérito doloroso.

Gúbio, a essa altura, fez grande pausa em suas elucidações, fixou o interlocutor mais profundamente e prosseguiu, com grave entono:

— Juiz, pessoas e sucessos que nos afetam a consciência de maneira particular não constituem objeto vulgar na marcha reveladora da vida. Por agora, trazes a mente subjugada pelo choque biológico do retorno à carne e não poderias seguir-nos na exumação do passado recente. Já te auscultei, no entanto, os arquivos mentais e vejo os quadros que o tempo não destrói. No século findo, guardavas o título de posse sobre extensa faixa de terra e orgulhavas-te da posição de senhor de dezenas de escravos que, em maioria reencarnados, atualmente te integram a falange de colaboradores nos trabalhos comuns a que te sentes constrangido pela máquina funcional. A todos eles, deves assistência e carinho, auxílio e compreensão. Nem todos os servos do passado, porém, se confundem no mesmo naipe de relações com o teu Espírito. Alguns se salientaram no drama que viveste e volvem ao teu caminho, impressionando-te o coração. Jorge de hoje era ontem teu escravo, embora nascesse quase sob o mesmo teto que te assinalou os primeiros vagidos. Era teu servidor, perante os códigos terrestres, e irmão consanguíneo, ante as divinas leis, não obstante afagado por outra mãe. Nunca lhe perdoaste semelhante aproximação, considerada em tua casa por aviltante ultraje ao nome familiar. Chegados ambos à tarefa da paternidade, teu filho de ontem e de hoje lhe transviou a filha do pretérito e de agora e, quando semelhante amargura sobreveio, com escárnio supremo para um lar cativo e triste, determinaste medidas condenáveis que culminaram no insofreável desespero de Jorge em outros tempos, o qual, desarvorado e semilouco, não somente roubou a vida ao corpo de teu filho que lhe invadira o santuário doméstico, mas também a própria existência, suicidando-se em dramáticas circunstâncias. Todavia, nem a dor, nem a morte apagam as aflições da responsabilidade que só o regresso à oportunidade de reconciliação consegue remediar. E aqui te encontras, de novo, diante do condenado, junto do qual sempre te inclinaste à antipatia gratuita, e ao lado da jovem a quem prometeste amparar por filha muito querida ao coração. Trabalha, meu amigo! Vale-te dos anos, porque Alencar e tua pupila serão atraídos à bênção do matrimônio. Age enquanto podes. Todo bem praticado felicitará a ti mesmo, porquanto outro caminho para Deus não existe, fora do entendimento construtivo, da bondade ativa, do perdão redentor. Jorge, humilhado e desiludido, apagou o desvario deplorável, suportando inominável martírio moral em poucos anos de acusação indébita e prisão tormentosa, com viuvez, enfermidades e privações de toda a espécie.

O nosso orientador fitou-o, compadecido, na pausa mais ou menos longa que se fizera, e rematou:

— Não te dispões, por tua vez, aos testemunhos salvadores?

Abalo salutar, oculto à nossa apreciação, certamente sulcava, fundo, o Espírito do magistrado, que mostrava o semblante extremamente transformado. Vimo-lo levantar-se, em lágrimas, cambaleante. A força magnética do nosso Instrutor alcançara-lhe as fibras mais íntimas, porquanto os olhos dele pareciam iluminados de súbita determinação.

Abeirou-se de Jorge, estendeu-lhe a destra em sinal de fraternidade, que o filho de Saldanha beijou igualmente em pranto, e, em seguida, acercou-se da jovem, abriu-lhe os braços acolhedores e exclamou comovido:

— Serás minha filha, doravante, para sempre!…

Indescritível contentamento marcou-nos o inolvidável minuto.

Gúbio ajudou-os a partir na direção do interior doméstico, e, quando nos dispúnhamos a reconduzir Jorge ao presídio de cura onde o corpo em repouso o esperava, Saldanha, plenamente modificado por uma alegria misteriosa que lhe refundia as expressões fisionômicas, avançou para o nosso Instrutor e, tentando oscular-lhe as mãos, murmurou:

— Nunca pensei encontrar noite tão gloriosa quanto esta!

Ia desmanchar-se em palavras de reconhecimento, mas Gúbio, com naturalidade, obrigou-o a reajustar-se, acrescentando:

— Saldanha, nenhum júbilo, depois do amor de Deus, é tão grande quanto aquele que recolhemos no amor espontâneo de um amigo. Semelhante alegria, neste momento, é nossa, porque te sentimos a amizade nobre e sincera no coração.

E um abraço de carinhosa fraternidade coroou a tocante e inesquecível cena.




André Luiz
Francisco Cândido Xavier


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