Entre a Terra e o Céu

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Capítulo XVI

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Noite fechada e alta, tornamos ao domicílio do enfermeiro, seguidos de Clarêncio, que funcionava, como sempre, junto de nós, por mentor diligente e amigo.

Mário Silva, estirado nos lençóis, debalde procurava dormir.

O sonho da véspera castigava-lhe o pensamento.

Ruminando as impressões da manhã, refletia de si para consigo: — “Seria realmente Amaro, o rival, quem lhe surgira na forma de um criminoso? E aquela mulher chorosa e acabrunhada seria, porventura, Zulmira, a companheira de infância, que ainda lhe feria as recordações? Onde o motivo de semelhante reencontro?”

Teimava em afastar para longe as reminiscências da mocidade; por isso mesmo, não acreditava estivesse nele próprio a causa do estranho pesadelo. Permanecia convicto de que alguém o chamara, nitidamente, pronunciando palavras que o constrangiam a atender. — “Estaria Zulmira em apuros? E esta, acaso se recordaria dele? E se as suas conjeturas expressassem a verdade, teria o direito de reaproximar-se?”

Não imaginava isso possível. A chaga do brio retalhado ainda lhe sangrava no coração. Não seria justo acudi-la, nem mesmo a pretexto de socorrer. Conhecia-lhe o esposo de relance, mas o suficiente para detestá-lo, com todas as reservas de ódio de que se sentia capaz. Ainda mesmo que a mulher, outrora querida, lhe suplicasse assistência, cabia-lhe ser surdo aos seus rogos.

Hipóteses inquietantes e perguntas sem resposta lhe assediavam o cérebro toldado de apreensão e rancor.

A antiga aversão pelo rival preponderava, dominando-o.

Porque não voltar ao sonho da noite anterior, de modo a tentar uma solução?

A figura de Amaro crescia-lhe no campo mental. — “Se as almas podiam efetivamente reencontrar-se, fora do corpo, — prosseguia divagando, — decerto conseguiria rever o adversário e revidar… Se fora invocado em sonho, era lícito invocar quem quisesse… Chamaria o renegado esposo de Zulmira a explicar-se. Concentraria nele o poder do pensamento. Buscá-lo-ia onde estivesse.”

O Ministro contemplava-o, compadecido.

Valendo-se dos minutos para ensinar-nos algo proveitoso, observou:

— A paixão cega sempre. Nossa vida mental é a nossa vida verdadeira e, por isso, quando a paixão nos ocupa a fortaleza íntima, nada vemos e nada registramos senão a própria perturbação.


Em seguida, aplicou passes balsamizantes sobre o rapaz, que se virava, desajustado, no leito. Mário, qual se houvera sorvido brando anestésico, relaxou os nervos e descansou o comboio físico, mas, ressurgindo em nosso Plano, começou a extravasar os sentimentos que lhe senhoreavam o espírito.

Não nos assinalava a presença, continuando, porém, sob a nossa observação, em seus mínimos movimentos.

Espantadiço e tateante, vagueou pelos ângulos do quarto no veículo perispirítico, extremamente condensado.

Todavia, pouco a pouco, esgazearam-se-lhe os olhos, dando-nos a ideia de quem se detinha em aflitivos quadros íntimos.

Anotando-nos o assombro silencioso, o instrutor socorreu-nos, explicando:

— Qual acontece ao nosso amigo Leonardo, o novo companheiro padece angustioso complexo de fixação. Embora tenha o seu caso particular, algo suavizado pelas lutas da carne, que, por vezes, constituem abençoado entretenimento, não consegue diluir a obcecante recordação do inimigo. A mágoa é-lhe inquietante ferida mental. Enquanto se distrai nas tarefas comuns, alheia-se, de alguma sorte, ao tormento oculto que transporta consigo, mas, em se vendo espiritualmente a sós, dá curso ao ódio coagulado, desde muito, no coração. Observemo-lo!

Mário desceu para a rua, à maneira de louco, e, inalando o ar refrescante da noite, forneceu a impressão de quem se revigorava, de súbito, passando a gritar, com voz estridente:

— Amaro, ladrão! Amaro, usurpador! Aparece! Se tens dignidade, afronta-me a vingança!… Não tremerei!… Onde ocultaste a mulher que eu amo?! Responde, responde!…

Silva caminhava semi-ébrio, sem direção, contudo, arremessava as palavras no ar, com veemência e segurança.

Havíamos dobrado esquinas diversas e eis que, quando menos esperávamos, surge alguém ao encontro dele, em plena via pública.

Copiando o impulso do ferro atraído pelo ímã, o esposo de Zulmira, em seu corpo sutil, correspondia ao chamado estranho do inimigo, desligado parcialmente da carne.

Defrontaram-se, a princípio, altivamente, entretanto, logo após, com as maneiras do homem mais educado, Amaro esboçou delicado recuo, revelando-se preocupado em evitar conflitos e aborrecimentos.

O enfermeiro, porém, de ânimo revel, bradou, desconcertante:

— Não te acovardes, bandido! Não fujas!… Temos contas a ajustar!…

O ferroviário, contudo, afastava-se, rápido.

O adversário, no entanto, sem arrefecer no ímpeto, seguia-o, inflexível, longe de renunciar ao escuro propósito de agressão.

Acompanhávamos ambos, quarteirão a quarteirão, até que esbarramos à entrada do abrigo doméstico que já conhecíamos, onde Amaro dispôs-se ao ajuste pacífico.

Demonstrando-se interessado em defender a tranquilidade familiar, o dono da casa estacou à porta, aguardando o provocador.

— Então, — bradou Silva, exasperado, — é aqui o ninho das serpentes?

Levantando os punhos contra o rival humilde, prosseguiu, rixento:

— Pagar-me-ás muito caro a intromissão! Infame enganador, onde puseste a mulher que era minha felicidade e minha vida? Quebraste-me os sonhos, aniquilaste-me os ideais!… Homem terrível, que fizeste de mim? Sou apenas máquina de trabalho, sem fé e sem esperança!…

— Eu não sabia, não sabia!… — Alegou Amaro, desapontado, — nunca tive a intenção de ofender-te!

— Maldito! Como sabes dissimular! Onde está Zulmira? Devo exterminar-te para restituir-lhe a independência?

E afrontado pela serenidade do outro, o enfermeiro acentuou:

— Não me reconheces, acaso?

— Sim, reconheço-te, — falou o interlocutor num suspiro, — és Mário Silva, pessoa a quem devoto consideração e respeito.

— Consideração e respeito? Que deslavado fingimento! Onde a prova de apreço, se me arrancaste a noiva, engodando-a com mentirosas promessas?

— Somente soube de tua velha afeição por ela quando meus compromissos no matrimônio não admitiam qualquer recuo. Se alguém, todavia, me houvesse comunicado lealmente quanto se desenrolava, em torno de minha preferência, teria renunciado em teu favor. Desejaria realmente servir-te, entretanto, agora…

— Hipócrita! — Tornou Mário, enfurecido. — Não creio em tua palavra de lobo disfarçado. Roubaste-me a única felicidade que eu esperava do mundo! A única felicidade que era minha!…

Amaro fixou triste sorriso e obtemperou:

— E acreditas que eu seja feliz? Admites no casamento apenas a exaltação dos sentidos inferiores? Crês que o homem consorciado deva encontrar na mulher simplesmente uma escrava? Amo em Zulmira a companheira e a irmã que me cabe proteger. Nem ela e nem eu encontramos na experiência conjugal a ventura das afeições cor-de-rosa, em que o desejo contentado é como a flor que morre num dia… Temos padecido muito, Mário. Não ignoras que me casei em segundas núpcias. Zulmira, por isso mesmo, não terá recolhido em mim a perfeita alegria que lhe seria lícito esperar. Nossa aproximação começou por uma série de desajustes, que culminaram com a morte do meu caçula, num terrível desastre… Desde então, nossa casa é um espinheiro de sofrimento… Minha esposa adoeceu gravemente e eu mesmo, até agora, continuo agoniado e desfalecente… Saberias, porventura, o que seja a desdita de um pai que chora sem lágrimas, mortalmente ferido? Se dívidas possuo para com a Divina Providência, podes acreditar que não tenho amargado pouco, a fim de ressarci-las… A morte para mim não passaria de bênção libertadora. Como podes observar, não me vejo em condições de aceitar-te o desafio! Estou dilacerado e, mais que dilacerado, vencido…

Com enternecedora inflexão de súplica, acentuou:

— Se ainda consagras amor à criatura que desposei, ajuda-nos com a tua compreensão!… Se te fiz algum mal, inconscientemente, perdoa-me! Perdoa-me pelas angústias da minha existência de condenado a horríveis provas morais!…

Mário Silva, com espanto nosso, retribuiu com escandalosa gargalhada.

— Desculpar? Nunca! — Exclamou jactancioso. — Pelo tom da conversa, concluo que a justiça começou a expressar-se, devidamente, mas abreviá-la-ei com as minhas próprias mãos… Meu desforço é certo, meu ódio é inexorável!…

Amaro não mais respondeu.

Vimo-lo curvar a cabeça em oração fervorosa. Suaves irradiações de esmeraldina luz escapavam-lhe da fronte. As palavras inarticuladas de que se servia, para implorar socorro, alcançavam-nos o espírito, qual se fossem ondas caloríficas e harmoniosas de humildade e confiança.

Silva, incapaz de sensibilizar-se, ante a rendição comovente, prosseguia gritando:

— Porque silencias, covarde? Fala, fala! Explica-te!… Reage! Dominaste Zulmira, mas não me dobrarás um milímetro!… Criminosos de tua laia não merecem compaixão!…

Nessa altura do diálogo, Clarêncio convocou-nos, paternal:

— Respondamos à prece de Amaro, com o auxílio fraterno.

Arrastados pela simpatia e pela emoção, acompanhamos o nosso orientador, sem hesitar.




André Luiz
Francisco Cândido Xavier


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