Entre a Terra e o Céu

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Capítulo XXVIII

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Preocupados com o caso de Júlio, no dia imediato indagamos do orientador sobre a planificação do serviço reencarnatório, ao que Clarêncio informou, conciso:

— O problema é doloroso, mas é simples. Trata-se tão somente de ligeira prova necessária. Júlio sofrerá o aflitivo desejo de permanecer na Terra, com o empréstimo do corpo físico a prazo longo, entretanto, suicida que foi, com duas tentativas de autoaniquilamento, por duas vezes deverá experimentar a frustração para valorizar com mais segurança a bênção da vida terrestre. Depois de estagiar por muitos anos nas regiões inferiores de nosso Plano, confiando-se inutilmente à revolta e à inércia, já passou pelo afogamento e agora enfrentará a intoxicação. Tudo isso é lastimável, no entanto…

E mostrando significativa expressão fisionômica, ajuntou:

— Quem aprenderá sem a cooperação do sofrimento?

— Penso, contudo, no martírio dos pais… — Considerou Hilário, hesitante.

— Meus amigos, — falou o Ministro, generoso, — a justiça é inalienável. Não podemos iludi-la. Com o desequilíbrio emocional de Amaro e Zulmira, no pretérito, Júlio arrojou-se a escuro despenhadeiro de compromissos morais e, na atualidade, reabilitar-se-á com a cooperação deles. Ontem, o casal, por esquecê-lo, inclinou-o à queda, hoje, por amá-lo, garantir-lhe-á o soerguimento.


A palestra esmoreceu, talvez porque o assunto nos compelisse a severa meditação.

Hilário e eu, refletindo na absoluta harmonia da Lei, calamo-nos cismarentos, à espera da noite, quando integraríamos a caravana da amizade que restituiria a criança enferma ao ninho antigo.

Com efeito, avizinhava-se a madrugada, quando alcançamos a residência do ferroviário, envolvida em sombra.

Odila trazia nos braços o filho irrequieto e gemente, enquanto o Ministro, Irmã Clara, Blandina, Mariana, Hilário e eu rodeávamos ambos, em silêncio.

Penetramos a sala humilde.

Qual se houvera sorvido invisível anestésico, o menino emudeceu.

Junto de nós, o orientador, solícito, explicou:

— O doentinho encontra grande alívio em contato com os fluidos domésticos. O reequilíbrio da alma no ambiente que lhe é familiar no mundo, constitui base firme para o êxito da reencarnação.

Não prosseguiu, contudo.

Irmã Clara fez-lhe expressivo aceno e o nosso instrutor penetrou, sozinho, a câmara conjugal, sem dúvida para certificar-se quanto à conveniência de confiarmos o pequenino à sua futura mãe.

Transcorridos alguns minutos, Clarêncio veio ao nosso encontro, convidando-nos a entrar.

Enternecedor espetáculo desdobrou-se à nossa vista.

Zulmira em Espírito estendeu-nos braços fraternos. Estava bela, radiante de alegria… E, quando recebeu Júlio, conchegando-o ao próprio peito, pareceu-me sublimada madona, aureolada por maternidade vitoriosa.

Odila chorava.

Clarêncio ergueu os olhos para o Alto e orou, em voz comovedora:

— Senhor, abençoa-nos!… De almas entrelaçadas na esperança em teu infinito amor e no júbilo que nasce da obediência aos teus desígnios, aqui nos achamos, acompanhando um amigo que volta à recapitulação! Dá-lhe forças para submeter-se resignado à cruz que lhe será a salvação!… Ó Pai, sustenta-nos na grande estrada redentora em que o obstáculo e a dor devem ser nossos guias, fortalece-nos o bom ânimo e a serenidade e modera-nos o coração para que saibamos servir-te em qualquer circunstância!… Sobretudo, Senhor, rogamos-te auxilies a nossa irmã que investe sagradas aspirações femininas no apostolado maternal! Santifica-lhe os anseios, multiplica-lhe as energias para que ela se honre contigo na divina tarefa de criar!…

A palavra do Ministro, saturada de paternal amor, desse amor que nos atinge o espírito até à fonte oculta das lágrimas, levara-nos à comoção.

Zulmira, todavia, sensibilizou-nos ainda mais. Atraída pelo poder magnético da oração, avançou com o menino colado ao regaço até junto de nosso orientador, e ajoelhou-se.

Aquela humildade ingênua lembrava-me a narração evangélica da viúva de Naim com o filho morto aos pés do Cristo (Lc 7:11) e não pude conter o pranto que me vertia do coração.

Igualmente tocado por aquele gesto espontâneo de confiança e fé, o Ministro voltou-se para ela e afagou-lhe a cabeça, transfigurado.

Algo de sublime devia ter acontecido na alma daquele missionário da abnegação que me habituara a querer com extremado carinho.

Jorro estelar descia da Altura, inflamando-lhe a fronte e da destra que acariciava a irmã genuflexa projetavam-se raios de safirina luz…

Maravilhosos instantes de expectação correram sobre nós.

Em seguida, sustentando-a nos braços, Clarêncio reergueu-a, conduzindo-a ao leito com a criança.

Zulmira, desde então, afigurou-se-nos integralmente concentrada no filhinho, que se enlaçou a ela, instintivamente, à maneira de um molusco a acomodar-se na própria concha.

Júlio dormira placidamente, enfim.

Abraçado ao colo materno, parecia fundir-se nele.

De outras vezes, acompanhara trabalhos preparatórios de reencarnação, que exigiam concurso ativo de técnicos do assunto e de benfeitores da vida superior, mas ali o fenômeno era demasiado simples. O corpo sutil do menino como que se justapunha aos delicados tecidos do perispírito maternal, adelgaçando-se gradativamente aos nossos olhos.

Irmã Clara e as companheiras oscularam a futura mãezinha, que tentava recuperar o corpo denso, conduzindo consigo o pequeno confortado e desfalecente e retiramo-nos, tomados da alegria que nasce, pura, da obrigação bem cumprida.

Odila encarregou-se da assistência a Zulmira, e Clarêncio prometeu seguir, de perto, os serviços naturais daquela gravidez incipiente.


Quando nos vimos, de novo, a sós, as indagações surgiram, imperiosas.

O Ministro, com a paciência admirável de todos os dias, tomou a palavra e esclareceu:

— A reencarnação no caso de Júlio não reclama de nossa Esfera cuidados especiais. É uma descida experimental ao campo da matéria densa, com interesse tão somente para ele mesmo e para os familiares que o cercam. Todavia, se a existência do filho de Amaro estivesse destinada, no momento, a influenciar a comunidade, se ele fosse detentor de méritos indiscutíveis, com responsabilidades justas nos caminhos alheios, o problema seria efetivamente outro. Forças de ordem superior seriam fatalmente mobilizadas para a interferência nos cromossomos, garantindo-se o embrião do veículo físico de maneira adequada à missão que lhe coubesse…

— E se o reencarnante fosse um homem de larga intelectualidade? — Inquiriu Hilário, estudioso.

— Merecer-nos-ia cautelosa atenção na estrutura cerebral, para que lhe não faltasse um instrumento à altura de seus deveres na materialização do pensamento.

— E se fosse um médico? Um grande cirurgião por exemplo? — Perguntei por minha vez.

— Receberia assistência aprimorada na formação do sistema nervoso, assegurando-se-lhe pleno domínio das emoções.

Porque não mais indagássemos especificamente, o instrutor continuou:

— Contudo, em milhares de renascimentos, na Terra, os princípios embriogênicos funcionam automáticos, cada dia. A lei de causa e efeito executa-se sem necessidade de fiscalização da nossa parte. Na reencarnação, basta o magnetismo dos pais, aliado ao forte desejo daquele que regressa ao campo das formas físicas. De retorno ao corpo físico, estamos invariavelmente animados de um propósito firme… Seja o anseio de alijar a dor que nos atormenta, a aspiração de conquistas espirituais que nos facilitem o acesso à Vida Superior, o voto de recapitular serviços mal feitos ou o ideal de realizar grandes tarefas de amor entre aqueles a quem nos afeiçoamos no mundo. De modo geral, a maioria das almas que reencarnam satisfazem à fome inquietante de recomeço. Quem não atendeu com exatidão ao trabalho que a vida lhe delegou, depressa se rende ao impositivo de repetição da experiência e o ressurgimento na luta física aparece por bênção salvadora. Milhões de destinos se reestruturam dessa forma, qual se refaz uma grande floresta. A sementeira cresce, estimulada pelo magnetismo do solo; a existência corpórea germina de novo, incentivada pelo magnetismo da carne…


Ante a pausa ligeira do Ministro, Hilário perguntou, respeitoso:

— O seio maternal, desse modo…

Nosso mentor completou-lhe a definição, respondendo:

— É um vaso anímico de elevado poder magnético ou um molde vivo destinado à fundição e refundição das formas, ao sopro criador da Bondade Divina, que, em toda a parte, nos oferece recursos ao desenvolvimento para a Sabedoria e para o Amor. Esse vaso atrai a alma sequiosa de renascimento e que lhe é afim, reproduzindo-lhe o corpo denso, no tempo e no espaço, como a terra engole a semente para doar-lhe nova germinação, consoante os princípios que encerra. Maternidade é sagrado serviço espiritual em que a alma se demora séculos, na maioria das vezes, aperfeiçoando qualidades do sentimento.

A palestra prosseguia valiosa, mas o tempo nos convocava a outros misteres e, em razão disso, fomos constrangidos a interromper o nosso entendimento, em torno do que havíamos visto.




André Luiz
Francisco Cândido Xavier


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