Entre a Terra e o Céu

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Capítulo IX

No Lar da Bênção


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Clarêncio movimentou a destra, indicando-nos o quadro sublime a desdobrar-se sob a nossa vista.

Doce melodia que enorme conjunto de meninos acompanhava, cantando um hino delicado de exaltação do amor materno, vibrava no ar.

Aqui e ali, sob tufos de vegetação verde-clara, muitas senhoras sustentavam lindas crianças nos braços.

— É o Lar da Bênção, — informou o instrutor, satisfeito. — Nesta hora, muitas irmãs da Terra chegam em visita a filhinhos desencarnados. Temos aqui importante colônia educativa, misto de escola de mães e domicílio dos pequeninos que regressam da Esfera carnal.

O Ministro, porém, interrompeu-se, de improviso.

Nossas companheiras pareciam agora tomadas de jubilosa aflição.

Vimo-las desgarrar, de inopino, qual se fossem atraídas por forças irresistíveis, precipitando-se para os anjinhos que cantarolavam alegremente. Enquanto a que nos era menos conhecida enlaçava louro petiz, com infinito contentamento a expressar-se em lágrimas, dona Antonina abraçou um pequeno de formoso semblante, gritando, feliz:

— Marcos! Marcos!…

— Mãezinha! Mãezinha!… — Respondeu a criança, colando-se-lhe ao peito.

Clarêncio fez sinal para as irmãs vigilantes, que se responsabilizavam pelos entretenimentos no parque, como a solicitar-lhes proteção e carinho para as nossas associadas de excursão, e disse-nos, em seguida:

— O pequeno Júlio não se encontra no grupo. Ainda sofre anormalidades que lhe não permitem o convívio com as crianças felizes. Acha-se no lar da irmã Blandina. Rumemos para lá.


Em poucos minutos, chegávamos diante de pequenino castelo muito alvo, em que se destacavam as ogivas azuis, coroadas de trepadeiras em flor.

Atravessamos extenso jardim, embalsamado de aroma.

Rosas opalinas, ignoradas na Terra, de mistura com outras flores, desabrochavam profusamente.

A irmã Blandina recebeu-nos sorridente, apresentando-nos uma senhora simpática que lhe fora avozinha no mundo.

Mariana, nossa nova amiga, cumprimentou-nos, bondosa.

Findas as saudações usuais, Clarêncio tocou, direto, no assunto.

Desejávamos avistar o pequeno Júlio, que havia desencarnado por afogamento.

Blandina, que em plena juvenilidade trazia nos olhos os característicos de sublime madureza de espírito, respondeu gentilmente:

— Ah! Com muito prazer!

E, encaminhando-nos a iluminada peça, ornamentada de róseos enfeites, onde um menino repousava num leito muito branco, explicou, sem afetação:

— Nosso Júlio, até hoje, ainda não se refez completamente. Ainda grita sob pesadelos inquietantes, como se estivesse a sofrer sob as águas. Chama pelo pai constantemente, apesar de parecer mais receptivo ao nosso carinho. Insiste pela volta a casa, todos os dias.

Acercamo-nos do berço largo em que descansava.

O menino lançou-nos um olhar de atormentada desconfiança, mas, contido pela ternura da irmã que o assistia, permaneceu mudo e impassível.

— Ainda não se mostrou em condições de partilhar os estudos com os outros? — Perguntou o Ministro, interessado.

— Não, — informou a interpelada, solícita, — aliás, os nossos benfeitores Augusto e Cornélio, que nos amparam frequentemente, são de parecer que ele não conseguirá adquirir aqui qualquer melhora real, antes da reencarnação que o aguarda. Traz a mente desorganizada por longa indisciplina.

Bem humorada, acrescentou:

— É um paciente difícil. Felizmente, dispomos da cooperação de nossa devotada Mariana, que o adotou por filho espiritual, até que retorne ao lar terrestre. Foi preciso segregá-lo neste quarto, tamanha é a gritaria a que se entrega por vezes.

— Mas não tem recebido o tratamento magnético aconselhável? — Indagou Clarêncio, atencioso.

— Diariamente recebe o auxílio necessário, — esclareceu Blandina, com humildade, — eu mesma sou a enfermeira. Passes e remédios não faltam.

— E a irmã conhece o caso em suas particularidades?

— Sim, conheço. Eulália tem vindo até nós. Lastimo que a mãezinha de nosso doente não esteja em condições de ampará-lo. Creio que o concurso dela poderia insuflar-lhe novas forças. Entretanto, com exceção da irmãzinha que se lembra dele nas orações, ninguém mais da família o ajuda.

— Mãezinha! Mãezinha!… — clamou o pequeno, em voz rouca, erguendo-se e enlaçando Blandina, pálido e inquieto.

— Que te incomoda, meu filho?

— Dói-me a garganta… — lamentou-se o rapazinho.

A jovem benfeitora abraçou-o, osculando-lhe os cabelos, e recomendou:

— Não te aflijas. Como é que um moço de teu valor pode chorar, assim por nada? Imagina! Temos três médicos em casa. É impossível que a dor não fuja apressada.

Logo após, sentou-o numa poltrona e solicitou a colaboração de Clarêncio.

O Ministro, cuidadoso, pediu-lhe abrisse a boca e, surpreendidos, notamos que a fenda glótica, principalmente na região das cartilagens aritenóides, apresentava extensa chaga.

O orientador aplicou-lhe recursos magnéticos especiais e, em poucos instantes, Júlio voltou à tranquilidade.

— Então? — Falou Blandina, amparando-o, afetuosa, — onde está agora a garganta dolorida? E, visivelmente satisfeita, acrescentou:

— Já agradeceste ao nosso benfeitor, meu filho?

O menino, hesitante, caminhou para o Ministro, beijou-lhe a destra com respeitoso carinho e balbuciou:

— Muito agradecido.

Blandina ia dizer algo, mas Júlio correu para o seu regaço, choramingando:

— Mãezinha, tenho sono…

A abnegada jovem acolheu-o, com ternura, reconduzindo-o ao repouso.

Quando tornou à sala, Clarêncio informou que doara ao enfermo energias anestesiantes. Notara-o fatigado, resolvendo, por isso, induzi-lo ao descanso.

E, talvez porque nos percebesse o cérebro esfogueado de indagações, quanto àquela minúscula garganta ferida, depois da morte do corpo, o Ministro explicou:

— É pena. Júlio envolveu-se em compromissos graves. Desentendendo-se com alguns laços afetivos do caminho, no século passado, confiou-se a extrema revolta, aniquilando o veículo físico que lhe fora emprestado por valiosa bênção. Rendendo-se à paixão, sorveu grande quantidade de corrosivo. Salvo, a tempo, sobreviveu à intoxicação, mas perdeu a voz, em razão das úlceras que se lhe abriram na fenda glótica. Ainda aí, não se conformando com o auxílio dos colegas que o puseram fora de perigo, alimentou a ideia de suicídio, sem recuar. Foi assim que, não obstante enfermo, burlou a vigilância dos companheiros que o guardavam e arrojou-se a funda corrente de um rio, nela encontrando o afogamento que o separou do envoltório carnal. Na vida espiritual, sofreu muito, carregando consigo as moléstias que ele mesmo infligira à própria garganta e os pesadelos da asfixia, até que reencarnou, junto das almas com as quais se mantém associado para a regeneração do pretérito. Infelizmente, porém, encontra dificuldades naturais para recuperar-se. Lutará muito, antes de incorporar-se a novo patrimônio físico.

Registrávamos aqueles apontamentos com dolorosa admiração. Uma criança doente é sempre um espetáculo comovedor.

Não nos atrevíamos a manifestar nossos pensamentos de estranheza, todavia, o prestimoso amigo, assinalando-nos decerto as dúvidas, acentuou:

— Há poucos instantes, comentávamos a sublimidade da Lei. Ninguém pode trair-lhe os princípios. A Bondade Divina nos assiste, de múltiplas maneiras, amparando-nos o reajustamento, mas em todos os lugares viveremos jungidos às consequências dos próprios atos, de vez que somos herdeiros de nossas próprias obras.

O assunto constituía preciosa sugestão para interessantes estudos, mas, antes de enunciar qualquer pergunta, busquei aspirar, a longos haustos, as baforadas frescas de vento, que carreavam para o recinto vagas sucessivas de agradável perfume.




André Luiz
Francisco Cândido Xavier


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