Entre a Terra e o Céu
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Zulmira ausentara-se do corpo, mas não desfrutava a paz que se lhe estampara na máscara física.
Enlaçada por Odila, a cujo olhar dominador se inclinava, submissa, não nos identificou a presença.
Com evidentes sinais de terror, ouvia as objurgatórias da rival que a acusava, exclamando:
— Que fizeste de meu filhinho? Assassina! Assassina! Pagarás muito caro a intromissão no lar que é somente meu!… Destroçarei tua vida, não me furtarás o afeto de Amaro… Armarei o coração de Evelina contra ti!…
— Não, não!… — Respondia a vítima. Não matei! Não fui eu quem matou!…
— Hipócrita! Acompanhei os teus pensamentos, teus desejos, teus votos…
Zulmira desembaraçou-se, de inopino, dos braços que a envolviam e correu para fora, seguida pela outra.
Esclarecendo-nos, bondoso, Clarêncio observou:
— Quando a pobrezinha consegue sossegar o corpo, cai no pesadelo agitado. Acompanhemo-las. Dirigem-se à praia, onde ocorreu a morte do pequenino. Premida pelo assédio de nossa irmã desequilibrada, Zulmira ainda não se libertou das aflitivas reminiscências de que se vê possuída.
Pusemo-nos na direção do mar, antecipando-as no trajeto.
E, enquanto nos afastávamos, a conversação fez-se ativa.
— Não posso compreender porque a infeliz se declarou inocente… — Comentou Hilário, pensativo.
— Porque tamanha provação se não é ela a autora do crime? — Inquiri por minha vez.
O Ministro, porém, informou, preciso:
— Segundo as anotações que já recolhemos da irmã Eulália, Zulmira não é propriamente a autora, mas, com loucas ciumadas do marido, desejou ardentemente a morte da criança, chegando mesmo a favorecê-la. Para não repetirmos esclarecimentos aos quais já nos reportamos, faremos ligeiro retrospecto, tão minudenciado quanto possível, examinando o problema aflitivo do casal.
Depois de breve pausa, prosseguiu:
— Amaro experimentava imensa devoção afetiva pelo filhinho. Quando Júlio adoecia, desvelava-se à cabeceira do petiz com ilimitada ternura. Sabendo-o sem o carinho materno e reconhecendo que a madrasta não primava pelo amor, junto dos enteados, passava a dormir ao lado do caçula, rodeando-o de mimos. Quando tornava a casa, cada dia, confiava-se a longas conversações com o filho, lendo-lhe histórias ou escutando-lhe, atencioso, as narrativas infantis. Assemelhavam-se a dois velhos amigos, a se bastarem um ao outro. Zulmira, em razão disso, ralada de despeito, passou a ver no menino um adversário de sua felicidade doméstica. A dedicação de Evelina para com o genitor não lhe doía tanto. A filha mais velha era mais doce e mais reservada. Comedida em suas manifestações, sabia dividir gentilezas, sem olvidar a segunda mãe em seu culto de amizade. A madrasta nada sentia contra ela, mas o pequeno excitava-a. Júlio, no extremado apego ao genitor, costumava exagerar-se em traquinadas e caprichos que Amaro desculpava sempre, com benevolente sorriso. Zulmira, pouco a pouco, permitiu que o ódio lhe ocupasse o coração e deixou que o ciúme a enceguecesse a ponto de suspirar pelo desaparecimento do alegre rapazinho. Despreocupava-se intencionalmente pela assistência que lhe devia e abandonava-o às extravagâncias, características de sua idade, alimentando o secreto anseio de presenciar-lhe o fim. Chegava mesmo a estimular-lhe indébitas incursões na via pública, admitindo que algum veículo podia fazer o que não tinha coragem de realizar com as próprias mãos… Foi nessa disposição de espírito que acompanhou a família ao banho matinal, em clara manhã domingueira. Entregues ao contentamento da excursão, Amaro e a filhinha distanciaram-se, de algum modo, numa lancha pequena, enquanto Zulmira assumia a guarda do garoto. Foi então que o cérebro da moça deixou nascer escuras divagações. Não seria aquele o momento azado para consumar o velho propósito? E se relegasse o menino a si mesmo? Decerto, Júlio, em sua curiosidade infantil, não resistiria à atração para o seio das águas… Ninguém poderia culpá-la. Passou do projeto à ação e de pronto se afastou. Em se vendo a sós, o caçula de Amaro interessou-se mais vivamente pelas conchas multicores a se multiplicarem na areia, perseguindo-as, encantado, pelo mar a dentro, até que uma onda veloz lhe chicoteou o corpo tenro, obrigando-o a mergulhar. A criança gritou, pedindo-lhe amparo… Realmente, poderia ter retrocedido alguns passos, salvando-a, mas vencida pelos sinistros pensamentos que lhe dominavam a cabeça, esperou que o mar concluísse o horrível trabalho que não tivera coragem de executar. Quando notou que o enteado havia desaparecido, começou a clamar por socorro, de alma repentinamente dobrada pelo remorso, mas era tarde… Amaro acorreu, precípite, e, com o auxílio de companheiros, retirou para fora o corpinho inerte. Torturado, chorou amargosamente a perda do filhinho, recriminando a mulher. Foi então que Zulmira, dominada pelo arrependimento e atormentada pela noção de culpa, desceu, em espírito, ao padrão vibratório de Odila que a seguia, em silêncio, revoltada. Enquanto se mantinha com a paz de consciência, defendia-se naturalmente contra a perseguição invisível, como se morasse num castelo fortificado, mas, condenando a si mesma, resvalou em deplorável perturbação, à maneira de alguém que desertasse de uma casa iluminada, embrenhando-se numa floresta de sombra.
O Ministro fez leve pausa de repouso e prosseguiu:
— A pobre senhora, desde esse dia, perdeu a ventura doméstica e a tranquilidade própria. Ela e o marido respiram agora sob o mesmo teto, qual se fossem estranhos entre si.
— Mas, à frente da Lei, Zulmira é culpada? — Perguntei com interesse.
O sábio mentor sorriu, significativamente, e considerou:
— Não, no sentido real da Lei, Zulmira não é culpada.
Entretanto, deitando-nos um olhar mais expressivo que de costume, continuou:
— Todavia, quem de nós não é responsável pelas ideias que arroja de si mesmo? Nossas intenções são atenuantes ou agravantes das faltas que cometemos. Nossos desejos são forças mentais coagulantes, materializando-nos as ações que, no fundo, constituem o verdadeiro campo em que a nossa vida se movimenta. Os frutos falam pelas árvores que os produzem. Nossas obras, na esfera viva de nossa consciência, são a expressão gritante de nós mesmos. A forma de nosso pensamento dá feição ao nosso destino.
Hilário e eu ouvíamos, enlevados, sem pestanejar.
Clarêncio, no entanto, guardando a intuição clara do serviço imediato a fazer, para não delongar-se em digressões filosóficas, retomou o fio central do assunto, esclarecendo:
— Júlio trazia consigo a morte prematura no quadro de provações. Era um suicida reencarnado… A segunda esposa de Amaro, porém, sofre o resultado das infelizes deliberações que albergou no espírito. Padece o retorno das vibrações envenenadas que arremessou na direção do menino. Pelo ciúme, criou ao redor de si mesma um ambiente pestilencial, em que os seus próprios pensamentos malignos conseguiram prosperar, assim como um fruto apodrecido desenvolve em si mesmo os vermes que o devoram.
Supondo-se responsável pela morte da criança, de vez que asilou o delituoso plano a que nos referimos, Zulmira abandonou-se ao mal que trazia consigo, imantando-se, ainda, ao mal de que a adversária é portadora, e tornou-se, por isso, enferma e dementada.
— E o pequeno, em toda a história? — Inquiri, admirado.
— Júlio foi conduzido à região que lhe é própria.
— Mas, Odila não poderia vê-lo, certificando-se de toda a verdade?
— Infelizmente, — explicou o venerando instrutor, — a infortunada criatura tem o centro genésico plenamente descontrolado e isso lhe impede a visão mais ampla. Não consegue querer senão o marido, em vista do apego enlouquecedor aos vínculos do sexo, que a paixão nada faz senão desvirtuar. Odila possui admiráveis qualidades morais que jazem, por enquanto, eclipsadas… Desencarnou em largo vigor de seu idealismo feminino, sem uma fé religiosa capaz de reeducar-lhe os impulsos, justificando-se, desse modo, a superexcitação em que se encontra. Semelhante estado, contudo, é transitório e esperamos se submeta, de boa vontade, ao tratamento de reajuste que lhe será dispensado, em breve. Melhorada a situação dela, creio que o problema terá imediata e construtiva solução.
Ia perguntar algo de novo, mas atingíramos a praia e Clarêncio determinou nos puséssemos a observar.
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