Nos domínios da mediunidade

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Capítulo VIII

Psicofonia sonambúlica


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Sob a guarda de venerando amigo, que mais se nos afigurava um nume apostolar, pobre Espírito dementado varou o recinto.

Lembrava um fidalgo antigo, repentinamente arrancado ao subsolo, porque os fluidos que o revestiam era verdadeira massa escura e viscosa, cobrindo-lhe a roupagem e despedindo nauseabundas emanações.

Nenhuma das entidades sofredoras que se acotovelavam à frente exibia tão horrenda fácies.

Aqui e ali, nos variados semblantes a se comprimirem no lugar reservado a irmãos menos felizes, as máscaras de sofrimento eram suavizadas por sinais inequívocos de arrependimento, fé, humildade, esperança…

Mas naquele rosto patibular, parecendo emergir dum lençol de lama, aliavam-se a frieza e a malignidade, a astúcia e o endurecimento.

Ante a expressão com que surgia de inopino, os próprios Espíritos perturbados recuaram receosos.

Na destra, o estranho recém-chegado trazia um azorrague que tentava estalar, ao mesmo tempo que proferia estrepitosas exclamações.

— Quem me faz chegar até aqui, contra a minha vontade? — bramia, semi-afônico. — Covardes! por que me segregarem assim? onde estão os abutres que me devoraram os olhos? Infames! Pagar-me-ão caro os ultrajes sofridos!…

E evidenciando o extremo desequilíbrio mental de que se fazia portador, continuava em rude tom de voz:

— Quem disse que a malfadada revolução dos franceses terá reflexos no Brasil? a loucura de um povo não pode alastrar-se a toda a Terra… Os privilégios dos nobres são invioláveis! Vêm dos reis, que são indiscutivelmente os escolhidos de Deus! Defenderemos nossas prerrogativas, exterminando a propaganda dos rebeldes e regicidas! Venderei meus escravos alfabetizados, nada de panfletos e comentários da rebelião. Como produzir sem o chicote no lombo? Cativos são cativos, senhores são senhores. E todos os fujões e criminosos conhecerão o peso dos meus braços… Matarei sem piedade. Cinco troncos de suplício! Cinco troncos! Eis aquilo de que necessito para refazer a nossa tranquilidade.

— Foi um fazendeiro desumano — esclareceu nosso orientador amigo. — Desencarnou nos últimos dias do século XVIII, mas ainda conserva a mente estagnada na concha do próprio egoísmo. Nada percebe, por enquanto, senão os quadros interiores, criados por ele mesmo, constando de escravos, dinheiro e lucros da antiga propriedade rural em que enterrou o pensamento, convertendo-se hoje em vampiro inconsciente de almas reencarnadas que lhe foram queridas no Brasil colonial. Com todo o respeito que devemos à fraternidade, podemos dizer que ele nada mais fora que desapiedado algoz dos infortunados cativos que lhe caíam sob o guante de ferro. Detentor de vastíssimo latifúndio, possuía consigo larga legião de servidores que lhe conheceram, de perto, a tirania e a perversidade.

Valendo-me da pausa espontânea, fitei o rosto do triste recém-chegado, com mais atenção, reconhecendo que os seus olhos, embora móveis quanto os de um felino, estavam vidrados, mortos…

Ia apontar para aquelas órbitas inexpressivas, quando o instrutor, adivinhando-me o impulso, acrescentou:

— Odiava os trabalhadores que lhe fugiam às garras e quando conseguia arrebatá-los ao quilombo, não somente os algemava aos troncos de martírio, mas queimava-lhes os olhos, reduzindo-os à cegueira, para escarmento das senzalas. Alguns dos raros quilombolas que resistiam à morte eram sentenciados, depois de cegos, às mandíbulas de cães bravios, de cuja sanha não conseguiam escapar. Com semelhante sistema de repressão, instalou o terror em derredor dos seus passos, granjeando, então, fama e riqueza. Contudo, veio a jornada inevitável do túmulo e, nessa fase nova, não encontrou senão desafetos, a se levantarem, junto dele, na feição de temíveis perseguidores. Muitas vítimas de alma branda lhe haviam desculpado as ofensas, mas outras não conseguiram a força para o perdão espontâneo e converteram-se em vingadores do passado a lhe cumularem o espírito de aflitivo pavor. Emaranhado nas teias da usura e fazendo do ouro o único poder em que acreditava, nem de leve se sentiu transportado de um modo de vida para outro, através da morte. Crê-se num cárcere de trevas, atormentado pelos escravos, prisioneiro das próprias vítimas. Vive, assim, entre a desesperação e o remorso. Martirizado pelas reminiscências das flagelações que decretava e hipnotizado pelos algozes de agora, dos quais no pretérito foi verdugo, vê-se reduzido a extrema cegueira, por se lhe desequilibrarem no corpo espiritual as faculdades da visão.


Enquanto se nos alongava o entendimento, o infeliz foi situado junto de Dona Celina.

A medida impressionou-me desfavoravelmente.

Logo Dona Celina, o melhor instrumento da casa, é quem deveria acolher o indesejável comunicante?!

Reparei-lhe a luminosa auréola, contrastando com a vestimenta pestilencial do forasteiro, e deixei-me avassalar por incoercível temor.

Semelhante providência não seria o mesmo que entregar uma harpa delicada às patas de uma fera?

Áulus, porém, deu-se pressa em explicar-nos:

— Acalmem-se. O amigo dementado penetrou o templo com a supervisão e o consentimento dos mentores da casa. Quanto aos fluidos de natureza deletéria, não precisamos temê-los. Recuam instintivamente ante a luz espiritual que os fustiga ou desintegra. É por isso que cada médium possui ambiente próprio e cada assembleia se caracteriza por uma corrente magnética particular de preservação e defesa. Nuvens infecciosas da Terra são diariamente extintas ou combatidas pelas irradiações solares, e formações fluídicas, inquietantes, a todo momento são aniquiladas ou varridas do Planeta pelas energias superiores do Espírito. Os raios luminosos da mente orientada para o bem incidem sobre as construções do mal, à feição de descargas elétricas. E, compreendendo-se que mais ajuda aquele que mais pode, nossa irmã Celina é a companheira ideal para o auxílio desta hora.


Indicando-a, exclamou:

— Observemos.

A médium desvencilhou-se do corpo físico, como alguém que se entregava a sono profundo, e conduziu consigo a aura brilhante de que se coroava.

Clementino não teve necessidade de socorrê-la. Parecia afeita àquele gênero de tarefa. Ainda assim, o condutor do grupo amparou-a, solícito.

A nobre senhora fitou o desesperado visitante com manifesta simpatia e abriu-lhe os braços, auxiliando-o a senhorear o veículo físico, então em sombra.

Qual se fora atraído por vigoroso ímã, o sofredor arrojou-se sobre a organização física da médium, colando-se a ela, instintivamente.

Auxiliado pelo guardião que o trazia, sentou-se com dificuldade, afigurando-se-me intensivamente ligado ao cérebro mediúnico.

Se Eugênia revelara-se benemérita enfermeira, Dona Celina surgia aos nossos olhos por abnegada mãezinha, tal a devoção afetiva para com o hóspede infortunado.

Dela partiam fios brilhantes a envolvê-lo inteiramente e o recém-chegado, em vista disso, não obstante senhor de si, demonstrava-se criteriosamente controlado.

Assemelhava-se a um peixe em furiosa reação, entre os estreitos limites de um recipiente que, em vão, procurava dilacerar.

Projetava de si estiletes de treva, que se fundiam na luz com que Celina-alma o rodeava, dedicada.

Tentava gritar impropérios, mas debalde.

A médium era um instrumento passiva no exterior, entretanto, nas profundezas do ser, mostrava as qualidades morais positivas que lhe eram conquista inalienável, impedindo aquele irmão de qualquer manifestação menos digna.

— Eu sou José Maria… — clamava o visitante, irritadíssimo, enfileirando outros nomes com o evidente intuito de lançar importância sobre a sua origem.

Amontoava reclamações, deitava reprimendas e revoltava-se exasperado, contudo, percebi que não usava palavras semelhantes às que proferira junto de nós. Achava-se como que manietado, vencido, embora prosseguisse rude e áspero.


Aparecia tão completamente implantado na organização fisiológica da medianeira, tão espontâneo e tão natural, que não sopitei as perguntas a me escorrerem céleres do pensamento.

A mediunidade falante em Celina era diversa? Eugênia e ela se haviam desligado da veste carnal, durante o trabalho… Por que a primeira se mantivera preocupada, qual enfermeira inquieta, enquanto que a segunda parecia devotada tutora do irmão dementado, seguindo-o com cuidados de mãe? por que numa delas a expectação atormentada e na outra a serena confiança?

Desculpando-nos a condição de aprendizes, Áulus passou a esclarecer-nos, enquanto Clementino e Raul Silva amparavam o comunicante, através de orações e frases renovadoras de incentivo ao bem.

— Celina — explicou, bondoso — é sonâmbula perfeita. A psicofonia, em seu caso, se processa sem necessidade de ligação da corrente nervosa do cérebro mediúnico à mente do hóspede que o ocupa. A espontaneidade dela é tamanha na cessão de seus recursos às entidades necessitadas de socorro e carinho, que não tem qualquer dificuldade para desligar-se de maneira automática do campo sensório, perdendo provisoriamente o contato com os centros motores da vida cerebral. Sua posição medianímica é de extrema passividade. Por isso mesmo, revela-se o comunicante mais seguro de si, na exteriorização da própria personalidade. Isso, porém, não indica que a nossa irmã deva estar ausente ou irresponsável. Junto do corpo que lhe pertence, age na condição de mãe generosa, auxiliando o sofredor que por ela se exprime qual se fora frágil protegido de sua bondade. Atraiu-o a si, exercendo um sacrifício voluntário, que lhe é doce ao coração fraterno, e José Maria, desvairado e desditoso, imensamente inferior a ela, não lhe pôde resistir. Permanece, assim, agressivo tanto quanto é, mas vê-se controlado em suas menores expressões, porque a mente superior subordina as que se lhe situam à retaguarda, nos domínios do espírito. É por essa razão que o hóspede experimenta com rigor o domínio afetuoso da missionária que lhe dispensa amparo assistencial. Impelido a obedecer-lhe, recebe-lhe as energias mentais constringentes que o obrigam a sustentar-se em respeitosa atitude, não obstante revoltado como se encontra.

Diante da pausa que se fazia natural, reparamos que Silva conseguia franco progresso na doutrinação.

O ex-tirano rural começava a assimilar algumas réstias de luz.

Hilário, contudo, provocou a continuidade da lição, perguntando:

— Embora seja preciosa auxiliar, como vemos, não se lembrará Dona Celina das palavras que o visitante pronuncia por seu intermédio?

— Se quiser, poderá recordá-las com esforço, mas na situação em que se reconhece, não vê qualquer vantagem na retenção dos apontamentos que ouve.


— Indubitavelmente — ponderou meu colega — observamos singular diferença entre as duas médiuns que caíram em transe… Tenho a ideia de que, na psicofonia consciente, Dona Eugênia exercia um controle mais direto sobre o hóspede que lhe utilizava os recursos, ao passo que Dona Celina, embora vigiando o companheiro que se comunica, deixa-o mais à vontade, mais livre… Caso não fosse Dona Celina a trabalhadora hábil, capaz de intervir a tempo, em qualquer circunstância menos agradável, não seria de preferir as faculdades de Dona Eugênia?

— Sim, Hilário, você tem razão. O sonambulismo puro, quando em mãos desavisadas, pode produzir belos fenômenos, mas é menos útil na construção espiritual do bem. A psicofonia inconsciente, naqueles que não possuem méritos morais suficientes à própria defesa, pode levar à possessão, sempre nociva, e que, por isso, apenas se evidencia integral nos obsessos que se renderam às forças vampirizantes.


Hilário refletiu um momento e tornou a considerar:

— Aqui, vemos a médium fora do vaso físico, dominando mentalmente a entidade que lhe é inferior… Mas… e se fosse o contrário? se tivéssemos aqui uma entidade intelectualmente superior senhoreando mentalmente a médium?

— Nesse caso — redarguiu o paciente interlocutor —, Celina seria naturalmente controlada. Se o comunicante fosse, nessa hipótese, uma inteligência degenerada e perversa, a fiscalização correria por conta dos mentores da casa e, em se tratando de um mensageiro com elevado patrimônio de conhecimento e virtude, a médium apassivar-se-ia com satisfação, porquanto lhe aproveitaria as vantagens da presença, tal como o rio se beneficia com as chuvas que caem do alto.

O instrutor ia continuar, mas Clementino solicitou-lhe o concurso para a remoção de José Miaria que, algo renovado principiava a aceitar o serviço da prece, chegando mesmo a atingir a felicidade de chorar.

Nosso orientador passou a contribuir na assistência ao visitante, que foi novamente entregue ao amigo paternal que o trazia, a fim de internar-se em organização socorrista distante.




[Psicofonia inconsciente — O mesmo que psicofonia sonambúlica, subentendendo-se a permanente consciência espiritual do medianeiro desdobrado de seu veículo somático.]



André Luiz
Francisco Cândido Xavier


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