Ação e Reação

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Capítulo VIII

Preparativos para o retorno


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O estudo na Mansão era fascinante, mas reclamava tempo.

No entanto, a oportunidade que nos fora oferecida era das mais valiosas.

Hilário e eu solicitamos o assentimento das autoridades a que devíamos consideração e efetuamos proveitosa entrosagem de serviços, permanecendo sediados no instituto por alguns meses, de maneira a recolher ensinamentos e fixar observações.

Foi assim que nos dispusemos a partilhar com Silas o trabalho atinente ao “processo Antônio Olímpio”, a cuja fase inicial assistíramos com fervoroso interesse.

Após seis dias sobre a reunião em que ouvimos a palavra de Sânzio, o grande Ministro, a irmã Alzira veio ao estabelecimento, em obediência ao programa que Druso passou a traçar para as tarefas que lhe diriam respeito.

Designado pelo diretor da casa, Silas recebeu-a em nossa companhia, alegando que, juntos, atenderíamos ao problema, agindo em cooperação.

A nobre criatura, depois das saudações usuais, esclareceu-nos que, amparada por amigos de certa colônia socorrista, fazia o possível por ajudar ao filho que deixara na Terra.

Luís, cujo espírito se afinava com os antigos sentimentos paternos, apegando-se aos lucros materiais exagerados — informou-nos a interlocutora —, sofria tremenda obsessão no próprio lar. Sob teimosa vigilância dos tios desencarnados, que lhe acalentavam a mesquinhez, detinha larga fortuna, sem aplicá-la em coisa alguma. Enamorara-se do ouro com extremada volúpia. Submetia a esposa e dois filhinhos, às mais duras necessidades, receoso de perder os haveres que tudo fazia por defender e multiplicar. Clarindo e Leonel, não satisfeitos com lhe seviciarem a mente, conduziam para a fazenda usurários e tiranos rurais desencarnados, cujos pensamentos ainda se enrodilhavam na riqueza terrestre, para lhe agravarem a sovinice. Luís, desse modo, respirava num mundo de imagens estranhas, em que o dinheiro se erigia em tema constante. Perdera, por isso, o contato com a dignidade social. Tornara-se inimigo da educação e acreditava tão somente no poder do cofre recheado para solucionar as dificuldades da vida. Adquirira o doentio temor de todas as situações em que pudessem surgir despesas inesperadas. Possuía grandes somas em estabelecimentos bancários que a própria companheira desconhecia, tanto quanto mantinha em custódia no lar enormes bens. Fugia deliberadamente à convivência afetiva, relaxara a própria apresentação individual e encravara-se em deplorável misantropia, obcecado pelo pesadelo do ouro que lhe consumia a existência.

Em seguida, a distinta senhora, buscando orientar as nossas futuras atividades, participou-nos que o afogamento dos cunhados se verificara em seus tempos de recém-casada, quando o filhinho mal ensaiava os primeiros passos, e que, após seis anos sobre a dolorosa ocorrência, encontrara, ela também, a desencarnação no lago terrível. Antônio Olímpio lhe sobrevivera, na Esfera carnal, quase três lustros e, por vinte anos, precisamente, padecia nas trevas. Luís, dessa forma, alcançava a madureza plena, tendo atravessado os quarenta anos de experiência física.

Ante a palavra do Assistente, que indagou quanto aos seus tentames de socorro ao marido desencarnado, Alzira declarou que isso lhe fora realmente impossível, porque as vítimas se haviam transformado em carcereiros ferozes do infeliz delinquente, e como, até então, não conseguira escudar-se em qualquer equipe de trabalho assistencial, não lhe permitiam os verdugos qualquer aproximação. Ainda assim, em ocasiões fortuitas, dispensava ao filho, à nora e aos dois netos algum amparo, o que se lhe fazia extremamente difícil, de vez que os obsessores velavam, irredutíveis, guerreando-lhe as influências.


À vista da pausa espontânea que se fizera em nosso entendimento, num testemunho de comovedora humildade consultou a Silas se a Mansão poderia facultar-lhe uma visita ao esposo, antes da viagem à procura do filho, segundo as tarefas programadas.

O Assistente aquiesceu, com o maior carinho, e guiamo-la, nós três, até o compartimento em que Antônio Olímpio repousava.

Avizinhando-se-lhe do leito, e ao vê-lo ainda prostrado e inconsciente, notei que o semblante da nobre senhora acusava visível alteração. As lágrimas borbulhavam-lhe, incoercíveis, dos olhos, agora conturbados por imensa dor. Afagou-lhe a cabeça, em que os traços fisionômicos, a meu ver, se reajustavam, pouco a pouco, e chamou-o pelo nome várias vezes.

O enfermo abriu os olhos, pousando-os sobre nós sem qualquer expressão de lucidez, pronunciando monossílabos desconexos.

Registrando-lhe a ruína mental, a notável mulher pediu a Silas permissão para orar, em nossa companhia, junto do esposo, o que lhe foi concedido prazerosamente.

Diante da nossa surpresa, Alzira ajoelhou-se à cabeceira, conchegou-lhe o busto de encontro ao colo, à maneira de abnegada mãe procurando conservar entre os braços um filhinho doente, e, levantando os olhos lacrimosos para o Alto, clamou, humilde, segundo a sua fé:


“Mãe Santíssima!

“Anjo tutelar dos náufragos da Terra, compadece-te de nós e estende-nos tuas mãos doces e puras!…

“Reconheço, Senhora, que ninguém te dirige, debalde, a palavra de aflição e de dor…

“Sabemos que o teu coração compassivo é luz para os que se tresmalham nas sombras do crime, e amor para todos os que mergulham nos abismos do ódio…

“Perdoaste aos que te aniquilaram o Filho Divino nos tormentos da cruz e, além da paciência com que lhes suportaste os insultos, vieste ainda do Céu, ofertando-lhes braços protetores!

“Mãe Bondosa, tu que ergues os caídos de tantas gerações terrenas e que saras, piedosamente, as feridas de quantos se petrificaram na crueldade, lança caridoso olhar sobre nós, meu esposo e eu, jungidos às consequências de duplo homicídio que nos fazem sangrar os corações. Eu e ele estamos enovelados nas teias de nosso delito. Embora estivesse ele sem mim, nas águas fatídicas, enquanto nossos irmãos experimentavam a asfixia mortal, sou-lhe partícipe das responsabilidades e identifico-me associada ao crime, também eu…

“Meu esposo, Mãe do Céu, devia ter o coração envolvido em pesada nuvem, quando se desvairou na estranha deliberação que nos chagou as consciências…

“Para os outros poderá ele ser tido como um impenitente que se apropriou de recursos alheios, infligindo a morte aos próprios irmãos, menos para meu filho e para mim, que lhe recebemos os maiores testemunhos de amor… Para outros, será réu, diante da Lei… Para nós, porém, é o companheiro e o amigo fiel… Para os outros, parecerá um egoísta sem direito à remissão, mas, para nós, é o benfeitor que nos assistiu na Terra, com imensurável ternura…

“Como não ser egoísta e criminosa também eu, Mãe Querida, se lhe usufruí os bens e me alimentei do carinho de seu coração? como não ser igualmente responsável na culpa, se toda a culpa dele se prendia ao propósito, embora louco, de assegurar-me superioridade em minha condição de mulher e de mãe?!…

“Advoga-nos a causa, Mediadora Celeste!

“Faze-nos voltar, juntos, à carne em que delinquimos, para que possamos expiar nossos erros!…

“Concede-me a graça de segui-lo, como servidora contente e agradecida, religada a quem devo tanta felicidade!…

“Reúne-nos novamente no mundo e auxilia-nos a devolver com lealdade e valor aquilo que roubamos.

“Não permitas, Anjo Divino, que venhamos a sonhar com o Céu, antes de resgatar nossas contas na Terra, e ajuda-nos a aceitar, dignamente, a dor que reedifica e salva!…

“Mãe, atende-nos!

“Estrela de nossa vida, arranca-nos da escuridão do vale da morte!…”


Diante de nós, o inesperado compelia-nos ao êxtase.

Enquanto falava em lágrimas, coroara-se Alzira de safirino esplendor.

A doce claridade a se lhe irradiar do coração inundara todo o aposento e, assim que a sua voz emudeceu, embargada e ofegante, excelso jorro de prateada luz desceu do Alto, atingindo-nos a todos e comunicando-se especialmente ao enfermo, que desferiu longo gemido de dor humanizada e consciente.

A prece de Alzira lograra um êxito que as operações magnéticas de Druso não haviam conseguido alcançar.

Antônio Olímpio descerrou desmesuradamente as pálpebras e mostrou no olhar a lucidez dos que despertam de longo e torturado sono… Agitou-se, sentindo na face as lágrimas da esposa que o beijava, enternecida, e bradou, tomado de selvagem contentamento:

— Alzira! Alzira!…

Ela conchegou-o, de encontro ao peito, com mais ternura, como quem quisesse pacificar-lhe o espírito atormentado, mas, a um sinal de Silas, dois enfermeiros aproximaram-se, restituindo-o ao sono.

Tentei algo dizer à sublime mulher, cuja oração nos erguera a tão culminante emotividade, mas não consegui.

Somente aqueles que viajaram, por muitos e muitos anos, sob a névoa da saudade e da angústia, poderão entender a comoção que naquela hora nos dominara, irresistível. Procurei observar o semblante de Hilário, mas meu companheiro mergulhara a cabeça nas mãos e, fitando o valoroso Assistente, notei que Silas buscava enxugar as lágrimas dos olhos…

Consolei-me.

Os grandes corações daquela casa de amor igualmente choravam, tanto quanto eu, mísero pecador, em luta por sanar minhas deficiências e, contemplando Alzira, que se achava agora de pé, acariciando os cabelos do infeliz, tive a ideia de que um anjo do Céu visitava um penitente do inferno.

Foi Silas quem nos arrancou ao silêncio, oferecendo o braço à abnegada irmã, para a saída, e explicando, prestimoso:

— A oração trouxe-lhe imenso bem, mas não lhe convém o despertamento senão gradativo. O sono natural e reparador ainda é uma necessidade em sua restauração positiva.

Alzira afastou-se como que mais tranquila, apesar da flagelação moral do reencontro.


Minutos de valiosa conversação desfrutamos, ainda, nos diversos setores de trabalho do grande instituto, até que, no momento aprazado, nos ausentamos, os quatro, devorando o caminho que para a nossa companheira representava uma senda de retorno ao antigo lar.

Na paisagem terrestre, enchia-se a madrugada de névoa rala e fria.

De volta aos velhos sítios que lhe haviam assinalado a dolorosa experiência, Alzira não disfarçava a emoção de que se via objeto.

Levemente amparada pelo braço de Silas, designava, aqui e ali, esse ou aquele trecho dos caminhos e pastagens que lhe evocavam mais expressivas recordações…

De repente, desvelou-se-nos, em estreita planície, o casario em que se lhe desenvolvera o drama funesto.

Em verdade, o luar revelava sólida construção em franca decadência. Extensos pátios laterais exibiam grandes jardins arruinados pelo pisoteio constante dos bovinos de grande porte. Porteiras desconjuntadas, tapumes derruídos e as varandas imundas falavam, sem palavras, da desídia dos moradores.

E entidades estranhas, embuçadas em largos véus de sombra, transitavam, absortas, nos grandes terreiros, como se ignorassem a presença umas das outras.

Com o visível receio de se fazer ouvida, a esposa de Olímpio notificou-nos, em surdina:

— São onzenários desencarnados, trazidos sub-repticiamente até aqui por Leonel e Clarindo, de modo a fortalecerem a usura no espírito de meu filho.

— Não nos enxergam? — perguntou Hilário compreensivelmente intrigado.

— Não — confirmou Silas. — Com certeza nos identificam a chegada, entretanto, pelo que deduzo, encontram-se demasiadamente fixados nas ideias em que se mancomunam. Não se preocupam com a nossa presença, desde que lhes não penetremos a faixa mental, comungando-lhes os interesses.

— Isso quer dizer — comentei — que se algo lhes falássemos acerca da fortuna terrena, excitando-lhes o gosto da posse humana, indiscutivelmente nos dispensariam a melhor atenção…

— Exatamente.

— E por que não o fazer? — inquiriu meu companheiro, curioso.

— Não nos seria lícito desperdiçar tempo — respondeu-nos o amigo —, mesmo porque o trabalho que nos compete espera por nós a reduzidos passos, e ignoramos, até agora, como se nos desdobrarão as tarefas.

Com efeito, entramos e o movimento no interior doméstico era de pasmar. Desencarnados de horripilante aspecto iam e vinham, através dos corredores extensos, conversando, aloucados, como se estivessem falando para dentro de si próprios.

Tentei algo registrar do que me era dado ouvir e o ouro constituía assunto fundamental de todos os solilóquios a se entrechocarem sem nexo.

Qual se percebesse, com mais funda acuidade, as tramas do ambiente, Silas estacou de chofre e, deixando-nos os três em recuado ângulo de velha sala, ausentou-se, recomendando-nos aguardar-lhe o retorno, cautelosamente.

Pretendia estudar, com antecipação, nosso quadro de serviço.

Decorridos alguns minutos, voltou a buscar-nos.

Conduziu a irmã Alzira para o aposento em que Adélia, a dona da casa, repousava junto dos filhinhos, explicando que não era conveniente que Alzira se encontrasse logo com os irmãos transformados em verdugos, e ali a deixamos sob a custódia de Hilário que, evidentemente, a contragosto se deixou ficar distanciado de nós, atendendo aos imperativos de vigilância.


A sós comigo, o Assistente esclareceu que, para efetuar o socorro com o proveito desejável, precisaríamos, antes de tudo, saber ouvir e que, em razão disso, procurasse de minha parte não lhe estorvar as atividades, na hipótese de me sentir assaltado por qualquer estranheza, diante das atitudes que ele fosse obrigado a assumir.

Compreendi quanto queria Silas dizer e dispus-me a observar, aprender e contribuir, sem alarde.

Penetramos estreito compartimento, onde alguém contemplava grandes maços de papel-moeda, acariciando-os com um sorriso malicioso.

No intuito de trazer-me bem informado, o Assistente segredou-me ao ouvido:

— Este é Luís, que, desligado do corpo pela influência do sono, vem afagar o dinheiro que lhe nutre as paixões.

Tínhamos pela frente um homem maduro, mas de fisionomia ainda moça, relaxado nas maneiras, cujos olhos parados sobre as cédulas encimavam-lhe a esquisita expressão de cobiça vitoriosa.

Relanceou apressadamente o olhar em volta, com a indiferença de quem não nos conseguia ver, e, tão logo após um minuto de observação nossa, qual se estivera ele vigiado por cérberos invisíveis, dois homens desencarnados, de presença desagradável, penetraram no pequeno recinto e, dirigindo-se desabridamente para nós, um deles interrogou:

— Quem são? quem são vocês?

— Somos amigos — replicou Silas, maquinalmente.

— Bem — aventou o outro —, nesta casa ingressam somente aqueles que saibam valorizar o dinheiro…

E, designando Luís, acrescentou:

— Para que ele não se esqueça de preservar a fortuna que é nossa.

Intuitivamente concluí que encarávamos com Leonel e Clarindo, os irmãos espoliados de outro tempo. Certo, porque lhes devêssemos algum esclarecimento à expectativa feroz com que nos seguiam os mínimos movimentos, Silas ajuntou:

— Sim, sim… quem não estimará os haveres que lhe pertençam?

— Muito bem! muito bem!… — responderam, satisfeitos, ambos os perseguidores, esfregando as mãos, na alegria de quem supostamente encontrava mais combustível para a fogueira de vingança a que se entregavam com desvario espantoso. E, adquirindo imediata confiança em nós, ante as palavras com que o Assistente lhes sossegara a inquietação, Clarindo, o mais brutalizado dos dois, passou a dizer:

— Fomos vítimas de terrível traição e perdemos o corpo aos golpes de um irmão infeliz que nos pilhou os bens, e aqui estamos para o desforço justo.

Gargalhou de estranha maneira e acentuou:

— O maldito, porém, acreditou que a morte lhe apagaria o crime e que nós, os desventurados que lhe sucumbimos às mãos, estaríamos reduzidos a pó e cinza,. Apossou-se-nos dos haveres, depois de promover um acidente espetacular, no qual fomos por ele assassinados sem compaixão. De que lhe valeu, no entanto, gozar à nossa custa, ae a morte não existe e se os delinquentes, no corpo ou fora dele, estão algemados às consequências das suas ações? O bandido -sofrerá os resultados da infâmia contra nós e aqui respira o filho dele, cujos menores movimentos governaremos, até que nos restitua a fortuna de que somos legítimos senhores…

Por tempo relativamente longo, ambos despenderam largo repertório de lamentações, reforçando as cores do sinistro painel mental a que se acomodavam. E, talvez cansados de martelar nas mesmas alegações, sem qualquer resposta de nossa parte, confiaram-se a pausa mais dilatada, que Clarindo rompeu, dirigindo-se ao Assistente em tom amargo:

— Não admitem vocês que temos razão?

— Sim — aprovou Silas, enigmático —, todos temos razão, entretanto…

— Entretanto? — atalhou Leonel, algo cínico quererá, porventura, interferir em nossos propósitos?

— Nada disso — consertou meu amigo com inflexão jovial. — Desejo simplesmente lembrar que por dinheiro já lutei excessivamente, crendo que o direito prevalecia de meu lado…

Certo porque a observação algo dúbia chocava os interlocutores, o chefe de nossa expedição valeu-se da expectativa natural e perguntou:

— Amigos, vemos que esta casa permanece largamente povoada de irmãos nossos ensandecidos… Serão todos eles credores desta família infortunada?

O olhar inteligente que o companheiro me endereçou deu-me a perceber que o inquérito afetuoso guardava o objetivo de entreter a confiança dos vingadores intrigados.

Leonel, que me parecia o cérebro da empresa delituosa, foi presto na resposta.

— É que, até agora — falou, impassível —, precisávamos dividir o tempo entre pai e filho, e, por isso, localizamos aqui, temporariamente, os onzenários enlouquecidos que, fora do campo carnal, apenas mentalizam o ouro e os bens a que se afeiçoaram no mundo, de modo a nos favorecerem a tarefa. Acompanhando o sovina que nos obedece ao comando, constrangem-no a viver, tanto quanto possível, com a imaginação aprisionada ao dinheiro que ele ama com tresloucada paixão.

— No entanto, presentemente — informou Clarindo, magoado —, o criminoso que sitiávamos nas trevas nos foi arrebatado à vigilância. Disporemos de mais tempo para acelerar a nossa desforra. Pagará o filho dobrado preço, já que o assassino foi ocultado aos nossos olhos…


Longe de qualquer precipitação na defesa da verdade e do bem, o Assistente falou, calmo:

— O esclarecimento nos faz crer que este homem e designou Luís, que prosseguia fascinado pelos maços de cédulas da gaveta abarrotada —, além do apego enfermiço à precária riqueza humana, ainda sofre a pressão de outras mentes, alucinadas quanto a dele, nos enganos da posse material. Neste caso, o doentio desejo de que se sente objeto é naturalmente elevado à tensão máxima…

Leonel, percebendo que Silas penetrava o âmago do problema com surpreendente facilidade, explicou, entusiasmado:

— Sim, aprendemos nas escolas de vingadores que todos possuímos, além dos desejos imediatistas comuns, em qualquer fase da vida, um “desejo-central” ou “tema básico” dos interesses mais íntimos. Por isso, além dos pensamentos vulgares que nos aprisionam à experiência rotineira, emitimos com mais frequência os pensamentos que nascem do “desejo-central” que nos caracteriza, pensamentos esses que passam a constituir o reflexo dominante de nossa personalidade. Desse modo, é fácil conhecer a natureza de qualquer pessoa, em qualquer plano, através das ocupações e posições em que prefira viver. Assim é que a crueldade é o reflexo do criminoso, a cobiça é o reflexo do usurário, a maledicência é o reflexo do caluniador, o escárnio é o reflexo do ironista e a irritação é o reflexo do desequilibrado, tanto quanto a elevação moral é o reflexo do santo… Conhecido o reflexo da criatura que nos propomos retificar ou punir é, assim, muito fácil superalimentá-la com excitações constantes, robustecendo-lhe os impulsos e os quadros já existentes na imaginação e criando outros que se lhes superponham, nutrindo-lhe, dessa forma, a fixação mental. Com esse objetivo, basta alguma diligência para situar, no convívio da criatura malfazeja que precisamos corrigir, entidades outras que se lhe adaptem ao modo de sentir e de ser, quando não possamos por nós mesmos, à falta de tempo, criar as telas que desejemos, com vistas aos fins visados, por intermédio da determinação hipnótica. Através de semelhantes processos, criamos e mantemos facilmente o “delírio psíquico” ou a “obsessão”, que não passa de um estado anormal da mente, subjugada pelo excesso de suas próprias criações a pressionarem o campo sensorial, infinitamente acrescidas de influência direta ou indireta de outras mentes desencarnadas ou não, atraídas por seu próprio reflexo.

E, sorrindo, o inteligente perseguidor disse, sarcástico:

— Cada um é tentado exteriormente pela tentação que alimenta em si próprio.

De mim mesmo, achava-me perplexo. Nunca ouvira um verdugo, aparentemente vulgar, com tanto conhecimento e consciência de seu papel.

Figurava-se-me assistir a um curso rápido de sadismo mental, extravagante e frio.

Silas, mais treinado que eu, no trato com os amigos daquela condição, não exteriorizou qualquer sentimento de pesar ou de assombro, na fisionomia serena.

Entremostrando, porém, grande interesse em torno da preleção, considerou:

— Indiscutivelmente, a exposição é perfeita. Cada qual de nós vive e respira nos reflexos mentais de si mesmo, angariando as influências felizes ou infelizes que nos mantêm na situação que buscamos… Os Céus ou as Esferas Superiores são constituídos pelos reflexos dos Espíritos santificados e o inferno…

— É o reflexo de nós mesmos — completou Leonel com uma gargalhada.


Creio que, em me assinalando o interesse no aprendizado em curso, o Assistente pediu ao irmão de Clarindo alguma demonstração prática do que afirmara teoricamente para nosso estudo, ao que ele assentiu com prazer, informando:

— O avarento sob nossa vista guarda o propósito de comprar ou extorquir determinada gleba vizinha, a qualquer preço, mesmo em se tratando de transação criminosa, para valorizar as aguadas da propriedade que nos pertence. Tratando-se de assunto no tema essencial da existência dele, que é a cobiça, facilmente recolherá as imagens que eu lhe deseje transmitir, utilizando-me da própria onda mental em que as suas ideias habitualmente se exprimem…

E, passando das palavras para a ação, colocou a destra sobre a fronte de Luís, mantendo-se na profunda atenção do hipnotizador governando a presa.

Vimos o pobre amigo, desligado do corpo físico, arregalar os olhos com a volúpia do faminto que contempla um prato saboroso, a distância, e exibir uma carantonha de maldade satisfeita, falando a sós:

— Agora! agora! as terras serão minhas! muito minhas! Ninguém concorrerá com meus preços! ninguém!.

Logo após, afastou-se, lépido, com a expressão indefinível de um louco.

Acompanhamo-lo até à saída e, da extensa varanda, podíamos vê-lo, avançando, à pressa, desaparecendo, por fim, no grande maciço de arvoredo próximo, na direção de fazendola fronteiriça.

— Viram? — exclamou Leonel, contente — transmiti-lhe ao campo mental um quadro fantástico, através do qual as terras do vizinho estariam em leilão, caindo-lhe, enfim, nas unhas. Bastou que eu mentalizasse uma tela nesse sentido, arquitetando o sítio à venda, para que ele a tomasse por realidade indiscutível, porquanto, em se tratando de nosso reflexo fundamental, somos induzidos a crer naquilo que desejamos aconteça… Tão logo termine o fluxo controlado de minha influenciação hipnótica, retomará o corpo carnal, lambendo os beiços, na certeza de haver sonhado com a falência da granja sobre a qual pretende um título de posse.

Silas, com manifesta intenção, ajuntou, sereno:

— Ah! sim!… Estamos diante de um processo de transmissão de imagens, até certo ponto análogo aos princípios dominantes na televisão, no reino da eletrônica, atualmente em voga no Plano terrestre. Sabemos que cada um de nós é um fulcro gerador de vida, com qualidades específicas de emissão e recepção. O campo mental do hipnotizador, que cria no mundo da própria imaginação as que deseja exteriorizar, é algo semelhante à câmara de imagem do transmissor comum, tanto quanto esse dispositivo é idêntico, em seus valores, à câmara escura da máquina fotográfica. Plasmando a imagem da qual se propõe extrair o melhor efeito, arroja-a sobre o campo mental do hipnotizado que, então, procede à guisa do mosaico em televisão ou à maneira da película sensível do serviço fotográfico. Não ignoramos que na transmissão de imagens, a distância, o mosaico, recolhendo os quadros que a câmara está explorando, age como um espelho sensibilizado, convertendo os traços luminosos em impulsos elétricos e arremessando-os sobre o aparelho de recepção que os recebe, através de antenas especiais, reconstituindo com eles as imagens pelos chamados sinais de vídeo, e recompondo, dessa forma, as cenas televisadas na face do receptor comum. No problema em estudo, você, Leonel, criou os quadros que se propôs transmitir ao pensamento de Luís, e, usando as forças positivas da vontade, coloriu-os com os seus recursos de concentração na sua própria mente, que funcionou como câmara de imagem. Aproveitando a energia mental, muito mais poderosa que a força eletrônica, projetou-os, como legítimo hipnotizador, sobre o campo mental de Luís, que funcionou qual mosaico, transformando as impressões recebidas em impulsos magnéticos, a reconstituírem as formas-pensamento plasmadas por você nos centros cerebrais, por intermédio dos nervos que desempenham o papel de antenas específicas, a lhes fixarem as particularidades na esfera dos sentidos, num perfeito jogo alucinatório, em que o som e a imagem se entrosam harmoniosamente, como acontece na televisão, em que a imagem e o som se associam com o apoio eficiente de aparelhos conjugados, apresentando no receptor uma sequência de quadros que poderíamos considerar como sendo “miragens técnicas”.

Os vingadores, tanto quanto eu mesmo, registraram o esclarecimento, sumamente surpreendidos.

O Assistente, psicólogo, valera-se de argumentação à altura da que assinaláramos na boca de Leonel, certamente para cientificá-lo de que ele também, Silas, conhecia os processos da obsessão em suas minudências.

Leonel, admirado, abraçou-o e exclamou:

— Companheiro, companheiro, de que escola procede você? Sua inteligência interessa-nos.

O chefe de nossa expedição pronunciou alguns monossílabos e chamou-me à retirada, pretextando serviço a fazer.

Os irmãos, avezados à rebeldia, permutaram estranho olhar, como a dizerem entre si que pertencíamos a algum núcleo infernal distante e que lhes não convinha molestar-nos.

Insistiram, porém, conosco a que retornássemos no dia seguinte para a troca de ideias, ao que Silas anuiu com evidente satisfação.

Mais alguns minutos e o Assistente, em minha companhia, retirou Alzira e Hilário para o exterior, colocando-nos todos de regresso à Mansão.

O prestimoso servidor do bem, na viagem de volta, mantinha-se silencioso, pensando, pensando…

Contudo, diante de minha perplexidade, aclarou, fraterno:

— Não, André. Ainda é cedo para apresentar Alzira aos infortunados verdugos. Pela conversação de Leonel, percebi que cruzamos o caminho de duas vigorosas inteligências, cuja modificação inicial há de ser feita com amor para realizar-se com segurança… Voltaremos amanhã, sem a presença de nossa amiga, para um entendimento mais estável e, por isso mesmo, mais valioso.

Passei, desse modo, a esperar ansiosamente pelo dia seguinte.




Refere-se a entidade a organizações mantidas por Inteligências criminosas, homiziadas temporariamente nos Planos inferiores. — (Nota do Autor espiritual.)



André Luiz
Francisco Cândido Xavier


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