E a vida continua...
Versão para cópiaTrabalho renovador
Vida nova começou para Evelina e Ernesto, especialmente para Evelina.
Indispensável auxiliar Túlio, abençoá-lo, renová-lo.
Para isso, os dois amigos se matricularam em colégio de estudos preparatórios de mais altas ciências do espírito. Radiantes de esperança e entusiasmo, adquiriam conhecimentos em torno de evangelização, reforma íntima, sintonia mental, afeição, agressividade, autocontrole, obsessão, reencarnação.
A fim de conversar construtivamente com aquele que se lhe extraviara à conta pessoal, a senhora Serpa munia-se de instruções com que lhe pudesse ganhar o raciocínio. Competia-lhe o esforço mais grave, desfazer-lhe na mente o quisto de ilusões que ela própria criara. Fantini, contudo, que se compadecera fundamente do rapaz menos feliz, de acordo com avisos do Instituto de Proteção, poderia acompanhá-la a pequena distância, com a obrigação de intervir quando necessário.
No dia marcado para início da tarefa, a subdividir-se em visitas de esclarecimento e enfermagem três vezes por semana, Ribas seguiu em pessoa os dois obreiros para o refúgio de saúde mental em que os novos deveres se lhes impunham.
Integrando diminuta comunidade de enfermos da alma, o jovem Mancini se achava recluso em solitária dependência que o Instrutor informou estar erguida à base de material isolante contra o impacto de vibrações suscetíveis de agravar-lhe a sede de companhias menos recomendáveis.
O orientador apresentou ambos os companheiros às autoridades e auxiliares do pouso de reajuste e, tanto Evelina quanto Ernesto, sob o beneplácito da simpatia geral, puseram mãos à obra.
Túlio acolheu, encantado, a presença da moça e, de começo, reafirmava-lhe os protestos de devoção afetiva em ditirambos de lealdade e ternura.
A senhora Serpa, no entanto, redobrou cautelas emolduradas de carinho, suplicando a inspiração da Vida Maior, para não falhar na missão que abraçara.
Os diálogos terapêuticos prosseguiam, pontualmente. Apesar disso, Mancini não se desfixava da paixão que o absorvia, lembrando um barco chumbado ao solo, incapaz de afastar-se do cais.
Principiasse Evelina a preparar clima adequado às lições e ele choramingava, à maneira de criança doente. Declarava-se indisposto e inabilitado para o estudo, desconsiderado, ofendido nos brios próprios. Asseverava-se infenso a qualquer ponderação filosófica, alegando não sentir inclinação para assuntos de fé. Insistia em reconhecer-se unicamente um homem-homem, na definição dele mesmo, e, nessa condição, não queria uma enfermeira ou preceptora, mesmo solícita quanto a moça se revelava, e sim uma companheira, a mulher dos seus sonhos.
Evelina ouvia pacientemente os remoques e lamentações incessantes, aparando-lhe os golpes e podando-lhe as impressões destrutivas, sempre assistida por Ernesto que lhe supervisionava os esforços com generosa atenção. Imbuída das responsabilidades que lhe assinalavam agora a vida e sendo criatura profundamente emotiva, a senhora Serpa concentrava-se, de modo constante, no esposo, nele investindo toda a carga de seus potenciais afetivos. Para sentir-se na posição de tutora maternal de Mancini, experimentava a necessidade de ser mais entranhadamente a mulher de Caio. Por essa razão, mentalizava-lhe a imagem, a cada passo, endereçando-lhe em silêncio os seus mais belos pensamentos de amor. É verdade que Serpa não lhe havia sido o consorte ideal. Além disso, sabia-o agora homicida, com refinados recursos de inteligência para ocultar-se. Evelina, porém, humana quanto qualquer ser humano, ponderava, de si para consigo, que ele se fizera criminoso por amá-la. Eliminara a existência de Túlio para disputar-lhe o coração, em agoniado lance afetivo. Aspirava a revê-lo em pessoa, haurir-lhe o calor da presença, a fim de revigorar-se para os embates morais a que se confiava; entretanto, por mais solicitassem permissão para visitar a família terrena, Fantini e ela obtinham regularmente a mesma resposta dos mentores: “muito cedo”.
Reconfortavam-se, por isso, com estudo e trabalho.
De vez em vez, o tête-à-tête entre ambos. As confidências.
Ernesto falava enternecidamente da esposa Elisa e da filha Celina. Sensibilizado, entretecia no mágico painel da saudade a imagem das duas por espelhos cristalinos de amor, em que se comprazia mirar-se, conquanto a filha o tratasse, muitas vezes, com rebeldia cruel… Decerto que a viúva e a jovem não arrostavam dificuldades materiais de vulto maior. Legara-lhes renda expressiva. Boa casa. Algum dinheiro em mãos honestas a fornecer-lhes pensão sólida e os seguros em que montara a defensiva doméstica.
Mas… e a ausência? Indagava-se, constantemente, junto da amiga que se lhe transformara em irmã de todas as horas. A ausência, a distância!…
Perdiam-se os dois em conjeturas, prelibando alegrias de reencontro. Achavam-se suficientemente informados de que entre eles e os amados do mundo se levantava agora o muro das vibrações diferentes. Em vista disso mesmo, não mais lhes seria possível retomar-lhes a atenção como quem volta de uma viagem. Competia-lhes a obrigação da conformidade,. perante quaisquer transformações a que se lançassem. Nesse sentido, até ali, haviam registrado as mais diversas narrações de mortos que procediam da Terra, desacoroçoados e tristes, ante a impossibilidade de serem vistos, ouvidos, assinalados, tocados pelos parentes. Muitos voltavam consolados e esperançosos, como que libertos de laços e algemas que lhes fossem pesados aos corações, mas outros muitos regressavam desencantados e sorumbáticos, evidenciando pouca disposição para conversar. Referiam-se a amigos e a mudanças radicais na vida caseira, mencionavam desastres e falências na ordem afetiva de almas inolvidáveis. Eles dois, porém, se identificavam otimistas, confiantes. Evelina entusiasmava-se, derramando-se em nobres impressões, diante de Ernesto, atento. Caio, na opinião dela, caíra em deslizes; todavia, reabilitara-se-lhe no conceito de esposa pelo alto gabarito de ternura e abnegação a que se elevara, durante os dias últimos da enfermidade que lhe fora fatal ao corpo físico. Em verdade, podia ter sido desleal, durante algum tempo, lá isso podia. Era um homem com as exigências naturais da vida comum e obviamente se distraía, enquanto lhe aguardava a cura e o refazimento, mas à frente da morte, diante da longa separação… modificara-se, parecia haver recuperado a condição do noivo, amoroso, terno… E Evelina, ao contemplá-lo com os olhos da imaginação, supunha-o agoniado e infeliz, no anseio de livrar-se da carne, a fim de reacolhê-la nos braços. Antecipava opiniões, enquanto Fantini lhe guardava, com interesse, a doce expectativa. Solenizando alegações, asseverava que Serpa cometera até mesmo a loucura de eliminar a presença de Túlio, no intuito de desposá-la. Fora isso terrível calamidade, fora. No fundo, porém, Evelina mostrava traços inequívocos da vaidade de sentir-se querida. Declarava, resoluta, que tal qual se esforçava por Mancini, desvelar-se-ia, mais tarde, por Serpa. Esmerar-se-ia em ajudá-lo em qualquer reparação que se fizesse precisa.
Ernesto volvia, então, a biografar-se, contando histórias do lar. Amava a esposa, entranhadamente, e confessava que praticara muitos disparates, quando mais moço, de maneira a preservar a tranquilidade doméstica. E a filha? Celina era uma bênção que lhe acalentara o coração na madureza. Sempre terna, compreensiva, devotada. Sonhara para ela um marido bom, amigo; no entanto, deixara-a aos vinte e dois de idade sem casamento à vista. Conquanto a dor de pai, distanciado de casa, depunha na filha a maior confiança. Não lhe temia o futuro. Além de provida com mesada apreciável, lecionava Inglês com mestria. Ganhava dinheiro e sabia guardar.
Mantinham-se, desse modo, sucessivas conversações entre os dois. Sentimentais. Saudosistas.
Passados seis meses de atenção e doutrinação, a benefício de Túlio, Ribas veio examiná-lo em pessoa, segundo promessa havida.
Após verificar a pontualidade e a eficiência de Evelina, através de anotações referendadas pelas autoridades orientadoras da casa, penetrou o aposento do enfermo, categorizado para ele como médico em acurada inspeção. Ao primeiro olhar, porém, reconheceu que Mancini apresentava escasso proveito com as lições recebidas.
Apático, denunciava na mente uma ideia central: Evelina. E com Evelina no miolo das mais profundas cogitações, vinham as ideias-satélites: o anseio de transformá-la em objeto de posse única, o tiro de Caio, o desejo de vingança e as escuras alusões da autopiedade.
Ribas não descobria a mais ligeira fresta, naquele coração pesado de angústia, para filtrar um só raio de otimismo e esperança.
Às primeiras manifestações do inquérito afetivo, respondeu ao Instrutor, com a tristeza de um doente que se sabe sem cura:
— Qual, doutor, sem Evelina comigo, nada consigo entender. Se ouço Evangelho, penso que ela — ela só é o anjo capaz de salvar-me; se anoto ensinamentos, acerca de autocontrole, vejo-a no pensamento, como sendo a única alavanca, bastante forte para governar-me; se escuto exortações à fé, acabo querendo-a para meu reconforto exclusivo; se recebo esclarecimentos em torno de obsessão, termino a aula confessando a mim mesmo que, se pudesse, largaria este hospital a fim de persegui-la e tomá-la em meus braços, ainda que para isso devesse caminhar até os derradeiros confins do mundo!…
O mentor sorriu, paternal, e aconselhou calma, equilíbrio.
— Reflitamos, meu filho, que somos espíritos eternos. Urge conservar serenidade, paciência… Felicidade é obra do tempo, com a bênção de Deus.
O rapaz revidou ácido, irreverente. Não pedira, não aceitava conselhos.
Hábil psicólogo, Ribas despediu-se.
À noite, esteve com os amigos e elogiou o trabalho de Evelina.
A empresa de reeducação fora efetuada com segurança. Túlio, entretanto, não reagira construtivamente. Mostrava-se abúlico, embutido nas fantasias que estabelecera em prejuízo próprio.
E terminou dizendo para Fantini e a senhora Serpa que o ouviam, atentos:
— Não vejo qualquer interesse para Mancini na permanência aqui. Forçoso envidarmos esforços para que aceite, voluntariamente, a miniaturização.
— Renascer? — redarguiu Evelina, assustada. Será preciso tanto?
E Ribas:
— Nosso amigo está mentalmente enfermo, profundamente enfermo, traumatizado, angustiado, fixado… O remédio será começar de novo… Ainda assim, terá dificuldades e desajustes pela frente.
O benévolo mentor não traçou advertências, nem articulou qualquer sugestão. E tanto Ernesto, quanto Evelina, enfronhados agora nos imperativos e provas da reencarnação, silenciaram de chofre, pensando, pensando…
Miniaturização ou restringimento, no Plano Espiritual, significa estágio preparatório para nova reencarnação. (Nota do autor espiritual)
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