E a vida continua...

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Capítulo II

Na porta da intimidade

Não longe surgiu pequeno carro de passeio. Vinha devagar, muito devagar.

Vendo o animal que se aproximava, a passo lento, o cavalheiro disse à dama:

— Compreendo-lhe a necessidade de repouso, mas se aceita uma excursão pelas termas…

— Agradeço — respondeu —, contudo, não posso. Refazimento é agora minha maior terapêutica.

— Efetivamente, nosso caso não comporta sacudidelas.

A pequena viatura passou rente ao sossegado retiro.

Os dois perceberam a razão da marcha morosa. O veículo fora decerto acidentado e mostrava uma roda partida, avançando dificilmente; enquanto isso, o jovem boleeiro, a pé, guiava o animal com extremado carinho, deixando-o quase livre.

A senhora Serpa e o improvisado amigo seguiram-os com o olhar, até que desaparecessem na esquina próxima.

Em seguida, Fantini fixou um grande sorriso e enunciou muito calmo:

— Senhora Serpa…

Ela, porém, cortou-lhe a frase com outro sorriso franco e corrigiu, jovial:

— Chame-me Evelina. Creio que, sendo nós irmãos numa doença rara, temos direito à estima espontânea.

— Muito bem!… — acentuou o interlocutor e aduziu: — doravante, sou também apenas Ernesto, para a senhora.

Ele deixou cair a mão descorada no encosto do banco enorme e prosseguiu:

— Dona Evelina, a senhora já leu algo de espiritualismo?

— Não.

— Pois quero dizer-lhe que a charrete, ainda agora sob nossa observação, me fez lembrar certos apontamentos que esquadrinhei, nos meus estudos de ontem. O interessante escritor que venho compulsando, numa definição que ele mesmo considera superficial, compreende a criatura humana como um ternário, semelhante ao carro, ao cavalo e ao condutor, os três juntos em serviço…

— Como pode ser isso? — interrogou Evelina, sublinhando a palavra de surpresa e gracejando com o olhar.

— O carro equivale ao corpo físico, o animal pode ser comparado ao corpo espiritual, modelador e sustentador dos fenômenos que nos garantem a existência física, e o cocheiro simboliza, em suma, o nosso próprio espírito, isto é, nós mesmos, no governo mental da vida que nos é própria. O carro avariado, qual o que vimos aqui, recorda um corpo doente, e, quando um veículo assim se faz de todo imprestável, o condutor abandona-o à sucata da natureza e prossegue em serviço, montando consequentemente o animal para continuarem ambos, no curso de sua viagem para diante… Isso ocorreria, de maneira natural, na morte ou na desencarnação. O corpo de carne, tornado inútil, é restituído à terra, enquanto que nosso espírito, envergando o envoltório de matéria sutil, que, aliás, lhe condiciona a existência terrestre, passa a viver em outro plano, no qual a roupa de matéria mais densa para nada mais lhe serve…

Evelina riu-se, sem perder embora o respeito que devia ao interlocutor, e alegou:

— Teoria engenhosa!… O senhor me fala da morte, e que me diz desse trio durante o sono?

— Muito razoavelmente, no sono físico, há descanso para os três elementos, descanso esse que varia de condutor para condutor, ou melhor, de espírito para espírito. Quando dormimos, o veículo pesado ou corpo carnal repousa sempre, mas o comportamento do espírito difere infinitamente. Por exemplo, depois de copioso repasto para o condutor e o cavalo, é justo se imobilizem ambos na inércia, tanto quanto o carro que carregam; entretanto, se o boleeiro se caracteriza por hábitos de estudo e serviço, quando o veículo se detém na oficina para reajuste ou reabastecimento, ei-lo que utiliza o animal para excursões educativas ou tarefas nobilitantes. De outras vezes, se o condutor é ainda profundamente inábil ou inexperiente, patenteando receie da viagem, sempre que o veículo exija restauração, ei-lo que se oculta nas imediações do posto socorrista, esperando que o carro se refaça, a fim de retomá-lo, à feição de armadura para a própria defesa.


Evelina estampou um gesto de incredulidade e obtemperou:

— Nada conheço de espiritualismo…

— É profitente de alguma religião particularizada?

— Sim, sou católica, sem fanatismo, mas francamente determinada a viver segundo os preceitos de minha fé. Pratico as instruções dos sacerdotes, crendo neles.

— A senhora deve ser louvada por isso. Toda convicção pura é respeitável. Invejo-lhe a confiança perfeita.

— Não é religioso, o senhor?

— Quisera ser. Sou um procurador da verdade, livre atirador no campo das ideias…

— E lê espiritualismo por desfastio?

— Por desfastio? Oh! não! Leio por necessidade. Dona Evelina, a senhora esqueceu? Estamos na bica de uma cirurgia que nos pode ser fatal… Nossas malas talvez estejam prontas para uma longa excursão!…

— Da qual ninguém volta.

— Quem pode saber?

— Entendo — ajuntou a dama, sorrindo —, estuda espiritualismo, à maneira do viajante que aspira a conhecer o dinheiro, a língua, os costumes e as modas do país estrangeiro que tenciona visitar. Informações resumidas, cursos rápidos…

— Não nego. Tenho tido mais tempo ao meu dispor e desse tempo faço hoje os investimentos que posso, nos domínios de tudo o que se relacione com as ciências da alma, principalmente com aquilo que se refira à sobrevivência e à comunicação com os Espíritos, supostos habitantes de outras esferas.

— E o senhor já encontrou a prova de semelhante intercâmbio? conseguiu mensagens diretas com algum de seus mortos queridos?

— Ainda não.

— Isso, acaso, não lhe desencoraja a busca?

— De modo algum.

— Prefiro as minhas crenças tranquilas. A confiança sem dúvida, a oração sem tortura mental…

— Será uma bênção o seu estado íntimo e acato, com todo o meu coração, a sua felicidade religiosa; no entanto, se houver uma outra vida à nossa espera e se a indagação aparecer em sua alma?

— Como pode falar desse modo se ainda não obteve a suspirada demonstração da sobrevivência?

— Não me é possível descrer do critério dos sábios e das pessoas de elevado caráter, que a tiveram.

— Bem — explicou-se Evelina bem-humorada —, o senhor estará com os seus pesquisadores, eu ficarei com os meus santos…

— Não faço qualquer objeção, quanto à excelência dos seus advogados — revidou Fantini no mesmo tom mas não consigo furtar-me à sede de estudo. Antes da moléstia, reconhecia-me seguro da vida. Comandava os acontecimentos, nem sabia, ao menos, da existência desse ou daquele órgão no meu corpo. Entretanto, um tumor na supra-renal não é uma pedra no sapato. Tem qualquer coisa de um fantasma, anunciando contratempos e obrigando-me a pensar, raciocinar, discernir…

— Tem medo da morte? — chasqueou a moça, com fina verve.

— Não tanto, e a senhora?

— Bem, eu não desejo morrer. Tenho meus pais, meu esposo; meus amigos. Adoro a vida, mas…

— Mas?…

— Se Deus determinar a extinção dos meus dias, estarei conformada.

— Porventura, não tem problemas? Nunca sofreu a influência dos males que nos atormentam o dia a dia?

— Não diga que me vai examinar a consciência; já tenho que dar contas de mim mesma aos confessores.

E rindo-se, desembaraçadamente, reforçou:

— Admito os males que outros nos façam como parcelas do resgate de nossos pecados perante Deus; no entanto, os males que fazemos são golpes que desferimos contra nós mesmos. Supondo assim, procuro preservar-me, isto é, reconheço que não devo ferir a ninguém. Em razão disso, busco na confissão um contraveneno que, de tempos a tempos, me imunize, evitando a explosão de minhas próprias tendências inferiores.

— Admirável que uma inteligência, qual a sua, se acomode com tanto gosto e sinceridade à confissão.

— Certamente preciso saber com que sacerdote me desinibo. Não quero comprar o Céu com atitudes calculadas e sim agir em oposição aos defeitos que carrego e, por isso, não seria correto abrir o coração diante de quem não me possa entender e nem ajudar.

— Compreendo…

Retomando o trato íntimo, à base de respeitosa confiança, a senhora Serpa considerou:

— Acredite que também eu, ante a enfermidade, tenho vivido mais cuidadosa. Até mesmo na véspera de minha vinda para cá, harmonizei-me com os deveres religiosos. Confessei-me. E das inquietações que confiei ao meu velho diretor, posso dizer-lhe a maior.

— Não, não!… Não me conceda tanto… — tartamudeou Fantini, espantado com a devoção carinhosa em que Evelina se exprimia.

— Oh! porque não? Estamos aqui na ideia de que somos amigos de muito tempo. O senhor me fala de suas preparações ante as probabilidades da morte e não me deixa tocar nas minhas?

Desataram-se ambos em riso claro e, quando a pausa mais longa se intrometeu no diálogo, entreolharam-se, de modo significativo. Um e outro fixaram no rosto inequívoca nota de susto.

A mirada recíproca lhes fazia observar que haviam caminhado, a passos compridos, para a intimidade profunda.

Onde vira antes aquela jovem senhora que a beleza e o raciocínio tanto favoreciam? — pensava Ernesto, atordoado.

Em que lugar teria encontrado alguma vez aquele cavalheiro maduro e inteligente que tão bem conjugava simpatia e compreensão? — refletia a senhora Serpa, incapaz de esconder o agradável assombro que a dominava.

O intervalo consumiu segundos inquietantes para os dois, enquanto o crepúsculo, em derredor, acumulava cores e sombras, anunciando a noite próxima.




André Luiz
Francisco Cândido Xavier


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