E a vida continua...
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Evelina somente voltou a pensar na presença confortadora de Ernesto, o amigo desconhecido, quando Dr. Caio Serpa, o esposo, a deixou naquele espaçoso apartamento de hospital, na véspera da cirurgia, no qual se via, agora, ruminando estranhas reflexões.
Era por demais jovem e estava quase que absolutamente convencida, quanto à própria recuperação, para demorar-se em quaisquer vaticínios menos felizes. Entretanto, ali, a sós, aguardando a enfermeira, as alegações de Fantini lhe perpassavam o cérebro, escaldando-lhe a imaginação.
Sim, meditava torturada, arrostaria grande risco. Talvez não regressasse à convivência dos seus… Se morresse, para onde iria? Quando menina, acreditava, de boa fé, na existência dos lugares predeterminados de felicidade ou sofrimento, sobre os quais a antiga teologia católica regulava a posição dos homens, para lá da morte. Agora, porém, com a ciência explorando as vastidões cósmicas, era bastante inteligente para perceber o tato com que o amadurecido confessor lhe falava das indispensáveis renovações que se impunham à esfera religiosa. Aprendera com ele, generoso e culto amigo, a conservar, inalterável, a confiança em Deus, no divino apostolado de Jesus-Cristo e no ministério inefável dos santos; contudo, decidira colocar à parte, no rumo da necessária revisão, todas as afirmativas da autoridade humana sobre as coisas e causas da Providência Divina. A ideia da morte assomou-lhe à cabeça com mais força, mas repeliu-a. Queria a saúde, a euforia orgânica. Ansiava restaurar-se, viver. Deteve-se, de súbito, a esquadrinhar os problemas domésticos. Evidentemente, atravessava escabrosa fase nas relações conjugais; no entanto, tinha motivos para contar com feliz reajuste. Admitia-se em plena floração dos ideais feminis. Carecia, tão só, de reequilíbrio físico. Recuperando-se, diligenciaria remover a outra. Transfiguraria a área afetiva e de tal modo se propunha aformoseá-la que o esposo, decerto, lhe tornaria ao carinho, sem que fosse constrangida a usar azedume ou discussão. Além disso, reconhecia-se útil. Devia querer a vida, disputá-la a todo preço, sentir-se prestante, não apenas para os familiares, mas também para as criaturas menos felizes. Poderia, sem dúvida, diminuir a penúria onde a penúria existisse…
A lembrança, com respeito aos necessitados, sensibilizou-a… Quantos respirariam, ali mesmo, perto dela, isolados, uns dos outros, pelas fronteiras de alvenaria? como não pensara nisso antes?
Gastara a existência na condição de satélite de três pessoas, o marido, a genitora, o padrasto… Porque não reaver as próprias forças, renovar-se, viver? Sim, recusaria todo pensamento, acerca dos fenômenos da morte, e concentrar-se-ia, com todo o vigor de que se sentia capaz, no propósito de retomar-se organicamente.
Lera muitos psicólogos e conhecera com eles a importância dos impulsos mentais. Aspirava a sarar. Repetiria isso, tantas vezes quantas fosse possível, com todos os seus potenciais de força emotiva, escolhendo as palavras carregadas de energia que lhe pudessem definir com mais segurança os estados de alma.
Ah! — disse, pensando, de si para si — nesse sentido, oraria também!…
Formulada essa ideia, esbarrou, de chofre, com a imagem de Jesus Crucificado, a pender de parede próxima, e arrancou-se para ela. Contemplou o rosto sublime que o artista modelara com sentimento profundo e, cruzando as mãos sobre o peito, falou mais com a voz do coração do que com os lábios:
— Senhor, compadece-te de mim!…
Nisso, porém, ao fitar aquela cabeça coroada de espinhos e aqueles braços pregados ao lenho do sacrifício, pareceu-lhe que o Cristo estimava surgir na memória das criaturas naquela figura de dor para lembrar-lhes a fatalidade da morte.
Fundo abalo moral convulsionou-lhe os nervos, não mais sabia se lhe era lícito optar entre viver ou morrer e, escondendo o rosto entre as mãos, ajoelhou-se, humilde, à frente da escultura delicada, junto da qual pranteou copiosamente.
Alguém despertou-a, de manso:
— Chorando porque, senhora?
Diligente enfermeira vinha requisitá-la ao serviço pré-operatório.
Evelina ergueu-se, enxugou as lágrimas, sorriu. — Desculpe-me.
— Sou eu que a incomodo, senhora Serpa — rogou a jovem —, perdoe-me se lhe perturbo as orações; no entanto, urge aprestar-se. Além disso, o esposo aguarda ocasião para entrar.
A doente obedeceu, ausentando-se do quarto, por algum tempo, e retornando, logo após.
O marido esperava-a, folheando jornais do dia.
— Então — bisbilhotou ele, fingindo-se bem-humorado —, agora, o salão de beleza, amanhã, o retorno à saúde.
A voz do Dr. Serpa evidenciava energia e brandura simultâneas. Advogado jovem, mas experimentado em relações públicas, exibia maneiras estudadas, conquanto simpáticas. Autêntico representante do tope social, não se lhe notava o menor desalinho. Justo, porém, dizer que o moço causídico se trancava no imo do ser, esforçando-se por manter oculta a feição enigmática da própria alma. Não estava ali, na estampa física, tal qual se mostrava por dentro. Não era tão somente um homem natural, simplesmente um homem natural, em cujo caráter o verniz acadêmico não conseguia extinguir, de todo, os resíduos da animalidade, compreensíveis em todas as criaturas da Terra, ainda puramente naturais e humanas. Além disso, aos nossos olhos espirituais, patenteava sombrias inquietações.
Depois das primeiras palavras, quentes de ternura, abeirou-se da esposa e osculou-lhe os cabelos.
Ela não dissimulou a própria alegria e conversaram em suave transbordamento afetivo.
Evelina reafirmou com os lábios a certeza da recuperação próxima, enquanto ele dava notícias. Os sogros, em seu sítio no sul, esperavam boas novas da operação e lhes viriam ao encontro, oportunamente. Com certeza, não chegariam, de imediato, evitando alarme. Queriam dar à filha querida a convicção de que se achavam tranquilos, quanto ao tratamento em curso.
E Caio desdobrava outros informes.
Ouvira amigos médicos. Realizara interessantes estudos em torno da intervenção na supra-renal. Quanto ao caso dela, Evelina, o cirurgião estava otimista. Que lhes faltava agora, senão o êxito, com a bênção de Deus?
Regozijou-se a enferma, ao registrar-lhe a expressão “bênção de Deus”. Algo de novo estaria surgindo naquele estimado ateu de trinta anos? — monologava no íntimo. Caio se lhe afigurava, ali, mais atencioso, diferente. Simples de coração, não percebia que ele disfarçava. Serpa emitia comunicações imaginárias. O médico da família, tanto quanto o cirurgião, nada garantiam além de uma operação exploratória, com reduzidas esperanças de êxito. O próprio cardiologista, devidamente consultado, quase que desaconselhava o tentame, e só não o fazia porque a moça avançava, a passos largos, para a morte. De que valeria obstar uma providência que talvez a salvasse? O marido conhecia as preocupações em pauta; contudo, fantasiava argumentos confortativos, mentia piedosamente, comentando os exames, complementados de avisos francos, sobre a gravidade da situação.
O advogado pernoitou no próprio hospital, na condição de acompanhante da enferma. Auxiliou a serviçal da noite, na administração de tranquilizantes precursores da anestesia. Dispensou à doente carinhos e cuidados, qual se ela fosse uma criança e ele o pai zeloso..
No dia imediato, porém, finda a cirurgia, foi convidado a entendimento com o médico operador e, pálido, colheu a sentença. Evelina, segundo os recursos da ciência humana, dispunha tão somente de alguns dias mais. Que ele, o marido, tomasse as medidas que julgasse convenientes, a fim de que não lhe faltasse o conforto possível.
O médico resumiu todas as suas impressões numa só frase:
— Ela parece uma rosa totalmente carcomida por agentes malignos.
Caio, embora o quisesse, nada mais ouviu das doutas observações expendidas sobre neoplasmas, focos secundários, metástases e tumores que reincidiam depois da ablação. Sentia-se petrificado. Lágrimas compridas perlaram-lhe a face.
Concluído o testemunho de solidariedade e ternura humanas com que foi amparado pelo cirurgião amigo, correu para junto da companheira prostrada. E durante dias e noites de paciência e ansiedade, foi-lhe o irmão e o pai, o tutor e o amigo.
Satisfazendo-lhe os apelos, os sogros vieram consolar a filha nos dias últimos. Dona Brígida, a genitora, e o Sr. Amâncio Terra, o padrasto, proprietários de sítio próspero, no sul paulista, compareceram desolados, buscando, no entanto, selecionar palavras de otimismo e sustando o choro.
Embalada na rede do devotamento familiar, Evelina, aparentemente melhorada, voltou ao mundo doméstico, recolhendo mimos que, desde muito tempo, não recebia, concomitantemente com as crises periódicas de sufocação que a deixavam inerme.
Apesar da posição melindrosa, acreditava nas opiniões lisonjeiras dos familiares e dos amigos.
Aquilo passaria. Ninguém se forra às sequelas de uma operação, qual a que sofrera. Que ela confiasse, orasse com fé.
Após duas semanas de calmaria e repiquetes, surgiram seis dias de contínuo bem-estar.
Não obstante extremamente magra e abatida, transferiu-se do leito para a espreguiçadeira, alimentava-se quase que normalmente, conversava tranquila, obtinha o conforto da religião através da cortesia de um sacerdote abnegado e, à noite, pedia ao padrasto alguns minutos de leitura alegre e amena.
Ao entardecer do quinto dia de esperança, formulou uma solicitação inesperada.
Não poderia Serpa levá-la ao passeio predileto dos tempos de noivado?
— Morumbi à noite? — indagou a mãezinha, intrigada.
Evelina justificou-se. Queria ver a cidade faiscante de luzes ao longe, os olhos tinham saudade do céu estrelado.
Caio telefonou ao médico e o médico acedeu.
Mais algum tempo, aflito por satisfaze-la, o marido arrancou o carro à garagem, para, logo após, tomá-la de encontro ao peito, qual se carregasse leve menina. Acomodou-a ao lado dele, prescindiu da companhia dos sogros, e partiram.
A enferma seguia, encantada. Reviu as ruas repletas e, depois, a paisagem do Morumbi e arredores, no que ela possuía de mais natureza.
Ao vê-la falar, entusiasmada, o esposo enterneceu-se. Como que a reencontrava na moldura de noiva querida, da noiva a quem amara desvairadamente, anos antes. Experimentou remorsos, recordando a infidelidade conjugal em que se mantinha. Quis suplicar-lhe perdão, confessar-se, mas reconheceu que aquele não era o momento adequado.
Freou o carro, contemplou-a. Evelina parecia sutilizar-se, os olhos brilhavam aos toques do luar, movia-se a cabeça como que nimbada de luz…
Caio tomou-a nos braços robustos, com a ansiedade de quem se propunha apoderar-se de um tesouro e defendê-lo… Num transporte irresistível de carinho, beijou-a e beijou-a, até que lhe sentiu o rosto frio molhado de lágrimas ardentes…
Evelina chorava de ventura.
Ao sentir-se liberta daqueles braços que adorava, deitou a cabeça ligeiramente para fora e deteve-se na visão do firmamento que se lhe figurava agora um campo gigantesco, ostentando flores de fogo e prata…
Buscou a destra do companheiro, apertou-a demoradamente e indagou:
— Caio, você acredita que nos encontraremos, depois da morte?
Ele desconversou, ligou o motor, exortou-a a trocar de assunto, proibiu-a, em tom afetuoso, de reportar-se ao que nomeou como sendo coisas tristes, e regressaram.
Caminho afora, a enferma lembrou-se do entendimento fácil com Ernesto Fantini, o improvisado amigo do balneário. Inexplicavelmente para ela mesma, tinha saudades daquela presença que lhe fora suave e grata. Sentia sede de permuta espiritual. Aspirava a falar nos segredos da vida eterna e ouvir alguém, no mesmo tema e no mesmo diapasão. Naquele instante, porém, o esposo se lhe destacava na imaginação por estranho violino que não se lhe adaptava agora às fibras do arco. As emoções sublimes lhe esmoreciam no peito, à míngua de crescimento e repercussão. Preferiu, desse modo, escutar o marido, abençoá-lo, aprová-lo.
Mais um dia sereno e, em seguida, Evelina amanheceu em crise. De angústia em angústia, com anestésicos de permeio, a jovem senhora Serpa atingiu a derradeira noite no mundo.
Ante a mágoa profunda do esposo e dos pais, que tudo fizeram para retê-la, Evelina, fatigada, cerrou os olhos do corpo físico, na suprema libertação, justamente quando as estrelas desmaiavam na antemanhã, sobre-rondando alvorada nova.
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