E a vida continua...
Versão para cópiaEncontro de cultura
Ernesto Fantini e a senhora Serpa usufruíam horas e horas de confortadora intimidade no pátio, mantendo interessantes conversações.
Mais de quinze dias haviam transcorrido sobre o primeiro reencontro. Evelina, tanto quanto o amigo, já se familiarizara com os banhos terapêuticos e ambos já haviam entrado em contato com a senhora Tamburini, que Alzira indicava como sendo a pessoa mais culta de suas relações. Essa prestimosa criatura lhes hipotecara a promessa de conduzi-los, tão logo possível, ao Instituto de Ciências do Espírito, que funcionava ali mesmo, num dos recantos do grande jardim.
Sem qualquer dúvida, para os dois, as considerações da senhora Tamburini eram, até então, as mais esclarecedoras que tinham ouvido. No tête-à-tête quase diário, solicitava-lhes maior reflexão em torno da matéria, a escalonar-se em diversos graus de condensação, e mais amplo exame das percepções da mente, a se alterarem, conforme os princípios de relatividade; noutros lances dos repetidos entendimentos, rogava-lhes estudar neles próprios a extrema leveza de que se viam possuídos, a agilidade do corpo sutil que envergavam agora e a maneira singular em que exprimiam o pensamento, como se as ideias se lhes esguichassem do cérebro, em forma de imagens, acima das suas possibilidades habituais de contenção. Que se detivessem também a perquirir naquele novo clima de vida as ocorrências telepáticas, a se erigirem, ali, em fenômeno corriqueiro, apesar de não prescindirem da linguagem articulada. Bastava maior grau de afinidade, entre as pessoas, para que se entendessem harmoniosamente, em derredor dos assuntos mais complexos, com o mínimo de palavras.
Acolhiam satisfeitos as judiciosas apreciações da senhora Tamburini, que aceitava plenamente a convicção de serem criaturas desencarnadas em algum departamento do Mundo Espiritual; entretanto, não obstante o respeito que lhes mereciam, não logravam admiti-las por verdade inconteste.
Evelina, sentada no chão relvoso, ao pé de Fantini que se acomodava num pequeno escabelo, iniciou o diálogo, avaliando, cismarenta:
— De fato, a cada dia me sinto mais leve, sempre mais leve. E, com isso, vou perdendo o controle de mim mesma. Noto que os meus sentimentos sobem do coração para o cérebro, à maneira das águas de um manancial profundo ao jorro da fonte… Na cabeça, observo que as emoções se transfiguram em pensamentos que me escorrem imediatamente para os lábios em forma de palavras, a partirem de mim, quais as correntes líquidas que se estendem, para além do nascedouro, terra adiante…
— Bem lembrado. Você definiu com precisão meu próprio estado de espírito.
— Mas, escute Ernesto — advertiu a moça, tocando a base de árvore robusta —, que vê aqui?
— Um tronco.
— E ali, no canteiro mais próximo? — Cravos.
— Seria este o Mundo Espiritual se a matéria e a natureza estão presentes em tudo, segundo as conhecemos?
— Concordo em que para nós dois, que não possuímos estudos claros, com referência às nossas atuais condições, tudo isto aqui é absurdo, alucinante, mas…
— Mas?!…
— Sim, nada podemos afiançar, de afogadilho.
— Você está influenciado pelas ideias da Tamburini?
— Não tanto. Faço minhas próprias ilações.
— Ouça, Ernesto. Se estamos mortos para os entes que amamos, porque não nos vieram ainda buscar os seres queridos de nossas famílias, aqueles que nos precederam na vida nova? Nossos avós, por exemplo, e os amigos íntimos que todos vimos morrer?!…
— E quem disse a você que eles já não terão vindo?
— Como justificar esta alegação?
— Recorde, Evelina, as lições elementares de casa. Um televisor capta imagens que não vemos e no-las transmite com absoluta lealdade. Um rádio-mirim assinala mensagens que não escutamos e no-las entrega com a maior clareza. É muito provável estejamos sendo vistos e ouvidos, sem que tenhamos, até agora, despertado a faculdade precisa de escutar e enxergar neste plano.
— Ernesto, e as orações? Se somos Espíritos libertos do chamado corpo carnal, alguém no mundo ter-se-á lembrado de nós em prece… Sua senhora, sua filha, meus pais, meu esposo…
— Não conhecemos o mecanismo das relações espirituais, nem temos qualquer estudo de ciências da alma. Quem afirmará que não estaremos ambos sendo sustentados pela força das orações daqueles que amamos ou daqueles outros… que ainda nos amem…
— Que quer dizer?
— Que contas já nos foram apresentadas neste hospital? a que e a quem devemos os cuidados e gentilezas que nos são dispensados, diariamente? não compramos as nossas roupas novas e nem as utilidades que usufruímos… Você, tanto quanto eu, já endereçamos a alguma enfermeira aquela conhecida pergunta: “quem paga?”
— Já indaguei…
— Qual foi a resposta?
— “Aqueles que vos amam.”
— Quem são esses, no seu modo de ver?
— Em meu caso, meu esposo e meus pais…
— Tenho minhas dúvidas. De início, supus estivéssemos em recuperação num instituto de saúde mental; entretanto, cada dia que passa nos surpreende em nível mais alto de consciência, no que diz respeito aos nossos raciocínios. Se nos demorássemos num hospício, depois de algum colapso nervoso, a nossa restauração não se faria assim tão rápida…
Quebrou-se, porém, o fio da interessante conversação.
A senhora Tamburini abordou-os, à pressa, a fim de avisar que o encontro de cultura espiritual estava marcado para a noite que se avizinhava e urgia se aprestassem.
Munidos do necessário consentimento, ei-los que se dirigem para a organização, às sete da noite, junto da amiga, que os recomenda à estima do mentor em serviço, o Irmão Cláudio.
Acolhidos com simpatia no recinto, onde se instalavam vinte e três pessoas, notaram a presença de enorme globo que, decerto, se prestaria como ponto de partida para valioso aprendizado.
O orientador principiou a reunião, notificando que a turma estaria em aula dialogada e que não era, ali, senão um companheiro dos demais, com erros, hipóteses, aproximações e acertos, em tudo aquilo que viesse a dizer.
— Qual é o tema, professor? — sindicou senhora distinta.
— “Da existência na Terra.”
Em seguida ao esclarecimento, o diretor do grupo teceu preciosos comentários, em torno das funções do orbe terrestre na economia cósmica, e prosseguiu:
— Reflitamos, meus amigos. Quem de nós, na atualidade de nossos conhecimentos incompletos, conseguirá deitar sabedoria, no campo da inteligência, tão só pelo testemunho das impressões pessoais? Não ignoramos que a Terra é um gigantesco engenho no Espaço, transportando consigo quase três bilhões de pessoas físicas, conduzindo-as pelas vias do Universo, sem que saibamos, ainda, ao certo, em que base de força se dependura, informando-nos unicamente de que semelhante colosso realiza, ao redor do Sol, uma órbita elíptica com a velocidade média de 108.000 quilômetros por hora; enquanto certas regiões do Planeta se encontram aprumadas perante o zênite, em outras, as criaturas se acham de cabeça para baixo, diante do nadir, sem que ninguém dê por isso; até ontem, qualquer pessoa asseverava que a matéria densa de uma paisagem se constituía de elementos sólidos em repouso; hoje, porém, qualquer jovem estudante sabe que essas impressões são imaginárias, de vez que a matéria, em toda parte, se dissolve num misto de elétrons, prótons, nêutrons e dêuterons, encerrando-se em energia e luz; qualquer homem reside num corpo do qual se faz inquilino, respira e atende aos impositivos da nutrição, sem maior esforço de sua parte. De que maneira dogmatizar afirmativas sobre causas, processos, acrisolamento e finalidade de nossa existência terrestre pelos acanhados recursos dos sentidos comuns?
Estabelecendo-se comprida pausa, aventou um cavalheiro:
— Professor, com estas deduções, o senhor quer dizer…
— Que a vida na Terra deve ser interpretada como um trabalho especial para o espírito. Cada qual nasce para determinada tarefa, com possibilidades de evolver para outras, sempre mais importantes, e que, por isso mesmo, não será possível arrebatar às criaturas os princípios religiosos de que dispõem, sem prejuízos calamitosos para elas próprias. A ciência avançará, desvendando segredos do Universo, resolvendo problemas e suscitando desafios novos à sua capacidade de investigação; no entanto, a fé sustentará o homem nas realizações e provas que é chamado a atravessar. O Espírito renasce no mundo físico, tantas vezes quantas se façam necessárias para utilizar-se, aperfeiçoar-se, lucificar-se; e, à medida que se aprimora, vai percebendo que a existência carnal é um ofício ou missão a desempenhar, de que dará ele a conta certa ao término da empreitada.
O explicador revelava tamanha altura cultural, através da exposição em andamento, que raros apartes se fizeram ouvir.
Sem desviar, por isso, a espinha dorsal da preleção que pretendia, indubitavelmente, preparar os ouvintes para a aceitação pacífica do novo estado espiritual a que se haviam transferido, comentou:
— Se as leis do Senhor se manifestam claras e magnânimas, em todos os departamentos da experiência física, estaríamos, acaso, desprezados por Deus, quando ultrapassamos as fronteiras da morte? Referimo-nos, aterrados, ao aniquilamento das vidas humanas, quando as guerras varrem a face do Planeta; entretanto, que concluir acerca dessas mesmas vidas humanas, a se extinguirem, metodicamente, nas épocas de paz? Conservar-se-ia o Senhor indiferente aos nossos destinos, em algum lugar do Universo? Ele, que inspira a graduação do alimento para a criança e para o adulto, relegaria ao abandono a criatura desencarnada, quando a criatura vestida de agentes físicos vive e age numa esfera de ação, na qual os fatores de previsão e proteção oferecem, todos os dias, os mais belos espetáculos de grandeza?
Ninguém, ali, penetrava, a fundo, o caráter sibilino daquelas alegações. Os circunstantes, pelo menos em maioria, não se apercebiam de que estavam sendo adestrados, delicadamente, a fim de admitirem a realidade espiritual, sem barulho.
Surgindo mais ampla quota de silêncio, em virtude de achar-se o professor interessado em averiguar posições geográficas, no globo à vista, Evelina cobrou ânimo e perguntou:
— Irmão Cláudio, todas as pessoas registrarão sensações iguais entre si, depois da morte?
— Não. Cada qual de nós é um mundo por si e, em razão disso, cada individualidade, após largar o carro físico, encontrará emoções, lugares, pessoas, afinidades e oportunidades, conforme desempenhou o ofício, ou melhor, os deveres que lhe competiam durante a existência, na Terra. Ninguém pode conhecer o que não estuda, nem reter qualidades que não adquiriu.
Cláudio entreteceu, ainda, apontamentos ricos de beleza e de lógica e, ao término da brilhante tertúlia, Ernesto e Evelina estavam reconfortados e felizes, ao modo de viajantes, sedentos de valores da alma, depois de se abeberarem numa fonte de luz.
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