Almas em Desfile

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CAPÍTULO 17

PICA- PAU

I

Quando o Dr. Cristiano Rosa, engenheiro moço e recém-casado, chegou à sede do serviço, encontrou o Pica-Pau na improvisada estação.

—Doutor, quero levar suas malas.

Dona Moema, a esposa, teve um movimento de recuo.

O homem que assim falava era horrível. As mãos retorcidas e o rosto monstruoso no corpo, que gingava de estranho modo, davam notícia de pavorosas queimaduras.

O Dr. Crisanto não gostou da recepção.

Dispensou rudemente.

—Não preciso – explicou, sério.


O pobre homem, contudo, voltou à carga:

—Ora, doutor, deixe-me carregar! Já estou esperando o senhor há tantos dias.

Tanta humildade transpareceu da voz suplicante, que o engenheiro sorriu, vencido, entregando-lhe parte da bagagem.

E Pica-Pau, suportando peso enorme, saiu carregando três grandes malas, na direção da graciosa casa de madeira que esperava o novo chefe.

O Dr. Crisanto fora comissionado para dirigir o avanço da grande rodovia interestadual em construção, e deveria morar ali, em plena mata, entre as famílias de alguns trabalhadores.

Não haveria, porém, dificuldade maior.

A poucos quilômetros, vilarejo florescente e movimentado fornecia de tudo.

O engenheiro e a esposa, encantados, ocupam a residência pequenina que os aguardava, e Pica-Pau, sempre agitado e alegre, gingava daqui para acolá.

Sem que o casal lhe pedisse, varreu as adjacências da casa, fez lume no fogão externo, conseguiu grande porção de lenha cortada e retirou larga quantidade de água do poço.

Dona Moema, modificada pelo comportamento dele, ofertou-lhe alguns restos de refeição, que o servidor humilde comeu com vontade.


II

A noite começava a descer, fria e rápida.

Sentara-se Pica-Pau numa tora de madeira, ao pé da casa, com a cabeça apoiada nas mãos, quando o Dr. Crisanto e a esposa o chamaram à sala.

—Pica-Pau, sei que você tem esse nome, porque mo disseram quando cheguei. . . – começou o engenheiro.

—É sim, doutor. Meu trabalho é na lenha. Todos me chamam Pica-Pau. . .

—E onde é que você mora?

—Não tenho lugar certo.

—Onde dorme?

—Desde que a turma da estrada chegou, durmo nas máquinas.


O engenheiro fitou a esposa, expressivamente, e continuou:

—Conversei com Moema a seu respeito. Não lhe posso dar abrigo em casa, mas temos a coberta do despejo. Se você quiser dormir lá, temos colchão. . .

Pica-Pau mostrou o sorriso de quem descobrira a felicidade.

—Quero sim – foi toda a resposta.

—Moema ficou satisfeita pelo modo com que você agiu hoje. . . Precisamos de alguém para serviço caseiro. . .

—Posso ajudar, sim senhor.

—E quanto recebe você por mês?

—Ora, doutor, não pense nisso – replicou alegre -, trabalharei para o senhor a troco de comida. . .

Marido e mulher entreolharam-se comovidos.

E, desde então, Pica-Pau foi o serviçal amigo, instalado no telheiro.

O Dr. Crisanto, por mais que indagasse, não colheu outra notícia senão aquela que toda a gente conhecia.

Pica-Pau fora vítima de queimaduras em cidade distante e aparecera, por ali, como um tipo anônimo.

O engenheiro, condoído, já que lhe receberia a cooperação, submeteu-o a exame de saúde por um dos médicos de serviço e o médico atestou-lhe absoluta sanidade física.

—Foi pena queimar-se tanto – disse o clínico bem-humorado -, podia ser um gigante no serviço.


III

Pica-Pau mostrava-se agora outro.

Dona Moema, reconhecida, mandava ajustar para ele as roupas e os sapatos que o marido lançasse ao desuso.

Bamboleante como sempre, era visto aqui e ali, no vilarejo próximo, transportando grandes sacolas para compras, ou no jipe de serviço, dando adeus com as mãos recurvas.

Observando-o, o engenheiro e a esposa notaram que o servidor possuía apenas um hábito profundamente arraigado. Todas as noites, antes do sono, enquanto o Dr. Crisanto permitisse o funcionamento do motor para a luz elétrica, relia um livro surrado.

Certa feita, o casal aproximou-se para ver, e ficou sabendo.

Pica-Pau compulsava um exemplar de "O Evangelho segundo o Espiritismo".

—Então, você gosta desse livro? – perguntou o chefe, sorrindo.

—Sim, doutor – respondeu, acanhado -, é a única coisa que eu tenho. . .


E acariciando o volume ensebado:

—Este livro me consola e me ajuda a pensar. . .

—Você é espírita? – indagou Dona Moema, com inflexão de respeito.

—Sou um pobre homem que já lutou muito – respondeu Pica-Pau -, mas encontrei no Espiritismo o sossego da alma. Se posso responder à pergunta, Dona Moema, digo que sou espírita, com muito desejo de praticar o que o Espiritismo me ensina. . .

Conquanto não abraçassem os mesmos princípios, os amigos louvaram-lhe a fé, bondosos e tolerantes.

Dona Moema passou a esperar o primogênito e era de ver-se a dedicação de Pica-Pau.

O apagado trabalhador desdobrava-se em concurso espontâneo.

Abeirando-se da "délivrance", a jovem senhora foi conduzida pelo esposo à casa de parentes no Rio.

Começou, então, para Pica-Pau uma experiência nova.

Distante da esposa, o Dr. Crisanto não era o mesmo homem.

Sem dúvida não diminuíra a consideração para com ele, mas estava diferente. Correto na profissão, mudara a vida particular.

Noite a noite, o engenheiro, como que faminto de novidade, buscava a cidadezinha próxima e embriagava-se, levianamente, em companhia de supostos amigos.

Num certo sábado, porque as horas avançassem madrugada a fora, sem que o chefe voltasse, Pica-Pau fez cinco quilômetros a pé.

Procurou, aflitamente, e encontrou-o num bar.

—Doutor – disse ao engenheiro -, vim chamá-lo.

—Que há?


E Pica-Pau engrolou a voz:

—Chegou um portador com notícias de Dona Moema. . .

O chefe aboletou-se no jipe e os dois viajaram, cada qual com a sua própria ansiedade.


Em casa, porém, Pica-Pau falou, desconcertado:

—Doutor, perdoe-me. . . Não há mensageiro algum. . . Estava preocupado com o senhor. . .


O Dr. Crisanto, algo transtornado pelo copo farto, gritou:

—Era o que faltava. . . Você, dirigindo! Não encomendei fiscalização alguma!. . . Não me consta que espíritas andem mentindo. . . Nunca mais faça isso!. . .

Pica-Pau, humilhado, preparou-lhe o café forte e o assunto ficou encerrado.

Entretanto, no sábado seguinte, repetiu-se o problema.


As duas da madrugada, Pica-Pau, arfando de fadiga, ante a longa caminhada, alcança o bar, surpreende o chefe, e avisa, desapontado:

—Doutor, a casa das máquinas está pegando fogo.

O engenheiro, desconfiado, atende; e ambos se põem novamente no jipe.


Mas, em caminho, o diretor do serviço fala, nervoso:

—Pica-Pau, se você estiver mentindo, pagará caro. . .


Chegando à casa das máquinas e observando a tranquilidade ambiente, fez um gesto interrogativo, ao que Pica-Pau respondeu, encabulado:

—Doutor, reconheço que menti, mas não posso ver o senhor nessa vida. . .

—Ah! não me pode ver? – replicou o Dr. Crisanto, irado. – Então não veja. . .

E vibrou-lhe tremendo pescoção ao pé do ouvido.

Pica-Pau rodou sobre os calcanhares e caiu com um filete de sangue a escorrer-lhe da boca, mas não reagiu.

Lágrimas rolavam-lhe dos olhos, quando viu que o Dr. Crisanto movimentava o veículo, da volta ao vilarejo distante.


V

Na manhã imediata, o engenheiro acreditava que o servidor estivesse longe, mas, com surpresa, viu Pica-Pau abeirar-se dele, de rosto inchado, a trazer-lhe calmamente a bandeja do café.


Dona Margarida, a arrumadeira, ao vê-lo assim, perguntou, admirada:

—Mas Pica-Pau, onde é que você arranjou esse rosto?

—Dor de dentes, Dona Margarida. . .

—Dor de dentes, na sua idade? – voltou ela, irônica.

—É sim, senhora. . . Ainda tenho alguns casos. . .

A discrição e a humildade de Pica-Pau comoveram o Dr. Crisanto, que mostrou expressiva melhora.

Depois de dois meses, no entanto, quando já se achava em vésperas de buscar a esposa e o filhinho recém-nato, o engenheiro voltou às noitadas alegres.

Pica-Pau notou o perigo, mas não se mexeu.

O serviço esperava a visita de várias autoridades, quando o Dr. Crisanto, certa noite, foi procurado no bar por Pica-Pau.


O pobre dizia-lhe, inquieto:

—Doutor, com o pagamento atrasado há dois meses, os operários estão acusando o senhor e planejam uma cilada. . .

O engenheiro riu-se, francamente.

—Que cilada?

—Querem dinamitar a ponte em construção. . . É preciso salvar o nome do senhor. . . O pessoal não tem razão. . .


O Dr. Crisanto desferiu gargalhada irritante e observou:

—Suas mentiras, Pica-Pau, não pegam mais. . .

Ponha também a sua bomba. . .

O portador fez uma expressão de amargura e regressou, coxeando, coxeando. . .

Não havia, porém, decorrido duas horas, quando pequena comissão veio de jipe, à procura do chefe, com a dolorosa notícia.

Pica-Pau, ao tentar o salvamento da grande construção sobre o rio, conseguira preservar a ponte, mas sofrera terrível acidente: ao arrastar a banana explosiva colocada na edificação por mãos criminosas, verificara-se o estouro e teve os braços decepados, além de ferimentos por todo o corpo.

Horrivelmente surpreendido, o Dr. Crisanto voltou à pressa.

Trazido em padiola improvisada, Pica-Pau estava no telheiro em que se acolhia. A cama pobre empapava-se de sangue, embora os primeiros curativos tivessem sido feitos.

Arrasado de dor, o engenheiro compreendeu a gravidade da situação.


Trancou-se no recinto humilde com o ferido, que pousava nele os grandes olhos, e rogou:

—Pica-Pau, perdoe-me pelo amor de Deus! Como não pude compreender você a tempo?!. . .

—Ora, doutor, não pense nisso! – respondeu o mutilado em voz sumida – tudo está bem. . .

—Não! Não! Punirei os culpados!

—Não faça isso! Desculpe sempre, doutor. . .

Ninguém é mau porque deseje. . .

—Mas foi um crime. . .

—Ora, doutor, quem pode julgar? – falou o acidentado, com voz doce, como se quisesse acariciar o chefe com a palavra, já que não podia fazê-lo com as mãos. – Às vezes, quem colocou a dinamite na ponte é um homem doente. . . obsidiado. . . é preciso perdoar. . .


O Dr. Crisanto não teve coragem de prosseguir exasperado, e perguntou, emocionado:

—Que quer você que eu faça, Pica-Pau?

—Doutor, se o senhor puder, leia para mim uma página do Evangelho. . . Estou agora sem braços. . .


O engenheiro tomou o livro semi gasto, e, abrindo na parte final, fez a leitura, entre lágrimas copiosas:

"Meu Deus, és soberanamente justo. O sofrimento, neste mundo, há, pois, de ter a sua causa e a sua utilidade. Aceito a aflição que acabo de experimentar, como expiação de minhas faltas passadas e como prova para o futuro. Bons Espíritos que me protegeis, daíme forças para suportá-la sem lamentos. Fazei que ela me seja um aviso salutar; que me acresça a experiência; que abata em mim o orgulho, a ambição, a tola vaidade e o egoísmo, e que contribua para o meu adiantamento. " Pica-Pau aquietara-se, muito calmo, mas o Dr. Crisanto, à maneira de louco, providenciou o resto da noite e, no dia seguinte, pela manhã, tomou o avião de serviço e rumou com o mutilado para o Rio, tentando salvar-lhe a vida.


VI

Era mais de meio-dia, quando Pica-Pau deu entrada no grande hospital carioca em que seria submetido a tratamento.

Dois médicos amigos do Dr. Crisanto, no entanto, abanaram a cabeça, depois de minuciosa inspeção.

O ferido avizinhava-se do fim.

Agoniado, o engenheiro foi à procura da família e contou à esposa e à velha mãezinha, Dona Maria Cecília, os sucessos amargos.

Ambas quiseram testemunhar carinho ao herói.

E, nas primeiras horas da noite, o trio se dirigia para o confortável quarto em que PicaPau encontrara acolhida régia.

Na luz indireta que clareava frouxamente o recinto, Dona Moema foi a primeira a cumprimentá-lo.

—Então, Pica-Pau, - falou, emocionada -, quando voltarmos, teremos mais alguém. . . Você vai ajudar-me a velar por nosso rapaz, que já estará crescidinho. . .


Ele voltou os olhos muito abertos e respondeu, lúcido:

—Oh! sim. . . um belo menino. . . Deus o abençoe.

Em seguida, o Dr. Crisanto apresentou-lhe a sua velha progenitora.

A encanecida senhora começou a dirigir-lhe palavras de consolo; entretanto, ao sentir-lhe a fixidez do olhar profundo, desconcertou-se, pouco a pouco, e emudeceu em pranto.


Ele, porém, com serenidade indescritível, passou a dizer, com muito esforço:

—Sim, Cecília, você não precisa perguntar. . .

Sou eu mesmo. . . Pedro. . . Pedro, que você não vê há trinta anos. . . Deus escutou minhas preces. . . Não queria morrer sem nosso encontro. . . Perdoe por todos os males. . . que causei a você. . . Eu era moço, Cecília. . . Moço e ignorante. . . Viciei-me em bebidas e esqueci o lar. . . humilhando você. . . Você tinha razão, não me querendo mais. . . Mas creia que piorei, perdendo você. . . Você foi o único amor de minha vida. . . Perdoe tudo. . . Mudei muito, Cecília. . . Um dia. . . alcoolizado. . . fui vítima da maldade de alguns rapazes que me atearam fogo às vestes. . . Tratado num hospital, aí conheci a Doutrina Espírita, que reformou minha vida. . . Passei a ser outro homem. . . Todavia, não tive coragem de procurá-la. . . Fiquei deformado. . . irreconhecível. . . Mas consegui seguir o nosso Crisanto nos últimos tempos. . . Continue vivenda para ele, Cecília. . . Eu, agora. . . estou no fim. . . Mas a vida prossegue depois da morte. . . Um dia, Cecília, no mundo sem lágrimas, serei para você o que devo ser. . . Confiemos em Deus. . .

Entretanto, fosse pelo esforço enorme ou porque o Espírito do acidentado julgasse terminada a sua tarefa entre os homens, a cabeça de Pica-Pau tornara-se imóvel.

Grossas lágrimas, a se lhe escorrerem dos olhos, agora desmesuradamente abertos, misturavam-se ao suor álgido. . .

Dona Maria Cecília, ajoelhada, em pranto silencioso, beijou-lhe a testa suarenta e PicaPau sorriu pela última vez.


O Dr. Crisanto, emocionado, tocou o braço materno e falou:

—Mas mamãe, que houve?


A nobre senhora, no entanto, após cobrir carinhosamente o corpo hirto, pode apenas responder, entre soluços:

—Este homem, meu filho, é seu pai. . .








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