Quem é quem na Bíblia?
Autor: Paul Gardner
Jardim do éden e a criação: Que tipo de pessoas nós somos e em que mundo vivemos? Essas são perguntas extremamente importantes, as quais têm as respostas em Gênesis 1:3. Empreguemos uma ilustração absurda: usamos produtos anticongelantes no motor do carro, mas não o utilizamos em um bebê, embora este também precise de proteção contra o frio. Por quê? Porque são diferentes e requerem tratamentos diferenciados. Em outras palavras, cada coisa precisa ser “definida” segundo sua natureza individual. Se tratamos de um bebê como se fosse um automóvel, vamos matá-lo; se cuidamos de um carro como se fosse um ser humano, ele nunca vai andar. Assim, a pergunta “O que é o homem?” de maneira alguma é irrelevante. Precisamos chegar a uma definição correta de nós mesmos, se queremos descobrir como devemos viver e nos desenvolver adequadamente.
A mesma questão aplica-se também ao mundo. Vemos regiões arruinadas por refugos industriais, com paisagens devastadas e rios poluídos; temos notícias de florestas que são derrubadas desordenadamente, atitude esta que causará a esterilidade do solo e mudanças climáticas; ouvimos sobre buracos na camada de ozônio na atmosfera — tudo porque os precursores da revolução industrial e seus sucessores gananciosos e ávidos por lucros “definiram” o meio ambiente como uma presa que podia ser explorada à vontade. E, conforme veremos, há também uma dimensão adicional (a qual chamaremos de “vitalidade moral”) na definição plena do nosso mundo. A questão, porém, é clara: sem uma definição correta, não podemos alcançar a realização pessoal ou a prosperidade ambiental.
Não queremos dizer que outras questões de Gênesis 1:3 não sejam importantes, mas como o primeiro capítulo da Bíblia relaciona-se com a cosmogonia e a teoria da evolução? O fato de que os relatos de Gênesis 1:3 existem primariamente para responder a outras questões não quer dizer que nada tenham a falar sobre esses assuntos. Eis aqui outra ilustração: suponha que um terremoto ocorrido em 2020 d.C. tenha reduzido Londres a escombros e feito o rio Tâmisa correr para o mar 50 quilômetros ao sul, na cidade de Brighton, em vez de seguir seu curso normal para o leste. No ano de 5020 um arqueólogo descobre um documento que mostra estatísticas sobre a mortalidade infantil na antiga capital da Inglaterra e proporciona tabelas comparativas no sentido norte—sul do curso do rio. Assim, tal descoberta responde primariamente a uma questão sociológica, mas incidentalmente responde também à pergunta: “Qual era o sentido do curso do rio Tâmisa?”. É isso que acontece com Gênesis 1:3. Embora questões sobre a origem do Universo, da evolução etc. não sejam seu objetivo primário, o texto tem revelação divina para oferecer também sobre essas questões, e tomaremos nota delas.
O registro da criação
É muito comum alguém considerar Gênesis 1:1-23 e 2:4-25 como relatos separados da criação de Deus — diferentes no estilo literário e contraditórios na ordem dos eventos que registram: Gênesis 1, por exemplo, coloca a criação do homem em último lugar e Gênesis 2, em primeiro. Essa visão dos dois textos origina-se literalmente do menosprezo pela declaração que serve de elo de ligação, em Gênesis 2:4: “Estas são as origens dos céus e da terra, quando foram criados”. Esta fórmula ocorre dez vezes em Gênesis (6:9; 11:10-27; 25:19; etc.) e sempre com o mesmo significado. O vocábulo “origem” (ou geração) é um termo que designa “nascimento”, ou seja, uma coisa que emerge de outra — os descendentes são originários de um ancestral e a história se origina de um certo início. Assim acontece aqui. Uma “situação” foi estabelecida em Gênesis 1:1-2:3 e estamos prestes a ser informados (Gn 2:4ss) sobre o que “emergiu” disso, ou seja, o que aquela situação gerou. Isso explica a diferença de estilo literário dos dois textos e também por que, à primeira vista, eles parecem diferentes também em outros aspectos. Gênesis 1:1-2:3 é uma declaração centralizada em Deus, sobre a obra divina da criação como procedente de sua vontade (Gn 1:9-11,14,20,24,26), a fim de determinar seu desígnio (vv. 7,9,11,15,24) e estabelecer seus valores (vv. 10,12,21,25,31). Por outro lado, Gênesis 2:4-25 é um relato centralizado no homem. É claro que Deus ainda está acima de tudo e a entrada do ser humano em cena não diminuiu sua soberania. Agora, porém, pela vontade do Senhor, o homem tem o domínio, trabalha sobre a Terra, concede os nomes aos animais e estabelece seu lar: um mundo para ele, ao qual Deus vem como se atendesse a um chamado (Gn 3:8). Gênesis 1Cria o teatro, prepara o palco e reúne o elenco; Gênesis 2 é o Ato I, Cena 1; Gênesis 1 é uma declaração; Gênesis 2 é uma história; Gênesis 1 conta como o homem surgiu; Gênesis 2 registra a história da vida.
Deus, o Criador
O verbo “criar” Gênesis 1:1 não diz como “os céus e a terra” vieram à existência. Somente divulga que Deus é anterior ao Universo e este existe por seu ato de criação. Diferentemente de outras literaturas que usam “criar” como a capacidade do homem, bem como de Deus, de fazer coisas, o Antigo Testamento faz do “criar” uma atividade exclusivamente divina. O verbo é usado para designar coisas que por sua grandeza ou novidade (ou ambos) só são explicadas como um ato de Deus. Em Gênesis 1:1-2:3, o princípio de todas as coisas representava tal ato e mostra que no hebraico “criar” inclui a ideia da criação ex nihilo (a partir do nada), pois o primeiro “passo” na criação foi trazer à existência o substrato físico, ou a “matéria” do Universo (Gn 1:1). Não havia nenhuma substância preexistente; ela foi chamada à existência por Deus. O verbo “criar” surge na próxima vez naquele momento significativo quando a vida animal, orgânica, apareceu pela primeira vez (Gn 1:20-22); ele então se apresenta numa ocorrência tripla no auge da criação, quando no homem a vida orgânica surge “à imagem de Deus”. Finalmente, o verbo é usado retrospectivamente em Gênesis 2:3.
Criar e fazer O estado inicial das coisas era “sem forma e vazio”. Isso quer dizer (cf. Jr 4:23-26) que não havia nenhuma evidência de estabilidade, vida, ordem nem nenhuma indicação de que essas coisas estavam potencialmente lá. Desta maneira, Gênesis 1 pinta o Criador como um escultor que, ao pegar um bloco de pedra sem forma e sem nenhum significado, começou a dar-lhe forma, beleza, significado e vitalidade, de maneira que o que começou “sem forma e vazio” (Gn 1:1) terminou iluminado (vv. 3-5), organizado e fértil (vv. 6-13), com um movimento regular (vv. 1419), com vida abundante (vv. 20-25), coroado com a presença do homem (vv. 26-30), “muito bom” (v. 31) e completo (Gn 2:1).
Somente um Deus O pequeno detalhe de que os arbustos (Gn 1:12) “eram plantas produtoras de sementes” e que os frutos “tinham sementes neles” é parte do testemunho de Gênesis 1 de que todas as coisas podem ser traçadas de volta até o único Criador. Na religião de Canaã, Baal era o deus da fertilidade. Nenhuma árvore daria fruto ou reproduziria — nem nenhum animal ou pessoa — a não ser que Baal se dignasse a conceder-lhe essa graça. De fato, em todo o mundo antigo havia uma divindade para cada aspecto da vida. A resposta bíblica é bem diferente: as árvores são frutíferas porque no princípio o único Deus verdadeiro as fez assim. As genealogias também têm esse aspecto como parte de sua função (Gn 5:10 etc.): toda a humanidade é traçada até o ato inicial do Criador: não um deus para cada tribo, que gera seus “filhos” por meio de procedimentos quase-sexuais, mas um único Deus, que criou o primeiro casal com uma capacidade inerente de se reproduzir (Gn 1:26-28). O mais notável de tudo é que Gênesis 1 registra o combate pré-criação que ocorreu entre o Criador e a oposição das “forças espirituais” do caos. Esse era o tema principal da cosmogonia babilônica, onde Marduque não teve liberdade para criar até que venceu Tiamat, o monstro das profundezas. Em Gênesis existe apenas um único Deus, o qual faz o que lhe agrada e tem prazer naquilo que faz.
Um obra perfeita A obra da criação de Deus levou seis dias de atividade e foi coroada com um sétimo dia de descanso satisfeito. Que período pode ser entendido no termo “dia”? Não precisamos dizer que, se o Criador decidiu assim, toda a criação teria sido feita em um período de 24 horas e na ordem prescrita em Gênesis. Nesse sentido, os antigos escritores estavam certos quando diziam que a Bíblia espera o final dos processos científicos de pesquisa para então alcançá-los. Esse ponto de vista serviria bem à simplicidade, mas o uso do termo “bíblico” é fluido demais. O vocábulo “dia” é usado no sentido do período da luz diária (Dt 9:18), no período de 24 horas (Nm 20:29), um período indefinido de tempo (Sl 20:1) e um período marcado por alguma atividade significativa (Sl 11:0-5) — sendo que é neste último sentido que Gênesis 2:4 (literalmente, “no dia em que o Senhor fez...”) descreve todo o processo da criação, a partir de um determinado “dia”. Se, porém, o tempo/significado de “dias” é aberto, sua seqüência e o equilíbrio delicado pelo qual a obra do Criador é completa e perfeita são plenos — uma plenitude encontrada também na narrativa básica em Gênesis 2:4-25.
Gênesis 1:1-2:3 A obra da Criação | Gênesis 2:4-25 A vida |
Mundo Físico | (1) Luz | (2) Águas | (3) Terra Vegetação | Situação Terra não cultivada | Provisão Adão, o agricultor | Lei: A Lei do Jardim |
| vv. 3-5 | vv. 6-8 | vv. 9-13 | vv. 4-6 | vv. 7-15 | vv. 16,17 |
Mundo Animal | (4) Luzes | (5) Peixes | (6) Animais Homem | Somente o homem | Mulher | A lei do casamento |
| vv. 14-19 | vv. 20-23 | vv. 24-31 | v. 18 | vv. 19-23 | vv. 24,25 |
O homem como criatura
Nessa criação perfeita e bem ordenada, o homem tanto é sua coroa como a criatura por excelência. Somente o ser humano recebe a referência tripla “criou... criou... criou” (Gn 1:27). O verbo usado exclusivamente por Deus refere-se unicamente ao homem; a medida dessa exclusividade é que “Deus criou o homem à sua própria imagem”, uma ideia que não é definida em nenhum lugar no relato de Gênesis, mas que proporciona amplas pistas. Essa ideia indica principalmente que não encontraremos a “imagem de Deus” em alguma característica particular, mas na totalidade da natureza humana.
Primeiro, as palavras “imagem” (1Sm 6:5) e “semelhança” (2Rs 16:10) referem-se à forma exterior ou à aparência e apontam em primeira instância para a forma física com a qual Deus criou o homem. A Bíblia, é claro, insiste em que Deus é Espírito e invisível em sua essência. De qualquer modo, igualmente insistente é a ideia que, quando Ele assim decide, pode cobrir-se de visibilidade. Moisés viu “a semelhança do Senhor” (Nm 12:8; cf. Dt 4:12). Foi com essa “semelhança” que Deus criou o homem, a forma externa e visível apropriada para a natureza divina.
Segundo, a imagem de Deus no homem é matrimonial. A criação da mulher (Gn 2:21-23), do ponto de vista de Adão, representou a perda da plenitude. O Senhor tirou algo do homem para depois entregar-lhe de volta na figura da mulher. Assim, no casamento, o homem recupera sua plenitude e a mulher volta para seu lugar original. Gênesis 5:1-2 associa essa unidade-em-diversidade com a imagem de Deus: existe diversidade, a criação distinta do homem e da mulher, mas há também a unidade (literalmente, “chamou o nome deles homem”) — e, neste aspecto, segundo Gênesis, está a imagem de Deus.
Terceiro, homem e mulher juntos recebem o domínio. Os imperativos em Gênesis 1:28 estão no plural e referem-se ao casal recém-criado. Assim como deviam “crescer e multiplicar-se” juntos, da mesma maneira precisavam “sujeitar e dominar” a Terra também juntos. Sabemos que os antigos reis colocavam suas imagens em todos os lugares que dominavam. A realidade, entretanto, excede a ilustração, pois uma estátua pode apenas registrar a alegação da soberania em favor de alguém, enquanto o homem e a mulher são a “imagem viva” de Deus, que não somente registra sua declaração de soberania, mas exerce o domínio em seu favor.
Quarto, é somente ao homem e à mulher que o Criador se dirige pessoalmente. Em Gênesis 1:22, Ele pronuncia sua bênção sobre a criação animal: “Os abençoou, dizendo...”; no versículo 28, entretanto, “Os abençoou e lhes disse...”. Os seres humanos são ouvintes conscientes da Palavra de Deus, com uma dimensão espiritual de sua natureza, por meio da qual podem ouvir quando o Senhor fala.
Isso nos leva ao quinto aspecto da imagem de Deus em nós, ou seja, o fator moral. Em toda a criação, apenas o homem vive conscientemente sob as leis de Deus. O diagrama que apresentamos acima deixa claro: a obra da criação tratou com as esferas física e animal e com a história primitiva da vida humana sobre a Terra, a fim de estabelecer o homem dentro de cada um dos departamentos naquele que agora é o seu meio ambiente (Gn 2:4-17, 18-25); em cada departamento (o Éden e seu lar), Deus impõe ao homem sua lei de vida. Adão não compartilha da existência instintiva dos animais; o homem vive numa situação em que pode dizer sim/não, uma vida de escolhas morais conscientes, o reconhecimento ou a rejeição da Palavra de Deus.
Finalmente, Gênesis revela o homem como possuidor da racionalidade, pois tem condições de pensar a respeito do mundo ao seu redor. Em Gênesis 2:18, Deus nota a solidão de Adão e trata de prepará-lo para a providência que seria tomada. Primeiro, é permitido que ele exercite seus poderes de avaliação sobre os animais que estão diante dele; ele é capaz de formar os pares, segundo as espécies, e dar nomes apropriados ao que vê. Dessa maneira, não somente exercita seu senhorio sobre os animais; também demonstra seu poder de definir, estabelecer categorias e descrever, uma tarefa verdadeiramente científica. No final, também percebe sua própria solidão, pois “para o homem não se achava adjutora que lhe correspondesse” (Gn 2:20). Posteriormente, contudo, ele desperta do sono, para encontrar a que é “seu par perfeito” (o sentido central da expressão “adjutora que correspondesse”), e ele, que é “Ish”, a chama de “Isha”, sua igual e exata equivalente feminina. Tanto a mente como as emoções são envolvidas na glória daquele momento, em que o homem reconhece que não estava mais sozinho.
A experiência no Éden
A criação do homem à imagem do Criador, com todas as suas características distintas, de modo algum comprometeu a soberania de Deus. O Todo-poderoso, que em Gênesis 1 “falou, e tudo se fez” (Sl 33:6-9), continua sua obra em Gênesis 2, ao organizar o mundo, criar a Terra, formar Adão, planejar o Jardim do Éden, dirigir o trabalho do homem, perceber a solidão dele, providenciar-lhe uma esposa, estabelecer suas leis. Deus continua o mesmo Deus.
Onde? A pergunta sobre a localização do Jardim do Éden é razoável; mas, de acordo com as evidências apresentadas em Gênesis, é impossível de ser respondida. Fica claro, pelas informações topográficas e geológicas de Gênesis 2:10-14, que a intenção era demonstrar um lugar específico; entretanto, para poder usar tais informações, precisamos estar certos quanto à identificação dos nomes e também supor que os rios, embora possam ser identificados, ainda correm na mesma direção e no mesmo leito, como antes do Dilúvio. Devemos evitar a especulação inútil e considerar os fatos que a história confirma.
Benevolência, abundância e obediência Em Gênesis 1, Deus é soberano na obra da criação; no cap 3 (a despeito da grande rebelião), Ele continua soberano, mas mediante a manifestação do juízo; no cap 2:4-25, Ele é soberano na benevolência, pois proporciona um meio ambiente perfeito (vv. 4-9), liberdade e abundância (vv. 15-17), companheirismo, amor e casamento (vv. 18-25) para o seu querido vice-regente da Terra. Esse é o tema da história: uma abundância exuberante, que estabelece provisão para todas as necessidades da vida — e tudo pode ser experimentado mediante a única condição de um mínimo de obediência. A história proporciona um bom exemplo de como a Bíblia relaciona amor e lei em uma mão e obediência e bênção na outra. Primeiro, o amor de Deus apresenta a lei do Senhor. Do ponto de vista divino, a lei não é uma imposição desagradável, mas a chave que abre a porta da plenitude da vida. Segundo, do ponto de vista humano, a lei não é uma escada para se subir, a fim de alcançar o favor de Deus, mas a forma de vida que é dada a alguém que já alcançou o favor divino. Não é uma restrição cruel da liberdade e plenitude, mas a condição mediante a qual elas são experimentadas. Posteriormente, no relato bíblico, depois que o pecado redesenhou o mapa do relacionamento entre Deus e o homem, o papel fundamental permanece o mesmo: o Senhor dá sua lei (Ex 20), não para que as pessoas possam subir a escada do comportamento adequado até o livro da vida, mas porque Ele já as redimiu (Ex 6:6), trouxe-as para si (Ex 19:4-6), libertou-as do cativeiro (Ex 20:2) e deseja que se alegrem com a vida, liberdade e abundância (Dt 6:1-3).
As traduções mais antigas da Bíblia captaram o espírito generoso da história: “De toda árvore do jardim comerás livremente” (Gn 2:16). A bandeira que tremulava sobre aquele lugar tão agradável trazia a expressão “Liberdade e Abundância”. Depois da criação de Eva, foi acrescentada a frase “Realização e Amor”. E o custo era mínimo, pois toda a lei de Deus resumia-se em um único preceito negativo e um positivo: manter-se afastado da árvore do conhecimento do bem e do mal e “unir-se à sua esposa” (Gn 2:16-17, 24,25). O desafio diante de Adão e Eva era transformar inocência em santidade, por meio da escolha moral. Não sabemos o que aconteceria se tivessem permanecido obedientes, e seria muita ousadia fazer algo mais do que simplesmente questionar. Quando eles começaram a vida no Éden, o Senhor revelou-lhes tudo o que precisavam saber inicialmente. Se tivessem passado pela primeira prova, imposta pela árvore do conhecimento, será que encarariam mais revelações da vontade de Deus, com provas adicionais? E qual seria o objetivo final? Certamente, serem semelhantes ao Senhor, coparticipantes da natureza divina! Embora seja difícil ver nesse tempo primitivo o tratamento que Deus dispensou a essa questão mais tarde, essa é a verdade fundamental, pois escolha moral ainda é o cerne do progresso espiritual (At 5:32), a revelação divina ainda é o meio de seguir adiante (2Tm 3:16-17), e o objetivo é que sejamos “participantes da sua santidade” (Hb 12:10). Se Adão e Eva tivessem permanecido no caminho, teriam encarado a vida do ponto de vista de uma experiência crescente do bem, com o mal conhecido apenas por meio do contraste e como um agente externo. Ao tomar do fruto do conhecimento, o primeiro casal buscou a sabedoria sem revelação divina e mudou sua própria natureza no caminho inverso: a partir daquele momento, homem e mulher conheceriam progressivamente o mal por meio da experiência pessoal e o bem só seria conhecido pelo contraste, como um agente externo.
O Jardim perdido
A serpente A escolha em si mesma deveria ocasionar prontamente a resposta desdenhosa “de maneira nenhuma”, pois era uma decisão entre a vida e a morte: de um lado a alegre liberdade da árvore da vida; do outro, a mortal árvore do conhecimento do bem e do mal! E quanto à forma pela qual a tentação se apresentou? Uma cobra falante! — não apenas algo absurdo, que teria causado gargalhadas, em vez de credulidade, mas para Adão, que recentemente exercera seu senhorio sobre as feras (Gn 2:19-20), certamente uma subversão extremamente óbvia da ordem estabelecida! Uma indicação clara do cuidado divino é que todos os fatores apontavam para a recusa. O pecado ainda não residia na natureza humana; por isso, não havia meio pelo qual a tentação atingisse a humanidade internamente. Precisava ser uma voz externa e a Bíblia diz que foi isso o que aconteceu.
O tentador abordou a mulher com uma dúvida e uma negação: dúvida se realmente a palavra de Deus queria dizer o que fora dito (Gn 3:1) e a negação de que o castigo seria estabelecido (v. 4). Por adotar esse curso de ação, entretanto, a serpente encontrou uma porta já aberta. Adão e Eva já haviam corrompido a palavra de Deus — não pela subtração, mas pela adição. O Senhor disse: “dela não comerás” (Gn 2:17); eles acrescentaram: “nem nele tocareis” e deram a uma palavra humana a condição de mandamento divino (Gn 3:3). Estariam muito mais seguros se tivessem exercitado a obediência a uma simples palavra e parassem por aí!
Escolha e consequências A simples palavra proibitiva era toda a lei de Deus. Não havia outros mandamentos ou exigências; isso foi tudo o que o Senhor determinou. Quando, porém, Eva olhou para a árvore, suas emoções se voltaram para o desejo do que Deus proibira (“boa para se comer, e agradável aos olhos”, Gn 3:6a); sua mente se opôs à do Senhor, pois Ele revelara que, embora o nome da árvore apontasse para o conhecimento, seu efeito seria morte. Eva, entretanto, avaliou a situação dentro de sua própria lógica — afinal, se a árvore era do conhecimento, que mais faria além de proporcionar entendimento? (v.6b); sua vontade desobedeceu: “tomou do fruto, e comeu” (v.6c). Assim, a natureza humana — emoções, mente e vontade — quebrou a lei de Deus.
Consequências terríveis se seguiram:
Primeiro, a sociedade foi fragmentada: o casal vivia anteriormente numa agradável abertura um para com o outro (Gn 2:25), mas agora os dois descobriram que o principal produto do pecado é o individualismo patológico e cheio de segredos, que fez com que se escondessem um do outro (Gn 3:7).
Segundo, a boa consciência foi perdida e junto com ela a antiga e fácil comunhão com Deus (vv. 7-10). De fato, as coisas eram muito mais sérias do que o casal pensara; por um tempo se manteriam alegremente escondidos no Éden (v. 8); mas Deus percebe o perigo do homem pecador tornar-se imortal (v. 22). Eles não podem mais ficar no Jardim (v. 23), nem jamais podem encontrar o caminho de volta (v. 24).
Terceiro, o casamento foi corrompido. O homem, que estava feliz por unir-se à sua mulher (Gn 2:24), prontamente a abandonou (Gn 3:12) e dali em diante só a aceitaria mediante o domínio dele (Gn 3:16) — uma triste degeneração da alegre unidade de Gênesis 2:23. Essa ruína do casamento é sinalizada por uma mudança do nome da mulher (Gn 3:20). Ela não é mais “isha”, o título pessoal da parceira que representa o “par perfeito” (Gn 2:23, veja anteriormente), mas Eva, “a mãe de todos os viventes”, uma funcionária, uma “máquina de gerar filhos”!
Quarto, a base econômica da vida estava destruída: a abundância do Jardim do Éden deu lugar a uma sobrevivência alcançada a duras penas (Gn 3:17-18), com um solo hostil e relutante na provisão do sustento. Esta é a vitalidade moral do meio ambiente: o próprio mundo ao redor é inimigo do pecador e o homem no pecado jamais encontra facilidade econômica.
Surpreendidos pela misericórdia A voz da lei disse: “No dia em que dela comeres, certamente morrerás” (Gn 2:17), mas, surpreendentemente, quando o Senhor chega, não somente impõe soberanamente sua maldição, mas, da mesma forma, fala ao casal digno de morte sobre a continuação da vida (Gn 3:15) e cobre sua condição pecaminosa, ao providenciar-lhes uma cobertura adequada (Gn 3:21; cf. v. 7). Não sabemos (infelizmente) o que o Senhor disse, quando sacrificou os animais e vestiu os pecadores. Teria explicado que o salário do pecado era a morte e que ela seria executada sobre uma figura inocente, em lugar do culpado? Será que entrou em detalhes sobre a semente da mulher que esmagaria a cabeça da serpente (Gn 3:15)? No contexto, isso só pode ser o que chamamos de promessa messiânica, pois os termos da história da queda exigem que entendamos isso: a ferida mortal eliminará a usurpação da serpente e trará o Éden de volta. A semente da mulher será o segundo Adão. Veja Adão e Eva.
J.A.M.