Crônicas de Além-Túmulo

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Capítulo VII

A suave compensação


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Foi Wells que, em uma das suas audaciosas fantasias, descreveu o vale escuro e triste onde um punhado de homens havia perdido as faculdades visuais. Tudo para eles era a mesma noite uniforme, onde se arrastavam como sombras da vida.

As gerações se haviam sucedido incessantemente, os séculos passaram e aqueles seres apagaram da lembrança as tradições dos antepassados que lhes falavam do estranho poder dos olhos, os quais, em seus organismos, nada mais eram que duas conchas de treva.

O mundo para eles estava circunscrito àquela prisão escura. Os trovões e o vozerio lamentoso dos ventos da tarde significavam, para a sua acuidade auditiva, as advertências das bruxas que povoavam o seu deserto, e o chilrear dos passarinhos o suave consolo que lhes prodigalizavam os gênios carinhosos e alegres.

Eis porém que um dia, desce ao vale misterioso um homem que vê. Fala aos filhos da treva das grandes maravilhas do mundo, dos tesouros amontoados nos seus impérios, das faiscantes grinaldas de luz dos plenilúnios, do entusiasmo colorido das auroras de primavera, de tudo o que as mãos dadivosas do Senhor puseram nas páginas imensas do livro da Natureza, para o encanto fugitivo dos homens.

Em resposta, porém, ouve-se no calabouço um clamor de gargalhadas e de apreensões.

O homem da noite examina com as suas mãos o homem do dia e supõe descobrir a origem dos seus disparates, descrevendo coisas inverossímeis para ele, atribuindo aos seus olhos a causa da sua loucura, concluindo pela necessidade de se lhe arrancarem esses órgãos incômodos, como excrescências daninhas.


Essa fantasia é aplicável ao mundo terreno, em se tratando das verdades novas. Eu sei disso porque também perambulei entre as furnas sombrias desse vale de treva misteriosa, onde se reúnem os que tiveram a infelicidade de perder os olhos dalma, desviando-se do progresso moral.

Envergando a minha camisa pobre na penitenciária do mundo, ri-me dos que me vinham contar as maravilhas deslumbrantes da pátria das almas. E, readquirindo os meus olhos nos países da morte, onde não cheguei a encontrar as águas tenebrosas do e do , venho hoje, como o viajante incompreendido, falar aos que são objeto da ação inibitória de uma cegueira cruel.

Não acredito na compreensão dos outros com respeito aos meus argumentos de agora. Um morto nada tem que fazer no mundo daqueles que se presumem os únicos sobreviventes do Universo e preferi, por isso, o retraimento, quando os jornais abriram as suas colunas aos debates em torno das minhas palavras póstumas, recompensa justa ao meu péssimo gosto de voltar a essa prisão nevoenta da vida.

Cheguei mesmo a ponderar que, na passagem evangélica em que o Senhor não permitiu a caridosa atenção de Lázaro para com a súplica do Rico, (Lc 16:19) não foi com o objetivo de justiçá-los na balança do mérito e do demérito. Ainda aí, nessa hora de surpresas da lei das compensações, não poderia o Senhor fazer a apologia da indelicadeza. Nem o Rico voltou das labaredas fumegantes da sua consciência culpada e nem o Pobre do seu banquete de delícias, porque não valeria a pena transpor-se imensuráveis distâncias para dizer aos encarnados apenas aquilo que constitui para o seu entendimento uma verdade inacessível.

Muito antes de Hermes Tot, os homens já se curvavam ante os mistérios indevassados da morte. Todos conhecem as suas realidades terríveis. tinha conhecimento de que sob o seu látego impiedoso teria de apodrecer, apesar da opulência da sua glória, da pompa de suas conquistas, tendo as suas cinzas nobres confundidas, talvez, com a poeira do último dos miseráveis.

Mas se há essa vida onde predominam a Justiça e o Amor, com o divino característico da eternidade esplendorosa, os homens estão absortos no , afogados na carne para chorar e esquecer.

Os vivos são os vivos. Os mortos são o mortos. Toda a lógica da ciência humana está nessas frases curtas.

Quando, porém, me entregava aos solilóquios do meu Espírito, que nunca se considerou um vencido, ouvi a voz solene dos gênios que velam por nós das regiões azuladas para onde se elevam todas as nossas aspirações como fios de rosa e de ouro:

— “Não desanimes, tu que vieste da luta insana na amargurada existência das provas! Leva aos teus irmãos que sofrem o lenitivo da tua mensagem!… Dize-lhes da Misericórdia de Deus e da suprema Justiça que rege os destinos! Se na Terra inúmeros Espíritos se perdem nos desfiladeiros do orgulho e da impiedade, lembra o microcosmo em que viveste, onde os mais pesados tributos são pagos ao Céu em súplicas e esperanças…”

Energias novas infiltraram-se no meu ser.

Uma atração incoercível conduziu-me a Sebastianópolis, que faiscava. As luzes do dia arrancavam das suas praias uma paisagem fulgurante.

E gritei a todos, do alto do meu deslumbramento:

— “Não me veem?… Eu estou vivendo sem a tutela de Espíritos malignos. Quase já não sou mais o homem carrancudo e triste, fechado na sua amargura de sofredor. É verdade que não poderei comparecer às reuniões de Espiritismo, como às sessões das quintas-feiras na Academia; mas, a morte não aniquilou a minha vida. Penso, luto e sofro como dantes, crendo porém na eternidade luminosa!…”

Ninguém, no entanto, me ouvia. Não pude fazer-me sentir nas avenidas ruidosas, regurgitando de transeuntes, parecendo-me, sob a influência das minhas impressões físicas, que estava prestes a ser esmagado pelos automóveis de luxo.

Na minha desilusão, porém, ouço uma voz humilde e saltitante:

— “Olhem as mensagens de Além-Túmulo!… Mensagens de Humberto de Campos!…”

Era a figura miúda do vendedor de jornais. Mãos generosas estendiam-lhe os seus níqueis em troca da minha lembrança.

O seu mercado, nesse dia, foi certamente farto de compensações, porque um sorriso triunfante lhe aflorava nos lábios, enfeitando-lhe o corpo magrinho.

Bastou a tua alegria, oh! menino amargurado dos Morros, que és o triste ornamento da Cidade Maravilhosa, para que eu me sentisse compensado de muitas labutas, porque, se os meus companheiros não me compreenderam no patrimônio rico da sua intelectualidade, tu tiveste nesse dia, em memória do meu humilde nome, um pouco de alegria, de conforto e de pão.


(.Irmão X)


31 de julho de 1935.


[Referência à cidade do Rio de Janeiro]



Humberto de Campos
Francisco Cândido Xavier


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