Cartas de Uma Morta
Versão para cópiaObservações de uma alma
Logo que me habituei à nova vida na erraticidade, um dos espetáculos mais empolgantes era o de contemplar a Terra à certa distância.
Podem os Espíritos locomoverem-se como o faziam na Terra, lenta e pesadamente, mas não há necessidade de que assim se proceda.
Graças às nossas faculdades volitivas, vencemos as maiores distâncias com rapidez inimaginável, podendo estacionar em qualquer ponto até a zona que nos é possível atingir em nossas condições de relativo desenvolvimento espiritual.
Eu quis, então, ver o orbe terráqueo, dos lugares onde o ar rarefeito se perde as extensões infinitas e viventes do éter. Desejava saber se eu poderia ver o planeta em seus movimentos rotatórios, porém o que senti em tão grandes alturas foi um imenso torvelinho, como se as atmosferas fossem agitadas por furacões destruidores.
Muito abaixo vi massas informes e indistintas… Aproximando-me gradativamente contemplei a Terra que se afigurou não um ponto móvel no espaço, porém fixo e obscuro. Muito ao longe, ainda vi nessa mancha escurecida, que se ia avolumando, alguns detalhes como nesgas cinzentas e outras claras como espelhos gigantescos: eram as grandes cidades e os oceanos que eu tinha sob as vistas deslumbradas. A ação do sol dava a tudo isto um tom maravilhoso; todavia, aproximando-me mais, experimentei indescritível medo. Não vi o movimento de rotação do orbe; o que me amedrontava é que me parecia aportar em uma grande Esfera líquida, cujas extremidades se perdiam numa substância leitosa, com relação à cor, porque eu não podia ponderar a sua estrutura íntima.
Mas uma voz salvadora murmurou aos meus ouvidos:
— “Não suponhas que te vais mergulhar nas extensões aquosas dos oceanos terrestres; o receio é injustificável porque a lei da gravitação agora está subordinada ao teu íntimo querer. Já não estás sob as leis físico-químicas da Terra, cujas medidas e pesos nada mais significam para nós. Pensa no local aonde mais desejaria retornar, idealiza-o na mente segundo as tuas lembranças e a vontade te guiará ao lugar de tuas preferências.”
Atentando bem nas advertências do mentor que me seguia, impulsionada pelo meu desejo, mudei de rumo e, como pensava nos seres caros, que no mundo havia deixado, repentinamente achei-me entre eles na nossa antiga habitação.
Ninguém me viu, apesar de me sentir bem viva junto de todos. Então solicitei da entidade amiga que me acompanhava uma explicação para aquela situação embaraçosa, dizendo-lhe da inutilidade de nosso regresso ao ambiente dos encarnados, pois não se apercebiam da nossa presença.
Disse-me, então, que os trespassados não tinham o direito de influenciar a iniciativa dos entes que haviam deixado no mundo, aos quais os sofrimentos e os trabalhos eram peculiares, acrescentando que poderíamos agir apenas nos domínios da inspiração, atuando indiretamente a fim de se desviarem das resoluções insufladas por Espíritos malfazejos, que infestam os ambientes humanos, onde as irradiações da ambição, do egoísmo e da maldade costumam superar as elevadas vibrações do Bem.
Aconselhou, todavia, que me dirigisse com insistência a todos vós, como se estivéssemos em animada palestra, o que fiz empregando todo o meu potencial de energia psíquica. Com os meus esforços, porém, somente consegui que vos lembrasses ardentemente da minha pessoa. Falastes da saudade que a minha ausência produzia em vossos corações, da antiga convivência, dos pequeninos episódios domésticos de que vos recordáveis com precisão maravilhosa, em suas mínimas particularidades, e francamente chorei, sensibilizada em vos ouvir.
As vossas carinhosas lembranças me comoveram, e me fizeram grande bem as boas palavras que pronunciastes a meu respeito, ditadas por pensamentos elevados, filhos da afetividade que nos unia. Minha consciência sentiu-se mergulhada num ambiente de serenidade e de paz, e eu me lembrei das lágrimas que derramara nas noites longas de graves preocupações morais, das dificuldades que atravessara na existência, dos obstáculos vencidos com as minhas constantes preces para que o nosso lar fosse um ninho de carinhosa paz, onde a pobreza material não prejudicasse a luz do amor, a sublime riqueza dos humildes.
Eu não podia, contudo, imergir-me nesse pélago de lembranças. Era necessário preocupar-me com as modalidades da minha nova vida e foi nessa disposição de espírito que procurei me afastar daqueles poucos minutos de convívio espiritual convosco.
De volta das regiões atmosféricas do planeta, fui induzida pelo meu preclaro companheiro a contemplar o que podemos chamar de aura da Terra. Vi a princípio as camadas de espaço que lhe são imediatas como um todo homogêneo numa cor uniforme.
Mas o meu guia exclamou:
— “Busca ver como a humanidade se une pelo pensamento aos Planos invisíveis. O teu golpe de vista abrangeu a paisagem, procure agora os detalhes.”
Fixando atentamente o quadro, notei que filamentos estranhos, em posição vertical, se entrelaçavam nas vastidões sem se confundirem. Não haviam dois iguais e as suas cores variavam do escuro ao claro mais brilhante. Alguns se apagavam, mas outros se acendiam em extraordinária sucessão e todos eram possuídos de movimento natural, sem uniformidade em suas particularidades.
— “Esses filamentos — disse-me com bondade — são os pensamentos emitidos pelas personalidades encarnadas; são reflexos cheios de vida, através dos quais podemos avaliar os cérebros que os transmitem. Aos poucos conhecerás quais são os da concupiscência, os da maldade, os da pureza, os do amor ao próximo.
“Esses raros, que aí vês e que se caracterizam pela sua alvura fulgurante, são os emitidos pela virtude e quando nos colocamos em imediata relação com uma destas manifestações que nos chegam dos Espíritos da Terra, o contato direto se verifica entre nós e a individualidade que nos interessa.”
Aguçada a minha curiosidade, quis entrar em relação com um pensamento luminoso que me seduzia, abandonando todos os outros, que nos circundavam, para só fixar a atenção sobre ele. Afigurou-se-me que os demais desapareciam, enquanto me envolvia nas irradiações simpáticas daquele traço de luz clara e brilhante.
Ouvi, então, longínqua voz a exclamar:
— “Meu Deus!… Meu Deus!… Atende ao meu coração de mãe desamparada. Se falta a mim e aos meus filhos a proteção do mundo, não nos falte a tua providência misericordiosa! Valha-me neste vale de lágrimas a tua bondade infinita, oh! Pai nosso que estais no Céu…”
Ouvindo essa prece comovedora, vi igualmente uma figura de mulher ajoelhada e banhada em pranto. Num átomo de tempo, por intermédio de extraordinária interfluência de pensamentos, pude saber qual a razão das suas lágrimas, das suas preocupações e como eram amargos os seus sofrimentos. Sensibilizada com as manifestações daquela alma exilada, instintivamente enviei-lhe pensamentos consoladores, pronunciando palavras de fé e de esperança.
Como se me houvera pressentido, via-a meditar por instante com o olhar cheio de estranho brilho, levantando-se reconfortada para enfrentar a luta, sentindo grande alívio.
Ah, como me senti feliz em haver derramado sobre aquela alma sofredora o bálsamo do conforto! Já sabia como proceder para consolar os infortunados e os infelizes, que aceitam a sua cruz com abnegação e devotamento, e se elevam espiritualmente, espalhando nos Espaços a luz de seus corações resignados, a luz que é o distintivo dos redimidos em contraposição com os orgulhosos, que na Terra somente buscam as suas coroas, as quais rolam apodrecidas no sepulcro.
Continuei a reconhecer o valor das angústias depuradoras para os que resgatam na Terra as faltas do passado ou lutam pela evolução psíquica, reconhecendo que as dores constituem de fato os imperecíveis tesouros do mundo.
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