Cartas de Uma Morta

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Capítulo IX

Nos domínios das recordações


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Nos Planos da erraticidade, onde me encontrava, poucos eram os seres cuja mente, em toda a intensidade das suas vibrações, já havia desabrochado o domínio das lembranças relativas às existências passadas.

Nesses tempos imediatos ao post-mortem, repontados de impressões físicas, as quais persistem em algumas entidades anos a fio, a vida é quase cópia da existência da personalidade terrena e foi assim que conheci inúmeros companheiros, que duvidavam dos ensinamentos dos mestres quando se referiam aos pretéritos longínquos; e alguns deles me asseveravam não poderem admitir a multiplicidade das existências da alma. Semelhantes crenças eram o atestado da ignorância de quantos as abrigavam, pois, como nos Planos terrestres, ou nas regiões que vos são ainda imponderáveis, a Natureza não dá saltos.

Naquele ambiente misturavam-se os protestantes, os católicos, os professos de outras seitas, inclusive espíritos que militam nas hostes do materialismo mais avançado na superfície da Terra, e se aquelas falanges de almas não eram más, também não eram perfeitas. Não discutiam acaloradamente, mas cada uma preferia guardar os seus pontos de vista em matéria religiosa, acariciados durante a vida inteira pela mais estranha devoção.



É verdade que nós, os católicos, não encontráramos o purgatório e os seus instrumentos de suplício depurador, nem o inferno e as suas tenazes demoníacas, ou o paraíso lotado de anjos e virgens. Os protestantes de certas escolas reconheceram-se despertos, sem o sono em que se diz estarem mergulhados os mortos, à espera do juízo final.

Nós, os religiosos, não acharemos o que nos prometiam as nossas Igrejas, como os ateus não encontrarão o nada em que acreditaram. A posição de todos, porém, nesse assunto, era de expectativa, segundo presumi, e cada qual se escorava nas suas interpretações pessoais, à espera de que os acontecimentos corroborassem as suas desconfianças.

A ignorância, de que dávamos testemunho com as nossas dúvidas em face daquilo que os pregoeiros da verdade nos vinham ensinar, era oriunda de nossa persistência no atraso espiritual, infensos a toda ideia nova e arraigados em concepções que precisávamos banir para sempre, em benefício do nosso progresso. Essa resistência obstava a necessária amplitude de estado vibratório do nosso Espírito para que nele desabrochassem as recordações adormecidas. É assim que justifico a ignorância havida com respeito ao passado.



Através destas palavras reconhecereis como se faz preciso a difusão das verdades espiritualistas no mundo; só elas servem de base a todos os edifícios religiosos, escoimando a mente de fardos perigosos.

Habituada a acatar incondicionalmente os ensinamentos da Igreja, mantinha também as minhas vacilações quanto à crença nas existências passadas. Por que não me lembrava delas, já que não possuía mais o corpo terreno? Já que a morte me havia arrebatado dos Planos materiais, era natural que não tivesse justificativa aquele esquecimento.

Entretanto, todos os mentores espirituais que nos dirigiam, discorriam sobre o nosso pretérito longínquo… Falavam dos compromissos a resgatar, das dívidas penosas, das lutas necessárias ao nosso desenvolvimento.



Intrigada com esses problemas procurei, como sempre fiz, apelar para as almas beneméritas que nos guiavam em nossa ignorância. Um desses mestres explicou-me:

— “A descrença e a hesitação de que vos achais possuída é, ainda, questão das ideias reflexas, das quais só o tempo, aliado ao bom desejo, vos poderá despojar. A vossa mente é quase a mesma que no mundo vos caracterizava. É preciso meditar muito sobre esta condição, porque as impressões que trouxestes podem perdurar por largo tempo, caso não desejeis com sinceridade evitar essa ignorância e cegueira espirituais.”

Solicitei a sua assistência e auxílio ao que ele prometeu coadjuvar no mesmo instante, a fim de me certificar quanto à realidade das existências transcorridas.



Pediu que me conservasse mentalmente numa atitude passiva e, com as mãos sobre a minha fronte, colocou-se na posição de magnetizador. A princípio senti a sensação de abalo, mas sem o mais leve traço de sono ou de inconsciência, experimentando antes um extraordinário aumento de lucidez e observando maior agudeza de percepções, comecei, então, a ver, não exteriormente, mas em meu íntimo, uma série de coisas e de acontecimentos a que me sentia indissoluvelmente ligada sem o saber. Vi seres aos quais me pressentia jungida por inquebrantáveis algemas e lhes ouvi a voz terrível ou acariciadora… Eu ia compreendendo todos esses fatos que se sucediam uns aos outros.

Ah! Se vi algo nesses panoramas retrospectivos que me trouxe gratos prazeres ao coração, também enxerguei as misérias de minhalma necessitada de esclarecimento e redenção e, — se não é possível relatar todas as visões daqueles minutos em que me coloquei sob o império da excitação vibratória provocada pela bondade do meu guia com os seus poderosos fluidos, — posso dizer-vos de uma cena tocante, eternamente gravada em meu Espírito.



Experimentei nessas sensações de volta ao passado o vácuo de meu coração envenenado pela atração dos gozos mundanos, antes de retornar ao orbe para minha derradeira encarnação; vi-me como um ser errante, sem destino, crucificado pelo isolamento e pela condenação da consciência poluta. Perambulando, mas retida no mesmo lugar como se fora chumbada ao solo, encontrei alguém que reconheci ser um Espírito querido à minha existência. Aproximei-me, então, depois de longa ausência, daquela que me serviu de mãe, a quem conhecestes. Como me sensibilizou vê-la naquela situação de humildade, lutando com mil asperezas num destino de pobreza ingrata!

Acerquei-me daquela jovem de faces maceradas nos trabalhos e lembrei as alegrias mentirosas de que fomos partícipes no passado. Tive ímpetos de incitá-la a abandonar as tristezas da sua vida material, mas uma voz imperiosa ordenou que eu me prostrasse de joelhos.

Contemplei genuflexa o seu semblante cheio de serena grandeza no infortúnio e chorei, chorei, muito, exclamando:

— “Oh! tu que já sorveste comigo, na taça das efêmeras felicidades da Terra, o mesmo vinho de envenenado sabor, e que hoje resgatas na túnica dos pobres e dos humilhados as dívidas de outrora, ajuda-me em meus bons desejos… Eu quero também esconder nos trapos da plebe anônima e sofredora as úlceras da minha enorme desdita. Lavarei com lágrimas as nódoas da minha consciência, seja eu sangue do teu sangue, carne da tua carne! Dá-me das tuas vestes e das tuas preocupações, dá-me dessas dores que hoje te crucificam e desses desgostos que desfazem os teus enganos e ilusões, porque só eles, só esses sofrimentos salvadores, balsamizarão as minhas feridas, devolvendo-me a paz consoladora.

“Recebe-me, ó Espírito bem amado, afaga-me em teu carinhoso regaço para eu adormecer esquecendo!… Eu tenho necessidade de olvido numa luta nova!…”

Nessas rogativas sinceras, vi que o rosto daquela mulher se cobria de lágrimas; pensamentos tristes e amargosos envolviam-na. É que os meus apelos repercutiam no seu coração.

Chorando, chorando, senti-me exausta de forças, sem poder erguer-me da prostração; vibrações de uma brisa misteriosa varriam, entretanto, do meu cérebro esgotado, as mágoas e as preocupações.

Eu perdia a consciência de mim mesma… É que dava o primeiro passo para o meu renascimento na Terra e, segundo os meus desejos, aquela mulher me recebia em seu seio para, igual a ela, sorver o fel da provação redentora e, imitando-a, fui também mãe para sofrer e me redimir.




Maria João de Deus
Francisco Cândido Xavier


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