Cartas de Uma Morta
Versão para cópiaA história viva das coisas
Depois de nos adaptarmos à vida livre dos Espaços, quando o ser não se encontra debaixo de paixões absorventes e a sua consciência se despovoa das lembranças penosas, compreende-se quão sublimes são os atributos das almas, ornamentos luminosos do incomparável dom divino da inteligência.
Uma das faculdades, acerca da qual ouvia maravilhosas dissertações, era a que fornecia ao Espírito o poder de penetrar o passado longínquo, não para se examinar individualmente, mas para o estudo de épocas, de costumes, de civilizações, de raças, lendo a história viva da evolução humana. Eu ainda não me aventurara nesse terreno para o qual me julgava balda de forças; todavia, alguns estudiosos sentiam com tamanha intensidade a sede de auscultar o pretérito da humanidade, que solicitavam o auxílio de mestres aptos a coadjuvá-los para isso.
Organizavam-se, então, reuniões no ambiente em que me encontrava, onde vários mentores espirituais operavam, como se fossem êmulos de Mesmer, em experiências magnéticas. Espíritos desejosos de relação com o passado entregavam-se passivamente como os sujets nesses estudos, com a diferença de que não perdiam a consciência do seu “eu”, conservando-se atentos a todo o ensinamento.
Esses estudos não eram, pois, completamente análogos aos vossos; representavam somente o esforço de uns para que se despertasse com mais rapidez a consciência espiritual, em toda a grandeza do seu poder vibratório.
Sabendo contudo que, com a ajuda do recolhimento em preces constantes, cada um de per si, paulatinamente, poderia fazer as suas investigações, esperei pacientemente a minha vez. A princípio, quando me entregava a esses exercícios, parecia-me adquirir um segundo estado mental em que os meus pensamentos eram coisas movimentadas, ativas e palpáveis. Nada havia neles de abstrato ou de imaginário, caracterizando-se todos os elementos por traços especiais.
Até hoje não sei se os quadros por mim lobrigados eram um retrospecto de minhalma às suas próprias existências passadas ou se fui observadora de paisagens, fotografadas para sempre nos raios da luz que nos circundavam em toda a parte.
Vi, primeiramente, os quadros atinentes ao passado local da cidade em que nascera, os quais são em demasia sem relevo para que a eles me refira.
A minha visão, porém, foi ampliando-se estendendo-se no espaço e no tempo com relação à existência da pátria. Contemplei, emocionada, em razão do fenômeno que se operava, os seus grandes acontecimentos históricos como revoluções intestinas, lutas com o estrangeiro, fatos políticos e sociais.
Vi o desenrolar de muitas cenas, donde se irradiaram efeitos benéficos ou nefastos para todo o país, porém a tudo assistia admirada de não ver as solenidades e pompas de que se faz a história acompanhar nos seus erros descritivos.
Em quase nenhuma das personalidades que se me deparavam aos olhos, via a auréola de glória que a posteridade lhes havia dado; ao contrário, pude constatar que inúmeros daqueles, que são venerados pelos homens com o incenso de um falso patriotismo, não passavam de míseras almas fracassadas em seu bons propósitos, conservando-se, além dos véus físicos, famintas de luz e de paz.
O que mais me comoveu nos quadros animados, que eu via da existência coletiva da nacionalidade, foram os rasgos de heroísmo, os romances de miséria e dor, as páginas sangrentas da escravidão do Brasil. Vi seres crucificados em suplícios dantescos, perseguidos por dores lancinantes, infligidas por senhores desalmados e cruéis; mas pude saber também que naquelas vestes de infortúnio e padecimentos se ocultavam antigos dominadores e verdugos da humanidade em eras de antanho, os quais resgatavam penosamente as dívidas de outrora.
Poderosos e déspotas romanos, inquisidores da Igreja, algozes das coletividades, inúmeros tiranos de todas as épocas buscaram a purificação pelos trabalhos do cativeiro, dominando climas bravios, devassando florestas inóspitas e afrontando vexames na procura de sua redenção moral.
Minha visão estendia-se mais e mais e vi o solo brasileiro habitado pelos aborígenes, admirando as suas bizarras manifestações de crença, sua maneira especialíssima de viver, vi a chegada dos primeiros colonizadores e a luta que se travou entre eles e os naturais. Auscultando os pretéritos longínquos, tenho pessoalmente razões para acreditar que o continente americano nada tinha de novo e que foi das suas grandiosas extensões que saíram, aos magotes, os emigrantes para a criação dos surtos civilizadores de outras terras.
Era para mim, portanto, um mundo novo de sensações, poder regredir ao passado, sentir a ansiedade dos agrupamentos coletivos e vibrar com a sua vida intensa.
Certa ocasião eu quis experimentar se não poderia ver algo fora dos assuntos relacionados com o recanto do mundo em que vivera e tomei para isto, um antigo documento guardado por egiptólogos com atenção e carinho.
Tratava-se de um papiro, que trazia uma inscrição hieroglífica, da qual não pude saber de relance a expressão textual; todavia, revirando-o nas mãos, senti alguma coisa de extraordinário. Entrei em relação com o estado vibratório do seu antigo possuidor quando ali grafara o complicado texto e soube logo que se tratava de uma fervorosa invocação a , formulada por um sacerdote tebano, em momento de angustiosa expectativa. O que senti, então, foi algo comparável ao que experimentam todos quantos possuem o dom da psicometria.
Relacionei-me com a existência do sacerdote em apreço e senti as suas impressões no instante em que formulara a sua rogativa… Vi ao meu lado a grande pirâmide e não muito longe divisei o vulto da esfinge gigantesca no deserto de areia, porém não trazia em si o vestígio do tempo e das tempestades. Sobressaía do seu aspecto imponente, grandioso, o esplendor das eras faraônicas… Lobriguei no corpo majestoso da pirâmide uma porta lateral, onde penetrei acompanhando aquele sábio egípcio em suas meditações profundas; atravessei corredores sinuosos e câmaras escuras, repletas de ar sombrio, como se fossem povoadas de espectros ameaçadores.
Chegada a certa altura, desci por caminhos tenebrosos, onde haviam os maiores perigos para uma alma encarnada; símbolos terríveis se apresentavam àquele iniciado e admirei a coragem desse homem de nervos férreos, que não temia a sombra, a ameaça e a morte.
Através de peripécias inenarráveis, chegamos a um templo subterrâneo de regulares proporções, entre cujas paredes se abrigavam muitos homens silenciosos, bizarramente trajados. Eu vi, porém junto deles muitos seres espirituais; e dentre os presentes destacava-se a figura majestosa e complacente de um velho que, certamente, era o supremo hierofante ou grande sacerdote da comunidade. Vi-o estender os braços horizontalmente, pronunciando palavras num idioma para mim ininteligível mas das quais pude alcançar a essência, penetrando-lhe o pensamento.
Assisti a cerimônias extravagantes e esquisitas, regressando, depois de terminadas, pelos mesmos caminhos a que me referi. Aquele iniciado, ao grafar as ideias no papiro experimentava a lembrança dos seus venerandos mestres. As vibrações da sua mente haviam impregnado aquele objeto e a sua prece estava ali patente e imortal.
Concluída a minha experiência, ouvi a voz do meu guia a exclamar:
— “Considera, minha filha, como todas as coisas têm a sua história!… A vida é o eterno fenômeno dos jogos vibratórios e tempo virá em que as almas na Terra compreenderão o papel do Espírito na sua esfera infinita de influenciação. Nessa era nova, os homens verão mais além e hão de construir, com os seus conhecimentos, a felicidade eterna.”
— Deus egípcio, representado ora por um gavião, ora por um homem com cabeça de gavião.
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