Assim Dizia o Mestre
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"TENDE FÉ EM DEUS – E TENDE FÉ EM MIM TAMBÉM!"
Há, nos livros sacros, duas palavras que, em nossos dias, são de uso e abuso diário, mas perderam o seu sentido primitivo, que foi substituído, através dos séculos, por outro, incomparavelmente inferior. Mas os que nada sabem dessa paulatina deturpação do sentido inicial continuam a usar essas palavras e chegam a conclusões totalmente errôneas. Ficou o invólucro externo, mudou o conteúdo interno.
Essas duas palavras são fé e caridade. No presente capítulo trataremos apenas do sentido da palavra "fé".
O que, geralmente, se entende por esta palavra, em nossos dias, é um sentimento intelectivo e volitivo, mais ou menos vago ou incerto, e uma determinada doutrina, ou a confiança numa pessoa. Assim, por exemplo, quando alguém deixa de pertencer a este ou àquele grupo religioso – digamos, a certa igreja hierárquica – dizem os teólogos dessa igreja que fulano "perdeu a fé". Que foi que ele perdeu? Perdeu a crença numa determinada teologia ou exegese engendrada por um grupo de homens. Em geral, essa "perda de fé" é uma etapa necessária para a evolução do homem rumo à verdadeira fé.
Entretanto, o egoísmo sectário não tolera facilmente que alguém ultrapasse o estágio evolutivo em que os adeptos dessa etapa se encontram. Para os sacerdotes da sinagoga de Israel, Jesus tinha renegado a fé, quando afirmou que o reino de Deus vinha de dentro do próprio homem, e não das mãos dos doutores da Lei e sacerdotes.
O que os teólogos, por via de regra, chamam crer, ter fé, está para a fé real assim como um fogo pintado está para o fogo real. Um fogo artificial, pintado na tela, embora com absoluta fidelidade e arte incomparável, não dá luz nem calor; com ele não se pode atear fogo em matéria alguma, por mais combustível – ao passo que um fogo real, embora pequenino como uma chama de fósforo, pode atear gigantescos incêndios, iluminar e acalentar o mundo inteiro.
O fogo real tem a propriedade dinâmica de produzir "reação em cadeia", apoderando-se sucessivamente de todos os combustíveis ao seu alcance, ao passo que o fogo artificial é essencialmente estático e inerte e não tende a comunicar-se ao ambiente.
O que nós, geralmente, entendemos por crer, ter fé, consiste em atos do intelecto e da vontade; mas o que Jesus e os gênios espirituais da humanidade chamam fé é uma experiência direta e imediata do mundo espiritual, do mundo invisível de Deus, é um contato vital com o Infinito, o Absoluto, o Eterno.
A fé verdadeira, como aparece nas páginas dos livros sacros, não é adesão a uma determinada doutrina, nem a lealdade a esta ou àquela pessoa que representa certa teologia; mas é uma experiência íntima, um compreender e saber intuitivo, uma invasão ou eclosão do mundo divino no homem, uma como que linha vertical que vem de ignotas alturas e vai a misteriosas profundidades;
a fé é um contato direto entre Deus e o homem, por mais inexplicável que seja esse contato. Tudo que é anterior a essa fé e, por assim dizer, horizontal, humano: nesse plano preliminar é o homem que age e produz; mas, quando a misteriosa vertical corta a horizontal, é Deus mesmo que age e produz, suposto que o homem se tenha tornado receptivo para essa invasão do mundo divino.
Tanto essa receptividade prévia como essa mesma experiência divina é que os livros sacros chamam fé (em latim fides, em grego Pistis).
Para concretizarmos essa grande verdade, seja-nos permitido usar uma comparação ingênua tirada da natureza orgânica.
Debaixo duma folha verde se acha um ovinho de borboleta. Esse ovinho é uma borboleta?
É – e não é.
Atualmente não é borboleta – potencialmente, é. Em sua íntima essência, esse minúsculo ovinho é uma borboleta; em sua existência externa, não é. Quer dizer que a íntima essência ou potência do ovinho e da borboleta são idênticas;
a sua verdadeira natureza é uma só. Mas no plano evolutivo da existência ou atualidade, há uma grande diferença entre o ovo e a borboleta nele contida potencialmente. O lepidóptero adulto possui um maravilhoso corpo trissegmentado, meia dúzia de perninhas duplamente articuladas; um par de grandes olhos hemisféricos, cada um com diversos milhares de facetas visuais;
possui uma boca artística em forma de delicada espiral contrátil, com a qual suga o néctar das flores; dispõe de dois pares de asas, que são obras-primas de resistência, leveza e estética – nada disso se encontra, aparentemente, no ovinho, que consiste apenas numa casquinha de quitina sólida e num conteúdo líquido ou viscoso, sem nenhuma diferenciação visível.
No plano externo da existência, é enorme a diferença entre o ovinho e a borboleta – mas no plano interno da essência não há diferença alguma; existe perfeita identidade; a natureza do ovinho é a natureza da borboleta. De maneira que o ovinho, animado de uma "fé" biológica intuitiva, poderia afirmar: "Eu e a borboleta somos um".
Coisa análoga poderíamos dizer do próximo estágio evolutivo desse inseto, a lagarta, que, no plano existencial, não é nada parecida nem com o ovinho nem com a borboleta, e, no entanto, lhes é idêntica no plano da essência.
O mesmo acontece ainda com o terceiro estado, a crisálida, ou casulo. Quem poderia suspeitar que aquela bonequinha imóvel e aparentemente morta fosse idêntica à lagarta comilona ou à borboleta volúvel e multicor?
Ora, que é que faz com que o ovo se transforme em lagarta, esta em crisálida, e esta em borboleta?
É a fé na identidade da essência das quatro formas existencialmente tão diferentes. Naturalmente, neste caso, é uma fé biológica, inconsciente ou subconsciente.
Se o ovinho pudesse perder essa fé biológica na sua essencial identidade com a lagarta, a crisálida e a borboleta, nunca atingiria nenhum desses estados superiores. Se o ovinho não "cresse" intimamente que já é implicitamente, hoje mesmo, o que pode vir a ser explicitamente amanhã, nunca se processaria essa metamorfose. A realidade interna produz as formas externas. A essência causa as existências. A causa invisível produz os efeitos visíveis. No momento em que o ovinho, a lagarta ou a crisálida perdessem a sua fé biológica na futura borboleta, estaria cortada a linha da continuidade vital, roto um elo, da cadeia ovo-lagarta-crisálida-borboleta, e este último elo, desligado dos outros, nunca apareceria como realidade definitiva. Estaria destruída a profunda harmonia essencial que vigora entre a alma do ovinho e a alma da borboleta, e seus intermediários, e, devido a essa falta de nexo e harmonia vital, não haveria transição de uma forma de existir para outra, porque o que torna possivel essa transição de estado a estado é a fé numa profunda identidade essencial a permear todas as diferenças existenciais. A fé afirma uma unidade invisível no meio das diversidades visíveis.
Eis aí o perfeito simbolismo do que acontece entre o homem imperfeito de hoje e o homem perfeito de amanhã – suposto que haja o misterioso vínculo de continuidade que chamamos fé. Os homens ao redor de nós se encontram em planos vários de evolução – ovo, lagarta, crisálida; as nossas formas existenciais são mais ou menos primitivas e imperfeitas; mas pouco importam essas imperfeições, contanto que através de todas elas o homem, em qualquer estágio evolutivo, mantenha firme a linha reta da sua fé essencial no seu estado perfeito de homem integral e crístico, "até que todos cheguem à unidade da fé, ao pleno conhecimento do filho de Deus, ao estado do homem perfeito, à medida da madureza da plenitude do Cristo" (Ef. 4,13).
Por maiores que, de momento, sejam as diferenças existenciais entre mim e o Cristo que apareceu em Jesus, entre essa minha "lagarta" e a "borboleta" dele, eu sei que, no plano da essência, há um elemento de identidade entre mim e o Cristo. Diferente é o grau de evolução, idêntico é o elemento básico. Eu posso ser explicitamente o que Cristo em Jesus era e é, por que implicitamente já sou o que ele é. "Vós fareis as mesmas obras que eu faço, e fareis obras maiores que estas", disse ele a todos os seus seguidores. "Eu e o Pai somos um; o Pai está em mim e eu estou no Pai; o Pai está em vós e vós estais no Pai". "Não sou eu que vivo – pode dizer cada um de nós –, o Cristo é que vive em mim".
Em Cristo Jesus estava e está, em plena evolução, a consciência da sua essencial identidade com o Pai – em mim está essa mesma consciência, mas ainda obscuramente, num estágio primitivo, embrionário, incompleto.
Há para mim, e para todos os homens, dois grandes perigos nesse caminho de evolução rumo ao Cristo:
1) o dualismo;
2) o panteísmo. Quem, em vista das diferenças existenciais, não crê na sua identidade essencial com Deus não pode chegar à "plena madureza com o Cristo", porque cortou a linha vital da fé;
quem, por outro lado, em face da sua identidade essencial com Deus, perde de vista as suas diferenças existenciais, identificando-se simplesmente com Deus, esse não pode progredir rumo ao Cristo, porque já se julga temerariamente no fim da jornada.
O dualista peca por deficiência da fé.
O panteísta peca por excesso de crença.
Mas tanto a deficiência de fé como o excesso de crença matam a verdadeira fé.
Se um ovinho não crê que possa vir a ser borboleta, ou acha que já é borboleta atualizada – nunca virá a ser borboleta. É necessário crer tanto na identidade da essência como na diversidade da existência, para que a alma daquela possa vivificar o corpo desta.
A fé verdadeira e genuína é, portanto, uma convicção íntima de que eu, essencialmente, sou idêntico a Deus ("Vós sois deuses", disse Jesus), mas que, existencialmente, sou infinitamente inferior a Deus.
Que posso fazer para desenvolver em mim essa fé?
Sendo que a minha consciência telúrica, baseada no testemunho dos sentidos e do intelecto, só conhece diferença e distância entre mim e Deus, tenho de ultrapassar essa experiência física co-mental e entrar numa zona onde desperte a minha consciência cósmica, que afirma a minha essencial identidade com Deus. Ora, para que essa consciência cósmica possa falar, é necessário que a consciência telúrica se cale, pelo menos de vez em quando, até que aquela adquira suficiente poder sobre esta. Tenho de estabelecer, pois, as minhas horas de contato direto com o mundo invisível, até que ele me torne tão real como o mundo visível, ou mais real ainda. Impor silêncio temporário aos sentidos e ao intelecto é indispensável para ouvir a voz silenciosa da razão ou da alma, o Deus em mim.
Além disso, tenho de estabelecer perfeita harmonia ética entre o mundo da minha fé e o mundo da minha vida cotidiana. Devo viver assim como se já tivesse perfeita e definitiva experiência do mundo invisível. Essa vivência ética, em sintonia com a minha fé, consiste numa permanente solidariedade com toda e qualquer vida do universo – solidariedade para cima, para os lados e para baixo, isto é, amor a Deus, aos homens e à natureza. Devo abranger no meu amor, na minha caridade e na minha simpatia todo e qualquer ser vivo (e não há nenhum ser morto no universo); devo sentir pulsar em minhas artérias as pulsações da vida do cosmos, estabelecendo perfeita solidariedade entre mim e tudo que vive fora de mim.
Essa vivência ética, pela solidariedade cósmica, me conferirá a sapiência definitiva e completa, revelar-me-á a única e universal paternidade de Deus, manifestada em universal fraternidade humana e simpatia infra-humana.
Sentirei e amarei a minha vida na vida de todos os seres vivos, porque é a vida de Deus.
Na experiência íntima dessa solidariedade cósmica, atingirá a minha fé a sua última e suprema perfeição, transformando-se em amor universal.
O homem que chegou a essa plenitude da fé experiêncial, e essa maturidade do amor universal, é onipotente, e compreenderá o que o divino Mestre quis dizer com as palavras: "Se tiverdes fé, ainda que seja como um grão de mostarda, e disserdes a este monte: sai daqui e lança-te ao mar, e se não duvidardes em vosso coração, crede que assim acontecerá; porque tudo é possivel àquele que tem fé. . . "