Assim Dizia o Mestre
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"O REINO DOS CÉUS É SEMELHANTE A UM FERMENTO. "
Desta vez foi o divino poeta-filósofo-profeta buscar a matéria-prima da sua parábola no ambiente doméstico da dona-de-casa, quando, normalmente, a encontra nos campos de lavoura do homem ou na via social. Entrou pela porta da cozinha e viu uma mulher, talvez sua própria mãe, amassando a farinha para o pão do dia seguinte, viu que tomou um pouco de fermento, previamente preparado, e foi "escondê-lo", como ele diz, em "três medidas" de farinha.
Depois cobriu a tina ou gamela com um pano e foi-se embora. E, na manhã seguinte, a massa havia crescido grandemente, graças ao fermento nela "escondido".
Essa parábola frisa três aspectos característicos da ação do fermento do reino de Deus no homem: a ação silenciosa, constante e infalível.
As "três medidas" da massa humana – isto é, alma, mente e corpo – têm de ser totalmente levedadas, permeadas e vitalizadas pelo misterioso agente.
Os efeitos dessa fermentação interna são visíveis na vida ética do homem renascido pelo espírito – mas a causa dessa transformação continua oculta.
A fermentação física consiste na atividade de certos seres microscópicos, unicelulares, chamados fungos, que, quando encontram ambiente propício, se multiplicam rapidamente, produzem gases e arejam a massa compacta da farinha, fazendo-a "crescer" e tornando-a leve, porosa e de grato sabor. A massa, depois de fermentada, vai para o forno, e dá em resultado um pão fofo e arejado por milhares de pequeninos reservatórios de aberturas internas produzidas pelos invisíveis agentes de fermentação.
É este símbolo material o perfeito paralelo do simbolizado espiritual do reino de Deus no homem. O homem não deixa de ser o que é, mas o modo como ele é o que é passa por uma grande transformação. A vida desse homem, interna e externa, uma vez penetrada pelo divino fermento da experiência do reino de Deus, perde o seu caráter duro e pesado, a sua compacta materialidade, e assume algo de leve e arejado, que é mais fácil sentir do que definir. O homem divinamente levedado já não se abate e acabrunha em face de acontecimentos provindos das adversidades da natureza ou das perversidades dos homens, porque tem o seu centro de gravitação em outras regiões, inacessíveis a esses agentes externos: considera todos os eventos com certa leveza e serenidade, e pode até sorrir calmamente em face duma tragédia que, outrora, o teria levado ao desespero. Esse homem já vive, aqui mesmo, a vida eterna, porque encontrou o seu "ponto de Arquimedes" onde aplicar a alavanca e suspender mundos pesados, como se fossem teias de aranha. A morte repentina de um parente próximo ou amigo querido repercute dolorosamente em seu ego emocional, é certo, mas deixa o seu Eu espiritual perfeitamente equilibrado e invulnerável, calmo e senhor de si e da situação. Uma falência econômica, uma injustiça moral ou social atingem apenas a superfície desse homem, mas as profundezas do seu ser continuam em perfeita paz e tranquilidade, como os abismos do oceano quando a tormenta lhe revolve a superfície.
As "três medidas" da natureza humana foram levedadas pelo poderoso fermento crístico que nele estava "escondido". Sim, "escondido", oculto, uma vez que ninguém pode ver o invisível agente dessa transformação do homem.
A ação do fermento do reino de Deus no homem é silenciosa, como silenciosas são todas as coisas grandes e sublimes. O que é realmente grande não necessita de ruidosa publicidade para se manter e expandir, dispensa deslumbrantes cartazes multicores e altissonante propaganda. Ruído é indício de fraqueza e pequenez. Quanto maior o silêncio, tanto melhor para a grandeza, porque a alma das coisas grandes está para além das categorias de tempo e espaço, que não podem produzir nem destruir o que é eterno e infinito.
O homem primitivo, dentro ou fora da mata virgem, necessita de barulhos múltiplos e violentos, tambores e trombetas, espocar de foguetes, e bombas, gritaria selvagem e descompassada; só assim pode ele sentir suficientemente a sua própria existência, que, sem isso como que se esvairia em tênue neblina de incerteza. O homem primitivo necessita desses barulhos, porque só assim, quando o seu sujeito se sente objetivado e refletido no espelho desses ruídos externos, é que ele é capaz de sentir a sua própria existência. Daí a sua fome instintiva por barulhos violentos. Parafraseando o conhecido "cogito, ergo sum" (eu penso, logo existo), de Descartes, poderia o homem primitivo dizer: "Eu faço barulho, logo existo!". Se não fizesse barulho, não teria suficiente certeza da sua existência. De maneira que a plenitude de todo esse barulho externo é atestado da vacuidade interna de seu autor, porque o homem de plenitude interna não tem necessidade dessa compensação externa.
O homem mais culto, intelectualmente erudito, necessita, geralmente, de outra espécie de ruído, necessita do ruído articulado de discursos, conversas, sermões, conferências, etc. O intelectual necessita de auditórios de intelectuais, e o veículo para transmitir o ruído mental dos seus pensamentos é o ruído verbal de discursos, que nos ouvintes se converte novamente em ruído mental dos pensamentos. Essa "luxúria" mental e verbal é característica no mundo da intelectualidade. Poucos chegam à "castidade" do silêncio espiritual: a mente prostituída dificilmente aceita essa "virgindade".
Mas o homem, quando ultrapassa essas fronteiras evolutivas, entra na zona de um maravilhoso silêncio, que lhe diz muito mais do que todos os ruídos inarticulados e articulados, dos sentidos e da inteligência.
E é nesse silêncio fecundo que o divino fermento começa a trabalhar intensamente.
O fermento espiritual atua constantemente, sem falhas nem intermitências. O homem espiritual não depende do bom ou mau tempo, do estado favorável ou desfavorável dos seus nervos, da plenitude ou vacuidade do estômago, dos louvores ou vitupérios de outros homens – a sua fermentação interna é um processo totalmente independente de fatores externos, porque esse homem proclamou a independência do seu sujeito sobre a tirania de todos os objetos.
O seu ego físico-mental é servo de seu Eu espiritual. O Eu crístico conduz, e o ego luciférico é conduzido. Mesmo quando o homem espiritual nada faz, quando descansa ou dorme, a ação do fermento do reino de Deus continua ininterruptamente a atuar no seu interior. A alma, sede desse processo, não conhece sono.
Infalível é a ação do fermento divino no homem, porque é de ótima qualidade.
Em si mesmo não poderá jamais ser corrompido. O único obstáculo externo à sua atuação pode ser a liberdade do homem que lhe obstrua os caminhos.
Mas, quando deixado a si mesmo, em plena liberdade, o fermento da reino de Deus atua com infalível certeza e precisão.
O homem intelectual julga poder traçar o itinerário da sua vida; o seu estreito luciferismo se arroga à competência de poder dirigir a sua vida. Só depois de muitos sofrimentos e derrotas trágicas é que ele aprende, finalmente, que só Deus pode traçar o itinerário da sua vida.
E então começa o fermento a tomar conta das "três medidas" da natureza humana – alma, mente e corpo. . .