Assim Dizia o Mestre

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CAPÍTULO 14
Ilustração tribal

"SAIU O SEMEADOR A SEMEAR A SUA SEMENTE. "


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Certas parábolas de Jesus – como as do semeador e do joio entre o trigo – atuam como terremotos sobre a nossa teologia tradicional.

Afirma o Mestre que o semeador – isto é, ele mesmo, o Cristo encarnado – foi semear a boa semente da palavra de Deus – onde?

Parte à beira da estrada, onde nem sequer germinou, mas foi calcada aos pés pelos transeuntes e devorada pelos passarinhos. Parte caiu em terreno pedregoso, onde brotou, mas não tardou a morrer, por falta de umidade. Outra parte caiu no meio dos espinhos, onde brotou, cresceu precariamente, foi sufocada pelos espinheiros, e não frutificou.

Apenas pequena parte – talvez 25% – caiu em terreno bom, brotou, cresceu, floresceu e frutificou. Mas nem essa semente produziu toda o mesmo fruto;

parte dessa sementeira deu trinta, outra parte sessenta e ainda outra cem grãos por um.

Mas, porque não escolheu o semeador somente terra boa? Por que desperdiça uns 75% da divina semente à beira do caminho, entre pedras e espinheiros?

Não sabia ele, de antemão, que em nenhum desses terrenos ia a semente produzir fruto?

Quer dizer, Deus não escolhe cuidadosamente o terreno propício para conseguir uma colheita 100% satisfatória; espalha a semente do seu verbo em profusão, a esmo, como se lhe fosse indiferente a frutificação ou a esterilização. E mesmo o terreno bom é vastamente heterogêneo, tanto assim que parte da semente aí lançada produz trinta grãos por um, outra sessenta e outra cem.

Verdade é que, na parábola, se trata do terreno consciente e livre da alma humana, e a dureza do caminho, o impróprio das pedras e a asfixia pelos espinheiros correm por conta e risco do uso ou abuso da liberdade humana – mas, mesmo assim, não parece bem estranho que o divino semeador não faça nenhuma seleção de terreno, quando ele previa esses resultados negativos?. . .

Segundo certas teorias nossas, Deus creou todas as almas iguais e deu a todos os homens a mesma possibilidade de evolução. Afirmamos afoitamente que a diferença da frutificação vem unicamente do homem – mas o teor dessa parábola parece desmentir semelhante postulado. Não parece ter havido, desde o início, terrenos de diferente receptividade? Efeito do uso ou abuso da liberdade humana? Mas por que é que alguns homens usam e outros abusam da sua liberdade, se, no princípio, todos eram perfeitamente iguais, com a mesma facilidade de praticar o bem? Por que uns fizeram da sua alma terreno estéril, outros semi-estéril e outros plenamente fecundo?. . .

Essa teoria da perfeita igualdade inicial de todos os homens cabe, certamente, nas ideologias democráticas do nosso tempo – mas será Deus o "grande Democrata"? Não parece ele antes o "grande Aristocrata"? E não parece todo o seu Universo, desde o mineral até aos anjos, uma gigantesca hierarquia? Não predomina a ideia hierárquica da desigualdade em todos os departamentos da natureza, visível e invisível?

Deveras, quem contempla sem prevenções a ordem do Universo não se pode furtar à impressão de que todo ele é uma imensa "Hierarquia Cósmica. . . " Não há dois seres iguais, e a desigualdade vem desde o princípio da sua existência.

Nada é padronizado, nada feito pelo mesmo modelo ou chavão.

Há quem descubra "injustiça" neste fato de haver Deus creado seres com diversas possibilidades de evolução; acham que, para evitar "injustiça", todos os seres deveriam ter a mesma possibilidade de aperfeiçoamento; que todos os minerais deveriam ter a potência de, um dia, passar a ser vegetais, estes deveriam poder evolver para animais, estes para homens, e os homens deveriam desenvolver-se em anjos, arcanjos, etc.

O mundo de Deus, porém, a despeito das nossas mais belas teorias de igualdade democrática, não é nada democraticamente igual, ignora totalmente essa decantada "igualdade de direitos". Mas não há nisso injustiça alguma, como a nossa acanhada inteligência nos que fazer crer. Se Deus tivesse prometido a todos os minerais a evolvibilidade até à altura dos vegetais, e se depois não cumprisse essa sua promessa (concretizada na potencialidade, dos minerais), então, sim, teríamos injustiça, porque "o prometido é devido", mas essa promessa tácita, ou potencialidade, não existe em todos os minerais. Se alguma substância mineral de fato evolve em organismo vegetal, é simplesmente uma "graça" divina, e não um "direito", que o mineral possa reclamar.

O mundo de Deus é baseado sobre o princípio hierárquico da diversidade graciosa, e não da monotonia obrigatória. Deus nada deve a ninguém. Tudo que as creaturas são e recebem é inteiramente gratuito, seja pouco, seja muito.


Nenhum mineral tem o direito de reclamar, dizendo "por que não me fizeste vegetal, animal ou homem?"
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Voltando à parábola do semeador, não é provável que todos os terrenos nela mencionados fossem simples creação do livre-arbítrio do homem. Todos tinham, de início, graus diversos de facilidade ou dificuldade para fazer frutificar a semente da palavra de Deus. Não há liberdade completa em nenhuma creatura; só o Creador é que é absolutamente livre. Liberdade é potência, plena liberdade é plena potência ou onipotência. Se o homem fosse totalmente livre seria onipotente igual a Deus. Os diversos graus de liberdade são herança inicial de cada indivíduo, e essa herança, na primeira etapa, não corre por conta da liberdade dele; é dom gratuito de Deus, é graça divina. Deus dá a cada homem o grau de liberdade que lhe apraz. O homem é suficientemente livre para ser responsável por seus atos conscientes, sendo por isso autor responsável pelo bem e pelo mal que praticar; mas o grau de liberdade e responsabilidade ética não é o mesmo em todos os homens.

Há quem se arvore em advogado da Providência Divina, julgando de seu dever justificar meticulosamente todos os atos do governo de Deus no Universo. No fim de todas essas bem-intencionadas apologias, porém, resta sempre vasto resíduo de mistérios inexplicáveis, que formam pedra de tropeço para muitos cépticos e ateus. Partem de uma falsa premissa – de que todas as obras de Deus devam ser justificáveis à luz do intelecto – e depois se escandalizam por que o Deus no Universo não corresponde ao padrão do Deus das suas teorias intelectualistas.

Jesus nunca tentou "explicar" os mistérios de Deus. Tudo quanto se "explica" complica-se, destrói-se até. No fim de todas as "explicações" meramente analítico-intelectuais está o caos ou o nada. Saber explicar o explicável e adorar em silêncio o inexplicável – é grande sabedoria.


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Ai de nós se não houvesse mistérios inexplicáveis! Insuportável nos seria este mundo. . . Quem "explica" a Deus é ateu!. . .

Na parábola dos "trabalhadores na vinha" reaparece esse mesmo mistério da desigualdade.

Em vez de tentarmos explicar o inexplicável e reduzir a fascinante Hierarquia de Deus a uma fastidiosa democracia dos homens, não seria melhor que cada um de nós trabalhasse jubilosamente com os dotes que lhe couberem, a fim de preencher plenamente o lugar, humilde ou sublime, que ocupa nessa "Hierarquia Cósmica" de Deus?. . .


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A explicação que o próprio Jesus dá desta parábola não alude a esse aspecto metafísico, que o auditório não comportava; limita-se a encarar o sentido ético da parábola.

Há homens que não produzem fruto espiritual, porque o seu terreno interior é por demais profano e devassado, como uma estrada pública, onde a semente da palavra de Deus é logo calcada aos pés dos transeuntes e devorada por entidades estranhas ao mundo espiritual. Nem sequer chega a brotar.

Outra classe de ouvintes são almas puramente sentimentais; ouvem a palavra de Deus com gosto, ao ponto de verterem lágrimas de emoção; mas logo que a realização dessa palavra lhes custe sacrifício pessoal, desfalecem, por falta de profundidade e experiência espiritual. Nessas pessoas, a semente divina brota rapidamente, mas não frutifica.

Outros ainda, depois de receberem a palavra de Deus, sufocam-na sob um acervo de prazeres e solicitudes mundanas, de maneira que o sujeito do seu Eu divino é asfixiado pelos objetos do seu ego humano, e não produzem fruto.

Só uma pequena porcentagem de almas humanas oferece ao verbo de Deus terreno propício para brotar, florescer e frutificar. Mas, mesmo entre esses, há notável diferença de fertilidade. O "terreno bom" dessas almas não é todo igual.

Todos produzem, mas o resultado é variado, consoante a maior ou menor receptividade de cada um. Essa receptividade, porém, é fruto da liberdade humana.



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