Assim Dizia o Mestre
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"ROUBASTES A CHAVE DO CONHECIMENTO DO REINO DE DEUS. "
Os chefes espirituais de Israel – sacerdotes, escribas e fariseus – são os únicos homens contra os quais Jesus usa palavras veementes, tão ásperas que, por vezes, nos causam espanto. Chama-os "sepulcros caiados", "guias cegos conduzindo outros cegos", acusa-os de "devorarem as casas das viúvas e dos órfãos, a pretexto de longas orações", de "orarem nas esquinas das ruas a fim de serem vistos pela gente": na parábola do bom samaritano mostra como dois funcionários da igreja de Israel, o sacerdote e o levita, saturados de liturgia eclesiástica, eram vazios de ética humana.
Entretanto, a mais veemente objurgatória que o Nazareno lançou aos líderes da sinagoga é a seguinte: "Vós roubastes a chave do conhecimento do reino de Deus; vós mesmos não entrais, nem permitis que entrem aqueles que quiserem entrar".
Em vez de mostrar o caminho certo, conduziam o povo por trilhos errados.
Impossibilitavam, com suas doutrinas humanas, que o povo bem intencionado, porém ignorante, conseguisse entrar no reino de Deus, porque tomavam as teologias dos sacerdotes pela revelação de Deus.
É essa a maldição de muitos mestres religiosos, através dos tempos; não serem verdadeiros iluminados por Deus, senão apenas ordenados pelos homens. Falta-lhes a profunda vertical da experiência direta do mundo espiritual, e por isso se contentam com a vasta horizontal dos preceitos humanos, litúrgicos, sacramentais, teológicos; e, quanto mais hipertrofiam o seu dogmatismo humano, tanto mais atrofiam a mística divina. Decoraram as teses e hipóteses da sua teologia escolástica, e servem essa palha seca a seus rebanhos, mantendo-os acintosamente na ignorância da verdade divina;
porque no dia e na hora em que o homem chega a conhecer a verdade, libertase de todas as pseudoverdades.
Tomás de Aquino é considerado o maior teólogo do cristianismo eclesiástico;
escreveu volumosos tratados de teologia. Mas, pelo fim da vida, teve uma visão ou revelação e nunca mais escreveu nada, dizendo: "Tudo que escrevi é palha".
Quando então aparece no meio desse povo iludido um verdadeiro avatar, um mensageiro de Deus iniciado nos mistérios do reino dos céus, todas as almas sedentas de luz e força respiram aliviadas e cheias de esperança, dizendo a si mesmas: "Nunca ninguém falou como este homem. . . Fala como quem tem poder e autoridade, e não como os nossos escribas e sacerdotes". . .
Os ouvintes não sabem definir o estranho sortilégio que lhes acontece; sentem algo que não podem nomear. . . Têm a impressão de sair de um escuro subterrâneo escassamente iluminado por fumegantes lâmpadas, e entrar subitamente na imensa claridade solar.
Não há maior crime do que arvorar-se alguém em guia espiritual de outros sem ter experiência pessoal com Deus e do mundo invisível. O profano conhecido como tal pouco mal faz a seus semelhantes, porque ninguém o toma por guia nas veredas incertas do universo espiritual; mas o profano que se arvora em iniciado é um perigo para outros profanos que o tomam por um iluminado. "Guia cego conduzindo outros cegos". . .
O que leva um pseudo-iluminado a se apresentar como iluminado é, quase sempre, a ambição do prestígio, a cobiça do dinheiro ou o orgulho mental.
Ultimamente, o Ocidente cristão foi invadido por gurus orientais, que se cercam de mistérios e vestem roupagens iniciáticas, desorientando sobretudo a juventude; usam certas técnicas exóticas e termos sânscritos, fazendo crer aos incautos que com isso entram em contato direto com Deus. Alguns chegam a recomendar o uso de drogas para produzir samadhi e experiência do mundo espiritual.
Todos eles "roubaram a chave do conhecimento do reino de Deus". Essa chave consiste numa experiência interna, não condicionada por nenhuma formalidade externa. O poder vem de dentro, a fraqueza vem de fora. "A letra mata – mas o espírito dá vida. " O ritual dá prestígio externo – o espiritual dá força interna.
Quem exerce o ritual sem possuir o espiritual é falso profeta; roubou a chave do conhecimento do reino de Deus. Iludido, ilude os outros. Cego, conduz outros cegos, e acabarão todos por cair na cova.
Ignorância do mundo espiritual é treva – experiência é luz.
Só pode iluminar quem foi iluminado.
Só pode dar aos homens quem recebeu de Deus.
Só pode distribuir aos homens quem possui os tesouros da divindade.
É necessário que o guia espiritual compreenda que a única possibilidade de guiar os outros está em que ele se deixe guiar por Deus, e que nenhuma igreja ou seita lhe pode dar essa experiência. Todas as igrejas e seitas são como outros tantos marcos colocados à beira do caminho da vida, nas encruzilhadas dúbias; quem parasse ao pé desses marcos ou se contentasse com olhar na direção indicada pelas flechas não chegaria jamais ao termo da jornada. O marco não deve ser adorado como fim, deve apenas ser olhado como meio de orientação, e depois ultrapassado. Quem não ultrapassa os marcos dogmáticos da sua seita não cumpre o seu destino.
A alma do cristianismo não é algo que se possa ensinar ou aprender intelectualmente, num curso de teologia ou exegese; é algo que deve ser vivido e sentido, e até sofrido, em profundo silêncio e fecunda solidão. Podem, na melhor das hipóteses, outros guiar-me até ao limiar do santuário, mas só eu é que posso transpor esse limiar e encontrar a Deus, face a face. Podem os "Virgílios" humanos levar-me através do inferno e do purgatório das coisas ensináveis, mas só a "Beatriz" da minha própria alma é que me pode introduzir no paraíso.
Ninguém pode dispensar-me da experiência pessoal que devo ter de Deus.
Ninguém pode ser bom e santo em meu lugar.
Ninguém pode ser meu procurador ou vice-gerente perante Deus.
A única entrada legítima é a entrada honesta pela experiência própria.
Todo e qualquer guia que não me prepare para que eu possa, um dia, ter, por mim mesmo e sem ninguém, esse encontro pessoal com Deus é guia cego, não é condutor, mas sedutor.
O dia mais glorioso para o verdadeiro mestre é o dia em que ele se torna supérfluo e dispensável, o dia glorioso em que a alma por ele guiada já não necessita de guia, por se ter tornado espiritualmente autônoma e independente, para andar segura e firme nos caminhos de Deus.