Assim Dizia o Mestre
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"GRANJEAI-VOS AMIGOS COM AS RIQUEZAS DA INIQUIDADE. "
Essa parábola é a cruz dos intérpretes, e não falta quem duvide que ela seja de autoria de Jesus.
Antes de tudo, repetimos o que dissemos em outra parte: que é erro fundamental querermos compreender o simbolizado espiritual da parábola por meio do seu símbolo material. A análise intelectual não atinge jamais o verdadeiro sentido de palavras que são o reflexo de uma grande experiência espiritual. "O homem intelectual („ánthropos psychikós‟, no dizer de Paulo) não compreende as coisas do espírito, nem as pode compreender, porque devem ser compreendidas espiritualmente. " Na parábola do "feitor infiel", de que foram tiradas as palavras do título acima, não recomenda Jesus a fraude como meio para granjearmos amigos no mundo espiritual – o que seria a sanção do princípio imoral de que "o fim (bom) justifique os meios (maus)".
O administrador de uma fazenda de plantação, em vésperas de ser demitido do seu cargo por falta de honestidade, comete a perversidade de chamar os seus empregados subalternos e os induz a falsificar os documentos de débito com o senhor da propriedade; e isso faz o feitor com o fim de ganhar amigos que o auxiliem depois da sua demissão.
Esse capataz, como se vê, era mestre perito nos conchavos desleais que, hoje em dia, são praticados a varejo e por atacado entre nós a alhures. Se o Cristo tivesse aprovado e recomendado esse procedimento, teria ele imensa legião de discípulos.
À primeira vista, parece de fato, que Jesus nos incita à imitação desse perverso administrador: "Também eu vos digo: Granjeai-vos amigos com as riquezas da iniquidade, para que, quando vierdes a falecer, vos recebam nos eternos tabernáculos. " Em face disso, não faltou quem se horrorizasse por ter Jesus recomendado meios desonestos para um fim espiritual.
É, todavia, possivel encontrarmos outra solução que não desdiga do espírito de verdade e justiça que caracteriza todas as doutrinas do grande Mestre.
Toda e qualquer parábola contém um símbolo material e um simbolizado espiritual. Na presente parábola, o símbolo é o procedimento desleal do feitor, e o simbolizado é a recomendação de usarmos de tal modo os bens materiais que nos sirvam de meios para alcançarmos os bens espirituais.
Ninguém duvida de que os bens materiais possam ser meios ou condições (ainda que não causas!) para alcançarmos os bens espirituais; quando damos esmola ou praticamos outro ato qualquer de beneficência, servimo-nos de bens materiais para conseguirmos bens espirituais. Pelo uso correto dos objetos promovemos o aperfeiçoamento do sujeito.
Até aqui estamos todos de acordo.
Mas. . . será possivel que pelo abuso de bens materiais – pela fraude – possamos alcançar bens espirituais?
Certo que não. Nem é isso que o Mestre recomenda. Diz que devemos granjear amigos no mundo espiritual mediante o emprego das "riquezas da iniquidade" ou "injustiça"; não diz o Mestre "pela iniquidade das riquezas", mas sim "pelas riquezas da iniquidade"; quer dizer, as mesmas riquezas que levam outros a cometerem iniquidade, como o feitor, podem servir a nós para praticarmos obras de espiritualidade. Não existem "riquezas iníquas". A riqueza consiste no uso de determinados objetos materiais; mas nenhum objeto é "iníquo" em si mesmo, porque é eticamente neutro, nem bom nem mau; a "iniquidade" não está no objeto, mas vem do sujeito que, em vez de usar, abusa do objeto. O objeto é, por assim dizer, incolor; quem lhe dá cor ou colorido é o homem. O mesmo objeto pode servir para fins bons e fins maus – tudo depende do uso que dele fizer o homem, bom ou mau. Com uma faca afiada posso destruir uma vida humana – e posso também salvar uma vida;
não depende da faca, mas de quem a usa ou dela abusa. Assim como o feitor infiel usou para fins iníquos o objeto eticamente neutro e incolor, assim pode um administrador fiel usar os mesmos objetos materiais para fins eticamente bons.
O "termo de comparação" da parábola não é injustiça ou fraude que o feitor cometeu; mas sim o tino com que agiu; esse tino em si não era mau; quem lhe deu maldade foi a vontade perversa que o canalizou para o mau, quando o podia ter veiculado para o bem. No trato com seus semelhantes, diz o Mestre, o homem profano é, geralmente, mais atilado do que são os filhos da luz; os maus sabem melhor servir-se dos bens materiais para praticar o mal do que os bons para praticar o bem. Jesus, porém, recomenda a seus seguidores que lancem mãos dos mesmos bens materiais de que os maus se servem para o mal, para praticar o bem.
O ponto de comparação é a "previdência", que não inclui necessariamente a desonestidade. Podemos ser, espiritual e honestamente, previdentes, em vez de sermos, material e desonestamente, previdentes. "Sede inteligentes como as serpentes – diz ele – mas também simples como as pombas. " O feitor cumpriu, a seu modo, a primeira parte da recomendação de Jesus, mas não a segunda.
E não recomendou Jesus, na parábola dos talentos, que o homem fosse previdente na administração de um bem material a fim de "entrar no gozo de seu senhor", mediante essa administração?
Aliás, o final da parábola explica claramente o sentido da mesma: "Quem é fiel nas coisas mínimas (materiais) é fiel também no muito (espiritual); e quem é infiel em coisas mínimas é infiel também no muito. Se não administrardes fielmente as riquezas vãs (ou da iniquidade), quem vos confiará os bens verdadeiros? E, se não administrardes fielmente os bens alheios, quem vos entregará o que é vosso? Nenhum servo pode servir a dois senhores. . . Não podeis servir a Deus e às riquezas".
Quem serve ao dinheiro é escravo da matéria morta – mas aquele que põe o dinheiro a serviço de Deus é livre e soberano pelo espírito. O administrador fiel é senhor e soberano do dinheiro, porque o dinheiro lhe serve – mas o administrador infiel é escravo do dinheiro, porque serve à matéria. Só podemos servir a quem é superior a nós; do contrário nos degradamos. Podemos servir a Deus tanto em si mesmo como também em sua imagem humana, nossos semelhantes.