Assim Dizia o Mestre
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"OS PRIMEIROS SERÃO OS ÚLTIMOS E OS ÚLTIMOS SERÃO PRIMEIROS. "
Com estas palavras termina o Mestre uma das mais enigmáticas das suas parábolas sobre o reino de Deus, a que trata dos "trabalhadores da vinha".
A parábola fala de cinco turmas de trabalhadores, convidados para a vinha de três em três horas. O primeiro grupo foi chamado pelas 6 horas da manhã, e só com estes combinou o dono o salário certo de 1 denário por dia.
Mais tarde encontra outros e mais outros homens, sem fazerem nada, às 9 e às 12 horas, e outra vez às 3 horas e, finalmente, às 5 horas da tarde. Convidaos todos para a sua vinha, mas sem estipular preço certo; diz apenas que lhes dará "o que for justo". Às 6 horas manda chamar todos os trabalhadores e começa a fazer os pagamentos: dá um denário a cada um da turma das 5 horas, que haviam trabalhado só uma hora. Vendo isso, esperavam os outros que ganhariam mais, embora lhes tivesse sido prometido apenas 1 denário.
Mas também eles receberam apenas 1 denário. Ao que murmuraram contra o senhor, alegando que haviam suportado "o peso e o calor do dia", e tinham sido igualados aos outros, que haviam trabalhado apenas uma hora. O senhor, porém, lhes faz ver que não os trata com injustiça, porquanto combinou com eles o salário de 1 denário por dia. "Será que o teu olho é mau porque eu sou bom? Não tenho eu o direito de fazer dos meus bens o uso que quero?" Volta aqui a misteriosa expressão do "olho mau", que parece um eco daquilo que o Mestre disse em outra ocasião: "Se o teu olho for simples, está em luz todo o teu corpo; mas se o teu olho for mau, está em trevas todo o teu corpo". A visão espiritual ilumina, a visão material entenebrece a vida do homem.
E termina o Mestre a sua estranha parábola dizendo: "Os últimos serão primeiros, e os primeiros serão últimos". A Vulgata acrescenta: "Porque muitos são os chamados, e poucos os escolhidos", mas essas palavras faltam nos melhores códices gregos, embora se encontrem em outra parte.
Como explicar esta parábola?
Resposta: Não deve ser explicada de forma alguma, deve ser espiritualmente vivida, e não intelectualmente analisada. De fato, não há nenhuma possibilidade, no plano analítico da inteligência, de explicar decentemente tão estranho procedimento. Nas seguintes páginas não tentaremos explicar a parábola, mas apenas indigitar ao leitor o rumo certo onde, numa hora de profunda vivência espiritual, possa encontrar solução satisfatória.
A tentativa de harmonizarmos os caminhos ignotos do espírito de Deus com a nossa conhecida lógica e matemática é um tentame visceralmente absurdo, baseado num postulado inicial falso, e sem nenhuma esperança de solução satisfatória. Queremos e esperamos tacitamente que os desígnios de Deus se "ajustem" aos modelos criados pela nossa inteligência, mas eles não se "ajustam", e mesmo que por vezes pareçam bem "ajustados" ao nosso modo de pensar, é por simples aparência externa; na realidade não se "ajustam", isto é, são "desajustados" ou "injustos". Não nos arvoremos em advogados de Deus, querendo provar que o seu governo neste mundo seja "justo" – ele não é "justo", segundo a nossa bitola intelectual; pode ser até extremamente "injusto", e isso nos escandaliza, porque supomos tacitamente que os desígnios de Deus devam ser ajustados ao nosso modo de pensar. . .
Entretanto, assim diz o Senhor aos homens: "Os vossos caminhos não são os meus caminhos, e o vosso pensamento não é o meu pensamento".
A nossa inteligência esperaria que Deus medisse rigorosamente o prêmio pelo merecimento, como se ele fosse causa daquele, esquecendo-nos de que as leis da causalidade são do plano físico-mental, mas que não atuam no mundo espiritual. No mundo do espírito não há nenhuma proporção entre causa e efeito, porque não existe nem este nem aquela, no sentido em que existem no plano físico-mental. Falsamente, aplicamos uma lei a um mundo para o qual essa lei não foi feita. Aqui, no mundo das causalidades, a dez graus de merecimento correspondem dez graus de prêmio – é o que nós chamamos "justo", ou bem "ajustado", o prêmio ajustado ao merecimento. O contrário é, para nós, "injusto", e temos razão dentro da nossa zona; mas não temos razão em aplicarmos esta bitola a outros mundos.
Deus concede a um homem dez graus de graça, a outro cem, a outro mil – é isso "justo"?
É justo relativamente a Deus, não é justo relativamente ao homem – mas não há necessidade de ser justo nesse último sentido, porque o homem não pode, em hipótese alguma, ser causa da graça que Deus lhe concede; pode ser apenas condição para esse efeito. Se o homem fosse causa da graça, estaria Deus ligado, e não livre; teria obrigação de conceder dez ou cem mil graus de prêmio a dez, cem ou mil graus de merecimento. Mas a Constituição do Universo não conhece essa compulsão mecânica.
A graça não corresponde matematicamente ao trabalho prestado, embora seja necessário um certo trabalho prestado, para que a graça possa operar, uma vez que o homem é um ser livre, e não um autômato passivo. Se eu não abrir o interruptor elétrico, não virá a mim a luz ou força da usina, mas essa luz ou força que vem não tem proporção alguma com o grau do esforço que emprego para possibilitar essa vinda. A luz ou força pode ser milhares e milhões de vezes maior do que o esforço que empreguei para chamá-las, porque o esforço que faço em abrir o interruptor não é causa interna, mas simples condição externa para o advento da corrente elétrica. A causa é a usina.
Deus é livre na distribuição dos seus dons, por mais que nós o queiramos reduzir à escravidão dos nossos esquemas intelectuais.
Assim como Deus é livre no reino da flora e da fauna, dando a um organismo deslumbramentos de forma, cor, perfume, agilidade, etc., e a outro organismo apenas modesta gotinha desse exuberante oceano de dádivas, sem que haja merecimento algum da parte deste ou daquele organismo –, da mesma forma distribui ele também aos homens os dons da sua liberdade, assim como ele quer para manter a infinita variedade de graduações do cosmo; não se prende por nenhuma obrigação; Deus tem todos os direitos e não tem nenhuma obrigação. "Igualdade para todos" é o ideal de uma democracia humana – "desigualdade em tudo" é o característico da cosmocracia de Deus. Deus nada faz por ser justo, mas tudo que Deus faz é justo, pelo fato de ele o fazer. Deus não é servo da justiça, mas senhor da justiça. É um erro funesto supor que o homem possa merecer algo perante Deus; se assim fosse, o homem seria credor de Deus, e Deus seria devedor do homem, o que é absurdo. Tudo que a creatura recebe do Creador é presente, de graça, não é pagamento, tanto no plano da natureza como na humanidade; a única diferença está no fato de o homem poder ser condição desse presente de graça, e a natureza recebe automaticamente esse presente; mas, em hipótese alguma, pode uma creatura, humana ou não, ser causa de dons de Deus, que sempre são gratuitos. O homem nada pode merecer de Deus, pode apenas crear em si uma condição favorável para receber o presente da graça.
O dono da vinha não pagou a nenhum dos trabalhadores; todos receberam de graça, ninguém mereceu nada, ninguém foi credor do dono, e o dono não foi devedor de ninguém.
A razão principal por que esta parábola é, para nós, enigma está em uma falsa perspectiva fundamental; admitimos tacitamente uma premissa visceralmente errônea, e sobre ela construímos conclusões, que, naturalmente, não podem deixar de ser errôneas também. Projetamos para dentro da ordem divina e espiritual os nossos costumados conceitos humanos, jurídicos, sobre justiça, direito e obrigação. Tratamos a Deus como se ele fosse um empregador, e nós os seus empregados, com direito a certo salário. Entre empregador e empregado vigora, certamente, uma relação jurídica de dar e receber, de trabalho e pagamento; depois que o empregado prestou o seu serviço, o empregador tem de lhe pagar esse serviço; é questão de justiça. O dinheiro que o empregador paga ao empregado é o equivalente ao trabalho por este prestado – e assim os dois estão quites.
É muita ingenuidade transferir esta relação para Deus. A noção jurídica vigora no plano horizontal, de indivíduo a indivíduo, de finito a finito; mas não pode de forma alguma ser transferida para o plano vertical. Supomos tacitamente que a mesma relação que vigora de finito a finito, de homem a homem, deva vigorar também entre finito e Infinito, entre o homem e Deus.
É intrinsecamente impossivel que o homem finito possa "merecer" algo do Deus Infinito. A desproporção é absoluta. A concepção jurídica do "merecimento" vigora exclusivamente nas relações humanas. Tudo que o homem recebe de Deus é invariavelmente "graça", dom gratuito, e não pagamento.
No plano finito do mérito vigora a relação de causa e efeito – mas no plano divino não há causalidade, há tão-somente graça ou gratuidade. A lei de causa e efeito supõe igualdade de nível, horizontalidade entre os dois interessados ou contratantes, porque esta lei é derivada do mundo dos fenômenos materiais, finitos, não tendo aplicação alguma no mundo espiritual, Infinito.
A única coisa que o homem pode e deve fazer em face de Deus e do mundo espiritual é crear uma condição propícia, isto é, um ambiente, uma disposição interna, uma atmosfera ou receptividade que possibilite o advento da graça;
mas essa condição externa nunca equivale a uma causa interna. O homem pode, por assim dizer, abrir uma janela em sua alma, e a luz solar da graça entrará por essa janela, mas isso não quer dizer que a janela tenha causado a iluminação da sala; se lá fora não houvesse sol, nada adiantaria abrir a janela.
O abrimento da janela é apenas uma condição indispensável para que a luz solar possa entrar na sala.
O conceito jurídico de merecimento, salário, pagamento, condiz com as nossas ideias democráticas sobre "igualdade de direitos e deveres"; mas Deus não é chefe duma democracia, e o seu mundo não é nada democrático, como facilmente poderá verificar qualquer pessoa que abra os olhos. Deus é antes o grande Hierarca do Universo, e o seu mundo – atômico e astronômico, humano ou angélico – é uma grande Hierarquia Cósmica, onde nenhuma creatura tem "direito" a coisa alguma, nem Deus tem "obrigação" de espécie alguma.
Uma linda rosa não tem o direito de ser bela, e Deus não tem obrigação alguma de lhe dar essa beleza – tudo que ela tem é graça e nada mais. Se assim não fosse, a humilde violeta seria cerceada nos seus direitos e Deus não teria cumprido a sua obrigação para com ela; mas isso é ridículo, porque a beleza modesta que a violeta tem também é graça, e nada mais. "Quando tiverdes feito tudo que devíeis fazer, dizei: Somos servos inúteis, fizemos o que tínhamos de fazer; nenhum prêmio merecemos por isso. " Como é possivel, à luz dessas palavras claríssimas do Mestre, falar ainda em merecimento? Numa proporcionalidade entre o que o homem faz e o que Deus lhe dá? Na realidade, aquilo que o homem faz com suas boas obras se acha num plano ou numa dimensão completamente diferente daquilo que Deus lhe dá. Praticamente, o homem opera com zeros, muitos zeros, de tamanhos e cores vários, soma e multiplica esses zeros das suas obras humanas – e depois, na sua profunda ignorância, espera que dessas operações com zeros, repletos de absoluta vacuidade, resulte algum valor positivo. Como se o jogo hábil com fatores negativos pudesse dar em resultado algum fator positivo!
Como se essa acrobacia com irrealidade pudesse causar alguma realidade!
Se no fim de todos esses malabarismos físico-mentais aparece algo de positivo, não nasceu da vacuidade dos zeros, como a erudita ignorância do homem profano supõe puerilmente; nasceu de algo que está para além dos zeros das nossas obras – nasceu da plenitude de Deus. E a atividade dessa plenitude se chama graça.
As nossas obras – a nossa presença na "vinha do senhor" – é todavia necessária, não como causa interna do efeito, mas como condição externa do mesmo, uma vez que somos seres conscientes e livres, e não simples autômatos. Nos seres infra-humanos, a graça abrange também as condições externas, porque essas creaturas nada contribuem de seu para que o efeito apareça. Nos seres conscientes e livres, o homem condiciona e Deus causa o efeito. Por isso, no mundo do infra-humano, tudo é maravilhosamente exato e gracioso, porque é integralmente condicionado e causado pela graça, ao passo que no mundo humano (graça) é de Deus, há sempre uma mescla de condição humana e de causa divina. Quando, porém, a condição humana se adapta integralmente à causa (graça) divina, oferecendo-lhe um canal ou veículo 100%
idôneo e puro, então aparecem na vida do homem maiores maravilhas de perfeição e beleza do que em qualquer setor da natureza infra-humana.
O homem profano, habituado a considerar os muitos zeros da suas quantidades físico-mentais como realidades, supõe tacitamente que o seu mundo feito de pseudo-realidades seja a norma suprema da realidade do mundo de Deus, e que Deus deva obedecer aos padrões que o homem estabelece.
E, embalado nessa ilusão, o homem pergunta a Deus: será justo que os que trabalharam doze horas não recebam mais do que os que trabalharam apenas uma hora?
Como se perguntassem a Deus: será que doze zeros não valem muito mais que um zero? Será que não percebes, Senhor, que o valor representado por "000 000 000 000" é muito maior do que o valor representado por "0"? E, se Deus não enxerga a diferença entre essas nulidades, o homem acha que Deus é injusto! Tão grande é a ignorância do homem intelectualmente erudito – e espiritualmente analfabeto!
Deveras? O homem meramente "intelectual não compreende as coisas que são do espírito – até lhe parecem estultice – nem as pode compreender, porque devem ser compreendidas espiritualmente".
Na parábola, todos os servos estavam trabalhando na vinha; era a condição indispensável para receberem o prêmio, mas não foi a causa. O denário que receberam não foi o efeito da (suposta) causa do seu trabalho, e por isso os primeiros que julgavam possuir uma causa maior (trabalho) e ter direito a um efeito maior (salário), estavam em erro, confundindo a condição (trabalho) com a causa (bondade do senhor). Nenhum deles foi pago, todos foram agraciados.
Por isso, os últimos não tinham o direito de se vangloriar do seu denário, nem os primeiro tinham razão para se queixar do seu denário, porque nenhum deles recebeu o prêmio do seu merecimento, todos receberam a graça do senhor em diversas graduações. Essa graduação depende unicamente de Deus, e não do homem.
Enquanto não abandonarmos as nossas tradicionais bitolas intelectualistas, jamais compreenderemos a providência de Deus, que não está sujeita aos nossos cálculos mentais. Os pensamentos de Deus não são os pensamentos dos homens.
À luz da intuição espiritual, a parábola dos trabalhadores na vinha é eminentemente justa e razoável.
Em suas magníficas epístolas aos Romanos e aos Gálatas, São Paulo trata, por extenso, dessa grande verdade: da gratuidade dos dons de Deus.