Filosofia cósmica do evangelho

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CAPÍTULO 22
Ilustração tribal

"QUEM NÃO É POR MIM É CONTRA MIM"


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Na "Divina Comédia" de Dante ocorre uma cena não menos estranha que mística. O poeta e seu mentor, Virgílio, chegam às portas do Inferno. Diante da lúgubre entrada dos ínferos encontram enorme multidão de seres amorfos e anônimos, espécie de vultos nebulosos e moluscoides, de contornos indefinidos. Pergunta Dante:

– Quem são esses?


Responde Virgílio:

– "Estas são as almas que viveram sem censura nem louvor; não as acolheu o céu, para que não lhe empanassem o brilho; nem as engoliu o inferno, porque não eram dignas dele. . . Olha – e passa adiante!" É esta a imensa multidão dos homens moralmente indefinidos, nem frios nem quentes, porém mornos, que vivem ou vegetam sem censura nem louvor, entre o céu e o inferno, nas lúgubres penumbras da sua melancólica neutralidade. "Porque tu não és nem frio nem quente, mas morno – diz o espírito, no Apocalipse – vomitar-te-ei da minha boca!" A humanidade está repleta dessas almas amorfas, anônimas, penumbrais, indecisas entre o bem e o mal.

Quando Pilatos estava sentado no tribunal, naquela memorável manhã da primeira sexta-feira santa, envolvido no ruidoso processo contra Jesus, ainda indeciso – de súbito aparece um mensageiro enviado pela esposa do governador romano, Cláudia Prócula, entrega-lhe um recado, que dizia: "Nada tenhas que ver com esse homem justo, porque esta noite, em sonhos, sofri muito por causa dele. " Seguiu-se um momento de silêncio e suspensão. Depois, Pilatos mandou vir água, lavou as mãos diante do povo e declarou em público: "Eu sou inocente do sangue desse justo! vós lá vos avinde!" E proferiu a sentença de morte contra Jesus: "Seja crucificado!" Assim acabou a pretensa neutralidade de Pôncio Pilatos e Cláudia Prócula, esse casal de almas amorfas e indecisas. . . "Quem não é por mim é contra mim". . .

Em teoria, pode haver neutralidade; mas na prática é impossivel: ninguém pode pairar indeciso e incolor entre o bem e o mal; se não favorece o bem favorece o mal, mesmo que se diga neutro. A neutralidade é profundamente má, e tanto maior é o mal que ela causa quanto menos parece ser má, e dificilmente se converte para o bem. Quem é frio, isto é, conscientemente mau, pode tornar-se quente, conscientemente bom; mas quem é morno, neutro, dificilmente se convence de que é mau, uma vez que ninguém lhe pode provar um mal determinado que tenha cometido. O mal que os neutros praticam é, sobretudo, a omissão do bem que deviam praticar – mas quem pode fazer da omissão um argumento e uma prova palpável contra o omissor? Como vivem sem censura nem louvor, esses seres furta-cores são praticamente inacessíveis a qualquer demonstração contrária à sua atitude nebulosa e penumbrista.

A mulher de Pilatos teve, naquela noite, uma visão estranha, que a fez sofrer muito e lhe deu a certeza de que o Nazareno era inocente. Mas, em vez de tomar atitude positiva a favor de Jesus e mandar dizer categoricamente ao marido: "Absolve de vez esse homem, porque ele é inocente!" ela pede covardemente que abra mão do processo, indeciso, e entregue o Nazareno aos caprichos da sinagoga hostil; convida o esposo à neutralidade. E Pilatos, externamente, atende ao pedido da esposa, lavando as mãos perante o povo e declarando-se não responsável pelas consequências da sua pretensa neutralidade.

E assim acabou nas sangrentas alturas do Calvário essa farsa duma neutralidade impossivel entre o bem e o mal – acabou com a vitória do mal sobre o bem. . . "Quem não é por mim é contra mim. "


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Certo dia, foi Jesus convidado ao jantar por um rabino judeu, de nome Simão.

Esse homem era ao mesmo tempo pró e contra Jesus, isto é, neutro. Convidou Jesus ao jantar, porque, como colega daquele outro rabi que chegara à cidade, mandava o bom-tom que o convidasse; mas intimamente era contra Jesus, porque sua doutrina não harmonizava com a teologia da sinagoga. E, nessa estranha dualidade de sentimentos, o fariseu não demonstrou ao Nazareno nenhuma das costumadas cortesias que a hospitalidade reclamava, nem sequer lhe ofereceu uma bacia com água e uma toalha para lavar e enxugar os pés empoeirados, depois de tirar as sandálias, que, segundo a praxe, ficavam fora da casa. O fariseu não quis ser nem bom nem mau para com seu hóspede; tentou guardar neutralidade, equilibrar-se entre o céu e o inferno, na dúbia penumbra daqueles que "vivem sem censura nem louvor".

Aparece então uma mulher que acabava de sair do inferno, recém-liberta de "sete demônios", e arromba decididamente as portas do céu, caindo aos pés do seu redentor como uma tempestade de fogo e amor. Essa não era neutra. Não quer saber se é bem-vinda nessa casa ou indesejável; o que ela quer é dar expressão pública à sua grande gratidão e a seu grande amor para com o Mestre que a salvara do inferno. E, nesse ímpeto de entusiasmo, supre a tempestade de fogo tudo que o morno rabino havia deixado de fazer: lava os pés do Mestre, não com a frieza impessoal da água, mas com o fluido quente e pessoal das suas próprias lágrimas; enxuga os pés do Mestre, não com alguma toalha fria e impessoal, mas com a sedosa maciez e eminentemente pessoal da sua linda cabeleira. Depois de limpos e enxutos, beija esses pés queridos do bom pastor e unge-os com perfumosa essência, cujo odor encheu a casa toda.

Todos estão escandalizados: o fariseu, os discípulos e o futuro traidor, Judas.

O fariseu, lá na sua torre de marfim de impecável legalidade, não compreende como um homem decente possa permitir e aceitar a apaixonada homenagem de uma mulher impura, oferecer-lhe os pés para beijos de amor em vez de lhe dar um pontapé de desprezo. Os discípulos acham que aquilo é desperdício.

Iscariotes arvora-se logo em advogado da pobreza e calcula de relance que aquele frasco de perfume precioso valia pelo menos trezentos denários, que se poderiam ter distribuído entre os pobres; acrescenta, porém, o evangelista, como que entre parêntesis, não era porque lhe interessassem os pobres, mas porque Judas era ladrão e, portador da bolsa, da turma, surripiava o que entrava.

O único que aprova integralmente a atitude da Madalena é Jesus.

Na casa do fariseu Simão estava condensada a humanidade de todos os tempos e países: o céu de Jesus e Madalena, o inferno de Judas, e aquela zona anônima dos semi-bons e semi-maus representada pelo fariseu e pelos onze discípulos de Jesus – ao que não eram dignos do céu nem do inferno. . .


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Em certa ocasião, um jovem declarou a Jesus que estava disposto a segui-lo aonde quer que fosse. Jesus, porém, o repeliu com as palavras: "As raposas têm cavernas e as aves do céu têm ninhos – mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça. " E o candidato, aparentemente positivo, mas realmente neutro, desapareceu, porque não se sentia assaz, decidido a ser mais pobre que as raposas e as aves. . .

Outro quis seguir o Nazareno, mas pediu permissão para primeiro voltar à casa e celebrar uma festa de despedida – ao que o Mestre lhe declarou categoricamente: "Quem lança mão ao arado, e olha para trás não é idôneo para o reino de Deus. " E também este candidato indeciso desapareceu do cenário. A sua atitude não era resolutamente a favor do bem, e por isto não era esse homem idôneo para o reino de Deus. "Quem não é por mim é contra mim – quem não recolhe comigo, dispersa". . .







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