Filosofia cósmica do evangelho
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"VÓS, QUANDO NÃO VEDES OBRAS PODEROSAS, NÃO TENDES FÉ"
"Dynamis" (plural "dynameis") é o termo grego do Evangelho do primeiro século para designar aquilo que nós, geralmente, chamamos milagres.
Entretanto, milagre não exprime o mesmo pensamento que "dynamis" (dynameis), que significa "força", "poder", ou, no plural, como em geral aparece, "obras poderosas", "feitos potentes". "Miraculum" (do verbo "mirari", admirar) é algo que se admira, que causa estranheza, ao passo que aquilo que Jesus realizava, as "dynameis", eram obras que revelavam um poder, uma força superior às forças dos homens.
A admiração ou estranheza provém da ignorância do espectador. Quem conhece a causa de um efeito não estranha. De maneira que, para as massas ignorantes, o que Jesus fazia eram "miracula", coisas de admirar; mas para ele mesmo eram "dynameis", obras poderosas.
Imensa literatura tem sido escrita, inumeráveis discursos, conferências e sermões têm sido proferidos sobre os chamados "milagres" de Jesus.
Muitos relegam as narrativas em torno desses prodígios ao mundo da mitologia, quer dizer, ao plano da irrealidade, das invenções ingenuamente fictícias e poéticas que acompanham a origem de muitas religiões. Os mitos pertencem à infância da humanidade. A criança não distingue nitidamente entre fato e fantasia; os contos de Grimm, Andersen, as histórias de "Mil e Uma Noites", etc. tudo isto é, para a criança, tão real como os acontecimentos de cada dia. A percepção da linha divisória entre fato e ficção pertence aos adultos, embora o conteúdo ideal de muitas ficções seja, de per si, mais real dos que os fatos que ocorrem na perceptível periferia do mundo objetivo.
Outros apelam para as forças da sugestão e hipnose, passando os "milagres" do plano objetivo dos eventos externos para o plano subjetivo de uma impressão interna. Segundo estes, Jesus não teria, por exemplo, convertido água em vinho, em Caná, nem multiplicado uns poucos pães e peixes, em Betsaida-Júlias, para fartura de milhares de pessoas esfaimadas, mas tudo isto teria acontecido unicamente no interior dos observadores; o intenso entusiasmo religioso pelo grande mestre teria sugerido ou sugestionado a tal ponto os convivas às bodas de Caná que ele julgassem sentir o gosto do melhor vinho ao beberem simples água da fonte; e as multidões no deserto se julgavam fartas quando de fato andavam de estômago vazio após o "milagre", abstração feita de uma migalha infinitesimal de pão e peixe que tivessem recebido. Também os doentes teriam recobrado saúde e forças em virtude duma magia sugestiva que partia da pessoa do Nazareno. Verdade é que, em certos casos, essa hipótese da sugestão ou autossugestão esbarra com uns sérios quês, como, por exemplo, no caso dos defuntos ressuscitados, sobretudo de Lázaro em estado de franca putrefação, bem como no caso da tempestade no lago de Genesaré acalmada pelo taumaturgo e sobretudo em face dos doze cestos de fragmentos que sobraram dos cinco pães e dois peixes – mas os defensores dessa teoria não se desconcertam com tão "pouco". . .
Há uma terceira hipótese para explicar, ou antes, eliminar dos Evangelhos os "milagres" de Jesus: a da "fraude piedosa", baseada no princípio de que o fim (bom) justifica os meios (maus). Jesus teria enganado propositadamente as massas ignorantes com milagres aparentes. Quando se objeta que um homem de acendrada pureza ética como Jesus não podia lançar mão de semelhante expediente, inético, respondem-nos os advogados dessa teoria: "Ora, não queiramos medir os gigantes com a bitola dos pigmeus!" para os super-homens não existe a suposta diferença entre moralidade e imoralidade, eles estão (para usar a frase de Nietzsche) "jenseits von gut und boes" (para além do bem e do mal); tudo é moralmente bom para quem tem em mira um fim sublime, conto esse de regeneração da humanidade, que não era possivel sem o "milagre";
mas, como milagres segundo eles, não são possíveis, por serem contrários às leis da natureza, só restava ao Nazareno lançar mão de pseudo-milagres para conseguir esse grande ideal.
Tais, e outras similares, são, em síntese, as tentativas de eliminar do texto evangélico os chamados "milagres" de Jesus. Não faltou quem dissesse que, se conseguíssemos expurgar desses infelizes milagres o Evangelho, teríamos diante de nós o mais estupendo documento ético da humanidade.
Que dizer a isto?
Duas coisas, e importantíssimas, temos de responder aos inventores e adeptos dessas e de outras teorias afins:
1) Todas essas teorias partem do falso suposto de que o "milagre" seja uma exceção ou negação das leis da natureza, quando, na realidade, são a mais brilhante afirmação e confirmação dessas mesmas leis.
2) Todos os defensores dessas teorias constroem o seu edifício sobre uma base fictícia, e não sobre um fato real, admitindo tacitamente uma premissa errônea. Que premissa ou suposição é esta? É a admissão tácita de que o homem comum de hoje seja um homem definitivo em sua evolução e que homem algum possa fazer algo essencialmente diverso daquilo que nós podemos fazer.
Em outro capítulo trataremos do primeiro ponto. No presente parágrafo abordaremos tão somente o segundo ponto: o erro de supor que o homem físico-mental dos nossos dias seja o homem, em toda a sua plenitude e perfeição, quando, de fato, é um ser humano provisório e primitivo.
A fim de ilustrar e concretizar esta verdade, vamos estabelecer o seguinte paralelo: Tempo houve em que o homem primitivo, pré-histórico, não possuía inteligência suficiente para construir uma casa do tipo das nossas vivendas de hoje. Muito menos era capaz de iluminar a sua moradia com luz elétrica, colocar nela um aparelho de rádio ou televisão, ou algum dos outros prodígios da nossa ciência e técnica atuais. Se, nesses tempos remotos, tivesse aparecido no meio desses semi-homens, um homem do tipo intelectual de hoje e tivesse construído um dos mencionados aparelhos – que teria acontecido no seio daquela humanidade primitiva? De duas uma: os que não tivessem visto o tal aparelho-prodígio, negariam a realidade, provando "cientificamente" que semelhante fenômeno é impossivel e, portanto, objetivamente irreal; outros, que tivessem visto aparelho, proclamariam seu autor como uma espécie de divindade ou portento sobrenatural.
Por que teria o homem primitivo assumido uma dessas atitudes?
Unicamente porque, incapaz de realizar o que esse super-homem realizara, não admitiria que um homem normal fizesse o que ele – que se considerava o único "normal" – não podia fazer.
É precisamente este o caso com os eruditos agnósticos do nosso tempo, os adeptos de todas as hipóteses expostas e outras congêneres. A sua dificuldade provém do fato de suporem o que não deveriam supor como base das suas teorias.
É deveras estranho, ou antes vergonhoso, que, em plena Era Atômica, haja homens considerados cultos, dotados de tão escasso senso de lógica que não percebam o caráter anticientífico e antirracional da sua atitude.
É evidente que o homem intelectivo de hoje não é o homem integral, definitivo.
O homem primitivo estava com os sentidos perfeitamente acordados mas o seu intelecto, embora presente, dormia ainda o sono da meia-noite; não existia ainda um aparelho nérveo e cerebral suficientemente desenvolvido e diferenciado para que a grande artista, Inteligência, se pudesse manifestar nesse instrumento. Aludindo à invisível presença da inteligência de hoje no aparelho visível do cérebro, escreve um cientista alemão, Ludwig von Schleich, estes versos, maravilhosos: "Auf den feinsten Nervensaiten Spielt ein Spielmann sein Gedicht, Wohl fuehlst du die Finger gleiten – Doch den Spielmann siehst du nicht".
A criança dos nossos dias está nas mesmas condições em que, milênios atrás, se encontrava a humanidade. Seria absurdo e anticientífico negar a natureza humana à criança pelo fato de não revelar inteligência. No entanto, sabemos que a criança humana, embora sem vestígio externo de inteligência, é um verdadeiro ser humano; nela existe a inteligência em estado potencial, dormente ou latente. A inteligência potencial é uma inteligência real, ainda que não atualizada.
O homem de hoje está muito longe de personificar o homem completo e definitivo. Somos uma "sinfonia inacabada". As nossas forças estão semiligadas. A nossa inteligência trabalha por meio de processos indiretos, sucessivos, analíticos. É necessário que desperte no homem uma faculdade que ele possui, mais ainda não desenvolveu devidamente. Assim como pelos sentidos, o homem nunca teria chegado a descobrir e utilizar a eletricidade e as energias nucleares, se nele não despertara a inteligência, da mesma forma nunca chegará o homem a sua evolução plena, se não cruzar a fronteira da inteligência para a razão.
A razão opera direta e instantaneamente, sem aparelhos, só pela força intrínseca da sua própria natureza. A razão é essencialmente uma força creadora, e é nisto que está a sua divindade ou semelhança com Deus.
Segundo Teilhard de Chardin, o homem se acha agora na noosfera, ou seja, na intelectualidade; e daí vai em demanda da logosfera, zona da racionalidade. Da perspectiva da logosfera, os chamados milagres de Jesus são perfeitamente naturais, são manifestações do poder, da potência racional do homem, em que se achava o Cristo, que, no quarto Evangelho, é chamado a razão, em grego Lógos.
Para o homem da logosfera, o que Jesus fez será tão natural como para o homem da noosfera é natural a aeronáutica, o rádio, a televisão, etc.
O Lógos no homem logoficado realizará as mesmas obras que o Lógos realizou em Jesus, como ele mesmo disse: "Vós fareis as mesmas obras que eu faço, e fareis obras maiores do que estas porque o Pai, que está em mim, também está em vós. "