Filosofia cósmica do evangelho
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"QUEM PECOU PARA ESSE HOMEM NASCER CEGO – ELE OU SEUS PAIS?"
Refere o Evangelho que Jesus se encontrou com um cego de nascença.
Quiseram os seus discípulos e outros saber do mestre quem é que pecara, esse homem ou seus pais, para ele ter nascido cego.
Os consulentes não querem saber se o sofrimento da cegueira era castigo dum pecado, o que para eles era evidente; querem tão-somente saber quem contraíra esse débito moral que esse cego estava pagando, ele mesmo ou seus pais. Que o débito existia parecia estar fora de dúvida, porque sofrimento supõe culpa; onde não há culpa não há sofrimento.
Como se vê, os consulentes só conhecem o caráter negativo do sofrimento;
nada sabem do seu aspecto positivo. Que possa haver um sofrimento-crédito lhes é totalmente ignoto; só conhecem um sofrimento-débito.
Supõem eles, além disto, que o homem possa, na vida presente, solver um débito contraído numa vida passada; alguém deixou aquela existência anterior sem estar quite com a justiça cósmica, e tem de saldar a sua dívida na atual existência terrestre. A ideia da reencarnação é tão antiga como a própria humanidade pensante, patrimônio geral de muitas das antigas religiões e filosofias.
Supõe esta pergunta ainda a possibilidade de não ter o homem contraído débito algum, nem na vida atual nem numa existência anterior, mas ter de solver o débito de outros homens, seus pais ou antepassados.
Nesta pergunta, como se vê, temos as duas teorias para explicar o problema do sofrimento humano: a teoria da reencarnação, defendida pela teosofia, pelo espiritismo e ideologias afins – e a doutrina do pecado original, advogada pelas igrejas cristãs, discípulas do apóstolo Paulo.
E Jesus, que atitude assume? De qual dessas duas doutrinas se confessa adepto? Toma atitude a favor da reencarnação, ou a favor do pecado original?
Afirma que o cego está pagando seus próprios pecados, ou os pecados herdados de seus pais?
Não se declara a favor de nenhuma dessas doutrinas, mas contra ambas. "Nem ele pecou nem seus pais pecaram, para ele nascer cego!" O sofrimento desse cego não é pagamento dum débito, nem próprio nem alheio. Que é então? Visa a um crédito! "Isto aconteceu para que nele se revelassem as obras de Deus. " Jesus declara categoricamente que esse sofrimento tem uma função positiva!
Por meio dele se revelam as obras de Deus.
Mas que obras?
Dizem uns que essas obras são os milagres, como esse que Jesus ia realizar: Deus teria feito nascer cego esse homem e o teria deixado nessa cegueira, quiçá uns 40 anos, para que, em momento dado, Jesus tivesse ensejo para realizar um dos seus milagres de cura.
Quem é capaz de aceitar essa explicação, aceite-a – mas saiba que reduz Deus a uma espécie de tirano arbitrário que se diverte com as dores dos seus súditos inermes.
A obra de Deus no homem é a evolução ascensional do ser humano, potencialmente creativo, e que deve tornar-se atualmente creador. Muitos homens, porém, não saem da sua creatividade potencial e entram na creação atual se não passarem por um grande sofrimento.
Verdade é que não é o sofrimento como tal que redime o homem – pode até levá-lo ao suicídio – mas é a atitude positiva que o homem assumir em face do sofrimento que o redime das suas misérias e o faz entrar na sua glória.
Evidentemente, esse homem nascera cego, não para pagar débitos, próprios ou alheios, mas para realizar créditos. Esse crédito de aperfeiçoamento não era possível senão através do sofrimento. Era esta a obra de Deus que se devia manifestar nesse homem: a sua evolução espiritual.
Um dos mais esplêndidos livros do Antigo Testamento, obra-prima de literatura dramática, versa esse misterioso problema do sofrimento humano. Um abastado e santo fazendeiro gentio, na terra de Huz, perde subitamente toda a sua vasta fortuna, sua saúde e seus filhos; da sua família só lhe ficou, para cúmulo de desgraça, uma mulher insipiente e cínica que nada compreende da alma profunda e sublime de seu esposo.
Sentado num fétido monturo, raspa Job o pus das suas chagas com o caco de um vaso partido, derradeiro vestígio de passadas grandezas – quando aparecem, para o consolar na sua imensa dor, três amigos da vítima, filósofos do oriente. Consternados param ao longe; depois, aproximando-se do infeliz, mudos de dor, sentam-se no chão ao redor dele, sem poderem proferir uma só palavra à vista de tão grande sofrimento.
Finalmente, um dos filósofos abre os lábios e procura elucidar o porquê do sofrimento. O que ele sabe dizer é, em resumo, o seguinte: Deus não castiga inocentes, só castiga culpados.
Replica Job que não tem consciência de pecado que tal sofrimento lhe haja merecido.
Mas o filósofo responde que Job deve ter algum pecado inconsciente, ignorado, pelo qual esteja sofrendo, algum resíduo de "karma negativo", diriam os hindus, algum débito oculto de existências anteriores, diriam os reencarnistas, débito que, finalmente, na presente encarnação ele deva pagar.
Neste mesmo sentido, com ligeiras variantes, abundam também os outros dois filósofos. Todos os três, portanto, admitem que Job é culpado, consciente ou inconscientemente, que o seu sofrimento é o pagamento de uma dívida moral.
Nestas alturas intervém o próprio Deus e rebate com palavras veementes os argumentos dos pretensos exegetas do mistério da dor: Insensatos! Que estais aí a adulterar com palavras tolas a sabedoria dos meus planos?
Declara Deus que seu servo Job não sofre para pagar algum débito negativo, de tempos passados, mas sim para acumular crédito positivo e glórias futuras.
Implicitamente, diz o mesmo que Jesus disse tangente ao cego de nascença: que esse sofrimento o colheu para que nesse homem se revelassem as obras de Deus.
Na tarde da primeira Páscoa, deixaram dois discípulos de Jesus a cidade de Jerusalém e foram em demanda da sua aldeia natal, Emaús, profundamente revoltados com os sofrimentos e a morte do profeta de Nazaré, inocente e just " – quando se associou a eles o próprio Jesus, sem que eles o reconhecessem.
E começou a expor aos dois, à luz das Escrituras, provando-lhes que o "O Cristo devia sofrer tudo isto e assim entrar em sua glória. " Nenhuma palavra sobre débito! Jesus sofreu tudo aquilo – por quê? A fim de pagar um débito, próprio ou alheio? Que ele mesmo tivesse débito a saldar, ninguém o admite; mas que os seus sofrimentos tinham por fim solver os débitos de terceiros, da humanidade pecadora de todos os tempos, isto é doutrina geral das igrejas cristãs. Entretanto, Jesus não afirma nem isto nem aquilo. Diz simples e positivamente que esse sofrimento era necessário para ele atingir a plenitude da sua evolução e perfeição, que ele chama "glória".
Admite, pois, o sofrimento como um fator de evolução espiritual, isto é, o sofrimento-crédito.
Em síntese: o sofrimento é um elemento evolutivo, tanto em Job, como no cego de nascença, como também em Jesus. O sofrimento, à luz desses textos, atualiza algo que era potencial no homem, despertando do sono o que dormia nas profundezas da alma, tornando visível algo que jazia invisível e latente nos abismos da natureza humana.
Quem puder compreendê-lo compreenda-o!
Enquanto o homem não atingir as alturas do Cristo não compreenderá que o sofrimento – embora possa, em certos casos, ser pagamento de débitos negativos – crea também um crédito positivo, sendo assim uma etapa para o homem "entrar em sua glória" de homem integral. "HÁ QUEM DEIXE DE CASAR, POR AMOR AO REINO DE DEUS" Há, ou pode haver, na vida humana dois apogeus de felicidade peculiar, determinados ou pelo êxtase da carne ou pelo êxtase do espírito.
Alguns não conhecem nenhuma dessas experiências; a maior parte das pessoas adultas só conhece a primeira: uns poucos sabem por experiência pessoal da segunda.
Toda felicidade, material ou espiritual, consiste fundamentalmente na consciência de uma intensa e exuberante vitalidade, de uma espécie de transbordamento de energias vitais.
Quando a vitalidade do corpo humano atinge o seu máximo, na culminância da juventude, podem o jovem e a jovem gozar a mais intensa felicidade corporal, que consiste no êxtase da carne. A imensa maioria da humanidade, no presente estágio evolutivo, não ultrapassou ainda essa etapa de prazer sensorial ou felicidade meramente material. E é por isto que não reagem com entusiasmo quando ouvem falar numa felicidade ultra-sensorial, que consideram como quimérica e irreal em face de veemência brutal da embriaguez erótica. Falta-lhes a antena receptora espiritual; quando muito, creem vagamente numa satisfação espiritual, mas nada sabem experiencialmente desse mundo desconhecido.
Uns poucos seres humanos, no presente plano evolutivo, alcançaram uma vitalidade espiritual suficiente para saberem de experiência direta, o que quer dizer o êxtase do espírito, ou seja, a vivência mística pelo contato imediato com a Divindade.
Em ambos os casos – tanto na erótica da carne como na mística do espírito – a intensa consciência de uma exuberante vitalidade, que é o segredo da felicidade, nasce de uma espontânea integração da parte no Todo, porque Vida é essencialmente um Todo.
O êxtase erótico vem duma integração da parte no Todo.
O êxtase místico nasce duma integração da parte no Todo.
Daí, a profunda afinidade entre esta e aquela, por mais paradoxal que isto pareça à primeira vista.
A diferença está no seguinte: no primeiro caso, trata-se de um Todo relativo – no segundo caso, do Todo Absoluto.
O sexo não passa duma secção ou segmento da natureza humana total. Nem o homem nem a mulher são a natureza humana em sua inteireza, o Anthropos, o Mensch. O homem e a mulher são apenas duas individualizações parciais e imperfeitos do SER HUMANO em si.
Por isto, a união sexual, que parece integrar o ser masculino e o ser feminino no seu Todo maior, produz uma espécie de êxtase supra-individual ou uma embriaguez erótica, que não deixa de ter certa afinidade com a morte ou o suicídio. Parece que ele ou ela deixa de ser um indivíduo à parte e, através dele ou dela, se funde num Todo supra-individual, universal, cósmico, "de maneira que já não são dois, mas um só". Tanto o orgasmo erótico como o entusiasmo místico têm caráter cósmico, seja para o subconsciente, seja para o supraconsciente.
Essa desintegração dos indivíduos, masculino e feminino, e sua reintegração num Todo ultra – ou extra-sexual, tem algo de comum com a morte ou dissolução do indivíduo e sua absorção pelo grande Todo. Não é sem razão que consideramos a virgindade como uma espécie de "integridade" individual, e sua perda faz lembrar uma tal ou qual "desintegração" individual seguida de uma "integração" universal.
O êxtase da carne, a embriaguez erótica, é a transição daquele para este estado.
Ora, na experiência mística há essa mesma sensação, essa espécie de volúpia que empolga o indivíduo no momento da sua integração no Todo relativo, pela erótica sexual; mas, na experiência mística já não se trata duma integração do indivíduo num Todo relativo mas sim no Todo Absoluto, na Divindade.
A erótica da carne é suplantada pela erótica do espírito, que é a mística; mas a afinidade continua a vigorar, embora num plano essencialmente superior, imaterial. Não é mais o indivíduo que se cosmifica – é o próprio homem, a creatura humana, que se super-humaniza, para se divinizar. Na mística é bem mais radical o egocídio do que na erótica. Amor, erótica, mística, morte – é impossível dissociar estes fenômenos, diversos nas suas ramificações externas, mas idênticos na sua raiz interna, no misterioso subsolo da sua unidade essencial.
Essa integração do Eu humano no Tu divino, essa fusão da consciência individual na Consciência Universal, essa submersão da onda da minha vida limitada no ilimitado oceano da Vida Cósmica, vem necessariamente acompanhada de uma sensação de indizível felicidade, de uma embriaguez beatífica incomparavelmente mais intensa e fascinante do que a momentânea embriaguez erótica do sexo. Esta é como que um relâmpago em plena noite, um parêntesis de luz violeta no meio de duas trevas profundas – ao passo que aquela é semelhante a uma serena e tranquila claridade solar em pleno dia.
Na erótica do orgasmo sexual não há nem pode haver verdadeira fusão dele e dela, porque se trata de dois indivíduos, necessariamente separados como tais;
nunca pode o indivíduo A ser realmente o indivíduo B. Mas na experiência mística a fusão é possível, porque se trata de um individual e dum Universal.
Não se pode fundir a parte A na parte B, mas pode-se fundir o indivíduo parcial e finito no Ser Universal e Infinito.
Na erótica, a fusão é ilusória – na mística a fusão é real.
Por isto, daquela resulta uma felicidade efêmera – desta, uma beatitude eterna.
A fusão mística, porém, não é uma absorção, substituição, aniquilamento ou extinção do indivíduo em prol do Universal – e é precisamente aqui que principia a grande e jamais devassada obscuridade para o nosso intelecto analítico! De que modo continua a existir o indivíduo após a sua definitiva fusão no Universal, na Divindade? Em vez de analisar esta pergunta inanalisável, lembramos apenas que é experiência de todos os grandes gênios espirituais da humanidade, sobretudo do Cristo, que a identidade individual do Eu continua a persistir após a fusão do homem na Divindade. É que todos esses gênios viviam num plano superior onde a lógica intuitiva da razão espiritual eclipsa toda a lógica, ou pseudo-lógica, analítica da inteligência personal.
Sendo que a mais intensa felicidade (ou prazer) no plano material é o êxtase da carne erótica sexual, e como, por ora, a nossa humanidade não possui vocabulário próprio para experiência mística, é geral em todas as literaturas o uso de termos eróticos para designar experiências místicas. O inexperiente corre, então, o perigo de tomar esses símbolos materiais pelo simbolizado espiritual, uma vez que "o conhecido está no cognoscente segundo a capacidade do cognoscente". Quem nunca teve experiência espiritual não pode saber o que simbolizam os símbolos materiais.
Nos livros sacros de todos os povos, sobretudo na Bíblia, quer no Antigo, quer no Novo Testamento, como também nas obras dos místicos, dentro e fora do Cristianismo, o encontro direto da alma com Deus é, invariavelmente, representado sob a forma de uma "festa nupcial", de um conúbio da alma com o divino Esposo.
No âmbito dos livros sacros do ocidente, é o "Cântico dos Cânticos" o poema clássico da mística divina apresentada em roupagens de erótica humana, e é indício de uma verdadeira intuição espiritual que tanto a sinagoga de Israel como também a igreja cristã tenham incluído o livro dos Cantares no cânon dos livros divinamente inspirados. Nas páginas desse grandioso poema eróticomístico não ocorre nenhuma união sexual, nenhum acasalamento no sentido tradicional, nenhuma procreação de filhos, porque no terreno do simbolizado místico não há união carnal nem procreação material: há uma espécie de autocreação, por mais paradoxal que isto pareça.
Se Salomão é o autor do "Cântico dos Cânticos", pode-se afirmar que esta epopeia mística marca a verdadeira grandeza desse homem singular, tão humano e tão divino – assim como a vida erótica com suas esposas e concubinas assinala o limite da sua grandeza: depois de gozar a plenitude do êxtase da carne, anseia Salomão, insatisfeito, pelo êxtase do espírito.
Quando o homem chega ao zênite da sua experiência mística, eclipsa-se nele todo o desejo erótico, não por uma violenta supressão, mas por um processo de espontânea integração deste naquela. As núpcias espirituais da alma humana com o divino Lógos sobrepujam totalmente as núpcias materiais do homem e da mulher.
São estes os "eunucos por amor ao reino de Deus", na misteriosa linguagem de Jesus; não os que nasceram incapazes para o casamento, nem os que foram feitos incapazes por crime de outros, mas os que a si mesmos se tornaram incapazes da erótica sexual graças à plenitude da mística divina. No mundo dos "regenerados" – isto é, dos novamente gerados ou renascidos pelo espírito – não se casa nem se dá em casamento, porque "todos eles são como os anjos de Deus nos céus, por serem filhos da ressurreição".
Quem ressuscitou da matéria para o espírito, da erótica para a mística, se tornou a si mesmo inidôneo para as núpcias humanas, não por deficiência de vigor orgânico, como os eunucos naturais ou artificiais, mas por abundância e plenitude de vigor e poder divino, porque contraiu núpcias com o eterno Lógos, cheio de graça e de verdade.
Quanto mais completo é um ser humano pela integração do seu pequeno indivíduo no grande Universal, tanto menos lhe falta uma "outra metade", porque a integração no Todo Absoluto fez silenciar nele todo o desejo de uma integração num Todo relativo. No caso, porém, que viva em regime de núpcias humanas, estas não lhe representam o último centro de gravitação da sua vida, mas lhe são antes como que uma periferia concomitante com a qual todo o seu ser sexual e humano gira em torno do centro cósmico do eterno Lógos.
O Cristo, que era totalmente "um com o Pai", já não necessitava de integração humana; a plenitude da sua mística eclipsara nele toda e qualquer erótica sexual. É possível que, para o homem comum, a integração no Todo relativo da erótica seja uma ascensão e um meio de aperfeiçoamento – mas, para o Cristo, no qual "habitava corporalmente toda a plenitude da Divindade", essa integração relativa teria sido uma diminuição e decaída da sua grandeza. "Há quem se torne incapaz para o casamento por amor ao reino de Deus – quem puder compreendê-lo compreenda-o!"
"PROCURAI PRIMEIRO O REINO DE DEUS – E TUDO ISTO VOS SERÁ DADO DE ACRÉSCIMO" O Evangelho de Jesus está repleto de afirmações categóricas como esta, afirmações que se podem resumir e parafrasear nos seguintes termos: Todo homem que buscar sinceramente as realidades do mundo espiritual receberá espontaneamente as coisas necessárias para uma vida terrestre decentemente humana.
Haja vista palavras de Jesus como estas: "Tudo que pedirdes a meu Pai em meu nome, crede que o recebereis".
Ou estas: "Tudo que, na oração, pedirdes com fé, se não vacilardes, crede que o recebereis. " Ou ainda: "Tudo é possível àquele que tem fé. . . Se tiverdes fé, que seja como um grão de mostarda, e disserdes a este monte: Sai daqui e lança-te ao mar!
Assim acontecerá. " Ou, finalmente, o texto completo parcialmente citado na epígrafe deste capítulo: "Buscai em primeiro lugar o reino de Deus e sua harmonia e todas as outras coisas vos serão dadas de acréscimo. " Nestas e em outras afirmações promete Jesus, não só a consecução das coisas espirituais ("o reino de Deus"), mas também toda e qualquer outra coisa material que não seja contrária àquela; promete mesmo o completo domínio sabre a natureza física em virtude duma simples ordem, sem aplicação de aparelho algum. Dizer a um monte: Sai daqui e joga-te ao mar! Não faz parte do mundo espiritual em si, mas também isto garante o Nazareno a quem tiver fé, isto é, quem estiver identificado com o mundo espiritual pela consciência cósmica.
Com outras palavras: Todo homem que tiver, de fato, realizado a si mesmo, o seu Eu espiritual e divino, será capaz de realizar tudo fora de si. A realização do sujeito produz a realização dos objetos. É esta a filosofia do Evangelho, por mais estranho e inverossímil que pareça ao homem inexperiente.
Para fins de brevidade e simplicidade, passaremos a chamar o processo subjetivo "auto-realização", e o processo objetivo "alo-realização".
O homem profano vive na estranha ilusão de que deva realizar, aqui na terra, umas quantas coisas fora dele, e, quanto mais coisas externas realizar tanto mais vitorioso foi na vida. Ganhar dinheiro, comprar terrenos, construir casas, gozar grande soma de variados prazeres, adquirir celebridade, fazer um bom casamento, criar filhos, conquistar posição social e política, etc. – tudo isto considera ele como a quintessência da sua vida terrestre. Entretanto, tudo isto é alo-realização, realização de objetos vários, no plano horizontal, de algo que é dele, mas que não é ele. Realiza objetos, não realiza o sujeito. Conhece a fundo todos os recantos no plano horizontal, ignorando, talvez, por completo os mistérios do plano vertical.
A diferença essencial entre a filosofia dos grandes gênios espirituais da humanidade, sobretudo Jesus de Nazaré, e a política do homem comum, é precisamente esta: o homem profano vive na permanente, e quiçá inconsciente obsessão de que deva realizar tais e tais coisas fora de si, no plano material, científico, social, para que sua vida tenha valor e plenitude; feito isto, esse homem morre tranquilamente, na certeza de que a sua vida foi fecunda e próspera – os grandes iniciados, porém, procuram realizar plenamente o seu próprio Eu divino.
Que é que faz o homem profano? Faz uma enorme coleção de zeros, de todos os tamanhos e de todas as cores; soma e multiplica essas vacuidades, pequenas e grandes, e despede-se da vida, na convicção de ter acumulado grande cabedal de valores. Em sua cegueira, não percebe que esses zeros não têm valor intrínseco, autônomo, em si mesmos, pois representam qualidades negativas. E essa ignorância da sua própria cegueira lhe dá aquela tranquilidade em que vive e morre. Se ao menos suspeitasse a ilusão em que se encontra!. . .
Seria possível dar valor a cada uma dessas nulidades, a essa coleção de zeros?
Seria possível, sim; bastaria antepor-lhes um valor positivo, por exemplo o algarismo "1". Neste caso, o primeiro zero teria o valor de 10, o segundo o de 100, o terceiro valeria 1000, e assim por diante. Cada uma das quantidades negativas dos zeros fez, por assim dizer, um empréstimo no "banco" da qualidade positiva "1". Esse valor positivo "1" é, por assim dizer, uma fonte inesgotável para todos os zeros a ele associados, um foco luminoso que, por mais luz que irradie aos objetos escuros em derredor, nada perde da sua intrínseca luminosidade. De fato, o "1", por mais que valorize os desvalores dos zeros atrás dele, não se desvaloriza a si mesmo. Dá sem nada perder.
Se o homem profano descobrisse essa maravilhosa matemática do reino de Deus, essa sapiência espiritual, deixaria de ser um profano e se tornaria um iniciado.
Todos os iniciados sabiam desta grandeza e fizeram dela o centro da sua vida.
Daí a sua imperturbável firmeza e segurança, daí a sua inabalável serenidade e felicidade em todas as conjunturas da vida.
Enquanto o homem não é ainda plenamente iniciado no âmago da verdade, mas já deixou ser um profano absoluto, trata ele com certa desconfiança esses zeros das coisas do mundo; não os quer ver associados ao grande "1" da sua vida espiritual; deserta do mundo, isola-se numa caverna ou mosteiro, porque quanto mais longe do mundo tanto mais perto se sente ele de Deus. É que não compreendeu ainda que esse "1" que ele busca com tanto afã pode e deve valorizar todos os zeros – quando estes ocupam o seu lugar à direita que lhes compete: 1. 000. 000; se ocuparem a esquerda, é claro que o "1" sairia diminuído e tanto mais desvalorizado quanto maior é o numero dos zeros; 000. 000. 1. "Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se chegar a sofrer prejuízo em seu próprio Eu" (alma) – é com estas conhecidas palavras que o maior auto-realizador da história exprime a grande verdade.
O homem inexperiente pretende realizar os objetos pelos objetos – o homem experiente descobriu que os objetos só podem ser realizados pelo sujeito, suposto, naturalmente, que este se ache plenamente realizado. A causa é o sujeito, os efeitos são os objetos; não podem estes nascer se aquela não for perfeitamente sadia e forte. Uma fêmea imatura não produz filhos; para que estes possam nascer deve ela adquirir plena maturidade.
Querer realizar objetos do plano horizontal por meio de objetos desse mesmo plano – eis a ignorância multimilenar da humanidade.
Realizar quaisquer objetos externos pelo sujeito interno, do plano vertical – eis a grande sabedoria de todos os gênios espirituais!
Alo-realização pela auto-realização!
Só quando o sujeito individual (homem) se identifica totalmente com o SUJEITO UNIVERSAL (Deus) é que ele pode, de fato, realizar algo no plano dos objetos; toda e qualquer outra espécie de alo-realização é puramente ilusória e irreal.
A filosofia cósmica é a única ciência realmente exata, porque o seu contrário é metafisicamente impossível. Podem-se provar, com todo o rigor da lógica, três coisas baseadas nesta verdade:
1) que alo-realização não é possível sem autorealização,
2) que a auto-realização acontece infalivelmente quando o sujeito individual (homem) consegue adquirir a consciência cósmica da sua essencial identidade com Deus, essencial identidade essa que, todavia, não exclui, mas inclui, a nítida consciência da sua diversidade e inferioridade existencial, humana,
3) que, uma vez efetuada a auto-realização, a alo-realização acontece infalivelmente, consoante a lei básica da Constituição do Universo, porque o efeito segue necessariamente à causa, quando esta atinge sua plenitude.
O que acabamos de expor, em terminologia filosófica, naturalmente difícil para os não-habituados, encontra-se, em substância, no fundo de todas as afirmações e declarações dos grandes mestres espirituais da humanidade.
Como, porém, o gênero humano não possui um vocabulário adequado para experiências espirituais, servem-se os mestres da linguagem comum, com a diferença de que por detrás desses símbolos materiais deve o homem experiente descobrir o simbolizado espiritual. Toda linguagem espiritual é uma parábola: o contenedor é humano, o conteúdo é divino; o corpo é material, a alma é imaterial.
O texto diz "o Reino de Deus e sua harmonia", ou justiça, que quer dizer ajustamento, ou harmonia. O homem espiritual percebe a harmonia ou a justeza que vigora entre o mundo espiritual e o mundo material. As leis cósmicas primam por uma perfeita complementaridade: se o homem realizar o seu Eu espiritual, então as leis cósmicas se encarregam de manter o seu ego material. O homem espiritualizado não necessita de correr atrás das coisas materiais, porque estas correm atrás dele.
A melhor confirmação desta complementaridade é a vida do próprio Jesus, que nunca adquiriu nenhum bem material, nunca mendigou nada – e nunca sofreu necessidade de coisa alguma. Andava tão bem vestido que, ao pé da cruz do calvário, os soldados romanos repartiram entre si as vestimentas dele, e ainda sobrou a túnica inconsútil, que foi sorteada pelos guardas.
O homem-ego deve "comer o seu pão no suor do seu rosto", mas o homem-Eu que realizou em si o Reino de Deus receberá "de acréscimo" todas as coisas necessárias a uma vida decentemente humana.
É esta a misteriosa matemática do Reino de Deus, dificilmente compreensível para a aritmética dos homens. "AS PALAVRAS QUE VOS DIGO SÃO ESPÍRITO E VIDA" Há, nas páginas do Evangelho, sobretudo três grupos de palavras de Jesus que, através dos séculos, estão sendo usados – ou abusados – pelos chefes eclesiásticos para cingir de um halo de autoridade divina as suas instituições hierárquicas. São as palavras seguintes:
1) "Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja".
2) "A quem vós perdoardes os pecados são lhes perdoados. "
3) "Isto é meu corpo, isto é meu sangue. " Em todos os três casos temos palavras de sentido puramente espiritual, profundamente metafísico-místico, que de forma alguma visam fins organizatórios, nem pretendem favorecer esta ou aquela classe de homens.
Entretanto, todos esses tópicos estão sendo interpretados em benefício de uma determinada classe de homens eclesiásticos, com o fim de levar os fiéis, a uma obediência cega e incondicional a seus chefes hierárquicos.
O primeiro desses tópicos é explorado teologicamente com o fim de conferir poderes divinos ao supremo hierarca da igreja romana, cujo primeiro antecessor teria sido o pescador galileu Simão Pedro, embora as fontes históricas sejam contrárias a essa pretensão.
O segundo e terceiro textos têm por fim provar que Jesus conferiu à classe sacerdotal poderes divinos de perdoar ou de reter pecados, e de converter pão e vinho no corpo e sangue dele.
Toda essa teologia eclesiástica peca por um erro fundamental, porquanto supõe que um elemento espiritual, divino, possa ser transmitido por meio de cerimônias, de pessoa a pessoa. No entanto, sabemos que é impossível transmitir de pessoa a pessoa um poder divino. Nenhuma experiência ou iniciação espiritual é susceptível de transmissão, no plano horizontal; só pode ser recebida na vertical, do alto, de Deus, suposto que haja entre os homens um receptor idôneo para a captação dessas realidades divinas. Não existe nenhuma classe social especialmente apta para o recebimento de poderes divinos; nem um estudo teológico de dez ou mais anos torna o candidato apto para ser receptor de poderes divinos; muitas vezes esse escolasticismo intelectual até destrói no estudante a capacidade receptiva. A verdadeira aptidão receptora depende da disposição individual do receptor, disposição que pode encontrar-se em qualquer ponto do globo, dentro ou fora do Cristianismo ou de qualquer outra religião organizada. Deus não conhece gente – Deus só conhece indivíduos. Perante Deus não existem sociedades, instituições, grupos, organizações – só existem almas humanas individuais. Melquisedec era pagão, e, no entanto, era "sacerdote do Altíssimo", que abençoou o patriarca Abraão. Saulo de Tarso era rabino judeu, e foi escolhido por Deus para ser o maior apóstolo do Cristo naqueles tempos, com grande estranheza de certos discípulos de Jesus palestinenses. Francisco de Assis era um jovem negociante italiano, e foi eleito por Deus para ser um dos maiores sacerdotes da humanidade de todos os tempos e países, ele, que nunca aceitou o sacerdócio ritual, uma vez que já recebera sacerdócio espiritual muito superior àquele. Mahatma Gandhi, chefe espiritual e político hindu, foi designado por Deus para ser o guia religioso de centenas de milhões de almas e um dos mais lídimos sacerdotes da humanidade de todos os tempos. Albert Schweitzer, ministro evangélico, tornou-se o modelo do místico dinâmico que exerceu o seu heroico sacerdócio universal no meio da porção mais abandonada do gênero humano.
Deus não conhece acepção de pessoas nem de classes; outorga poderes a toda e qualquer pessoa, de qualquer raça, classe ou credo, desde que essa pessoa possua a necessária receptividade para receber os dons divinos.
Supor que Jesus tenha instituído determinada sociedade hierárquica e designado certos homens para, com exclusividade, servirem de veículos de privilégios divinos, é reduzir o maior gênio espiritual da humanidade à condição de um talento medíocre, de um hábil codificador de dispositivos teológicos e jurídicos.
De mais a mais, como poderia ele designar, dantemão, os seus sucessores sem saber se eles seriam capazes de receber e canalizar tão grandes realidades espirituais? O veículo é escolhido individualmente por Deus, e não fabricado pelos homens.
Há mais sacerdotes de Deus fora do sacerdócio ritual do que dentro dele. "O sopro sopra onde quer. " Para Deus não existem barreiras nem fronteiras de organizações ou seitas humanas. Dá o seu espírito a quem encontrar preparado para o receber. "Quando o discípulo está pronto, o mestre aparece", diz o provérbio oriental, que bem poderia ser aplicado ao nosso caso. Quando o homem for iniciável, será iniciado por Deus – seja ele Melquisedec, Job ou Gandhi, seja ele Saulo de Tarso, Francisco de Assis, Albert Schweitzer, ou outro homem qualquer. Deus nada sabe das nossas burocracias hierárquicas ou jurídicas.
Queixaram-se, certo dia, uns discípulos de Jesus, ainda não iluminados, porque um homem que não era do grupo deles expulsava demônios em nome do Mestre; este, porém, lhes replicou: "Deixai-o! Quem expulsa demônios em meu nome não é meu inimigo!" Esse exorcista era um sacerdote de Deus espiritualmente iniciado, embora não ritualmente ordenado.
Passaremos a expor, nos seguintes capítulos, o sentido espiritual de certas palavras de Jesus, independente da interpretação que as sociedades eclesiásticas lhes imputaram através dos séculos. "SOBRE ESTA PEDRA EDIFICAREI A MINHA IGREJA" Há no Evangelho de Jesus Cristo três passagens-chave, que têm sido origem de violentas controvérsias teológicas e devastadoras guerras de religião. A mais central dessas três passagens – as outras duas falam do "perdão dos pecados" e do mistério do "pão e do vinho" – talvez seja a de que nos ocuparemos no presente capítulo.
Boa parte do Cristianismo, no período da sua cristalização eclesiástica, se apoderou desses textos sacros para provar que só ela é que é a verdadeira e genuína igreja do Cristo. Em todos os três casos, essa sociedade eclesiástica interpreta as palavras de Jesus em sentido intelectual-eclesiástico-teológico, favorável à organização hierárquica, quando essas palavras foram ditas num plano diferente, puramente espiritual.
Sobretudo no caso das conhecidas palavras "Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja", é evidente que a tradicional interpretação escolásticaintelectual não atinge o sentido real das palavras do Nazareno, que pertencem a um plano de consciência e experiência racional-espiritual. Entretanto, devido à baixa evolução espiritual da humanidade, essa interpretação teológica passou a ser a mais conhecida, e, por muitos, tida como a única verdadeira.
Tem ela a vantagem de se prestar admiravelmente como substrutura para um edifícil hierárquico mundial.
À luz das circunstâncias, e do próprio contexto, é fora de dúvida que a exegese tradicional dessas palavras de Jesus não é uma interpretação real do sentido, mas antes uma injeção mental da parte do homem, que nelas descobre o que dantemão deseja descobrir. O nosso entender vai sempre na direção do nosso querer; a nossa inteligência reveste insensivelmente as cores da nossa vontade. É difícil pensar imparcialmente. . .
Em Cesareia de Filipe, perguntara Jesus a seus discípulos o que é que dele diziam os homens; ao que os discípulos referem diversas opiniões correntes a respeito do Mestre. Depois disto, interpela Jesus os próprios discípulos para saber o que dele pensam eles mesmos. E Simão, o pescador galileu, sempre explosivo e entusiasta, responde: "Tu és o Cristo, o filho do Deus vivo!" De relance percebe Jesus que tão gloriosa confissão não vinha da parte humana ("carne e sangue") de seu discípulo, cujas deficiências humanas conhecia sobejamente, mas que era a voz do elemento divino no homem ("o Pai que está nos céus"): "Não foi a carne e o sangue que to revelou, mas sim meu Pai que está nos céus. " Todas as vezes que Jesus se refere ao elemento divino no homem – ao seu Eu espiritual, eterno, ao Emanuel, ao Deus no homem – ele o chama o "Pai". "As obras que faço, não sou eu que as faço, mas sim meu Pai que em mim está. " "A minha doutrina não é minha, mas sim daquele que me enviou. " E em virtude da íntima união que havia entre o elemento humano e o elemento divino do Nazareno, entre o seu Jesus e o seu Cristo, pode ele em verdade afirmar: "Eu e o Pai somos um. " No mesmo sentido diz Paulo de Tarso: "Já não sou eu (meu elemento humano) que vivo – o Cristo (elemento divino) é que vive em mim. " Neste sentido, diz Jesus a seus discípulos: "O Pai está em vós, e vós estais no Pai. " Toda vez que o homem pensa, fala ou age em virtude de seu ego, ou pseudoeu humano, físico-mental, pensa, fala e age ele como simples pessoa, como carne e sangue – mas, quando ele se deixa guiar pelo Eu divino, por seu Cristo interno, o homem pensa, fala e age inspirado pelo Pai.
Em Cesareia de Filipe, em face da pergunta: "Quem dizeis vós que eu sou?" desperta o elemento divino em Simão Bar-Jona, e, impelido por esse espírito divino, o "Pai dos céus", o discípulo exclama: "Tu és o Cristo, o filho do Deus vivo!" Jesus, sempre animado por esse mesmo espírito do Pai, reconhece de relance que aqui não falou a pessoa humana e frágil do pescador galileu, "carne e sangue", mas sim o espírito de seu Pai celeste.
Por isto, replica Jesus: "Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja. " Em aramaico, dialeto hebraico falado por Jesus e seus discípulos, "Pedro" e "pedra" são a mesma palavra, kepha. De maneira que, na realidade, Jesus disse: "Tu és kepha (pedra) e sobre esta kepha (pedra) edificarei a minha igreja. " Que é que Jesus chama kepha, pedra?
Evidentemente, o elemento divino e forte em Simão. O divino é firme, como a rocha, o humano é inseguro, como a areia. Neste mesmo sentido, concluindo o Sermão da Montanha, dissera Jesus: "Quem ouve estas minhas palavras e as realiza assemelha-se a um homem sensato que construiu a sua casa sobre a rocha – mas quem ouve estas minhas palavras e não as realiza é como um homem insensato que construiu sua casa sobre areia. " Rocha ou pedra (kepha) é, pois, o elemento divino no homem; areia (ou carne e sangue) é o elemento humano. Construir o edifício do Cristianismo sobre elemento humano, físico-mental, não oferece solidez e garantia; é incerto e mal seguro como movediço areal – ao passo que construir o seu Cristianismo sobre a rocha viva da intuição espiritual ou revelação de Deus – isto é seguro e indestrutível.
Não era a matéria visível, mas era o espírito invisível que fizera o discípulo conhecer e confessar: "Tu és o Cristo, o filho do Deus vivo!" E foi por esta mesma razão que Jesus, intuindo a íntima natureza de Simão, lhe dera o cognome simbólico de "Pedro" ou "pedra" (kepha), porque nele o elemento divino se manifestava de um modo especial.
Em Cesareia de Filipe, esse elemento divino em Simão Pedro – o seu "Pedro", a sua "rocha" – conhece, reconhece e confessa que há em Jesus um elemento divino, o seu "Cristo", o "Messias", o "Ungido", o eterno "Lógos". O divino no discípulo percebe e proclama o divino no Mestre.
E foi por isto que Jesus, após ouvir a voz do elemento divino no discípulo, que confessa o Mestre exclama entusiasticamente: "Bem-aventurado és tu, Simão, filho de Jonas (Bar-Jona); porque não foi a carne e o sangue (o humano) que to revelou, mas sim meu Pai (o divino) que está nos céus. " E prossegue: "E por isto, também eu te digo que tu és Pedro. . . " Quer dizer: Porque tu me disseste que em mim há um elemento divino (o Cristo), por isto também eu te digo que em ti há um elemento divino (a pedra, o Eu). "A pedra porém, é o Cristo", escreve São Paulo, continuando: "É ele o fundamento da igreja, e ninguém pode lançar outro fundamento. " Jesus proclama, pois, em Simão o mesmo Cristo que Simão proclamara em Jesus. O Cristo em Simão fala ao Cristo em Jesus. Pode o Cristo em Simão conhecer o Cristo em Jesus, mas a carne e o sangue em Simão não podem conhecer o Cristo em Jesus. Não pode o menor conhecer o maior; o cognoscente só pode conhecer o que é igual a ele, ou inferior; mas não pode conhecer o que é superior. Conhecer perfeitamente é compreender, que significa abranger, abarcar, prender totalmente. Não foi a pessoa humana de Simão que conheceu a divindade de Cristo, mas foi o seu Eu divino, crístico.
E sobre este elemento divino oculto na pessoa humana de Simão Pedro é que Jesus fundou sua igreja; e é esta a razão porque as "portas do inferno não prevalecerão contra ela".
Poucos momentos depois desta cena, as portas do inferno prevaleceram contra a pessoa humana de Simão Bar-Jona; pois, quando, saindo dali, Jesus começou a falar da sua próxima paixão e morte, esse mesmo Simão que tão gloriosa confissão fizera é chamado "satan", isto é, adversário, inimigo do Cristo – por quê? Porque nele prevaleceu o elemento humano, carne e sangue, que se opôs ao elemento divino. O ego humano de Simão Pedro recua diante da perspectiva do sofrimento – ao passo que o Eu divino aceita voluntariamente a paixão e morte. E o Mestre repreende asperamente o discípulo, dizendo: "Vade retro, satan!" vai no meu encalço, na minha retaguarda, adversário, e não te ponhas na minha vanguarda, tentando impedir o meu sofrimento voluntário! E logo passa Jesus a explicar porque dá ao discípulo o nome de "satan" ou adversário: "Porque o teu modo de pensar é de homem, e não de Deus. " Esse "modo de pensar humano" revelara-se em Simão no medo que tinha em face do sofrimento e da morte, e tentou contagiar da mesma fraqueza humana o divino Mestre. Sucumbira ao embate da carne e do sangue, ao seu satan, adversário do Cristo.
Ora, seria absurdo, e até blasfemo, supor que Jesus tivesse edificado a sua igreja sobre tão movediço areal, sobre esse punhado de carne e sangue, sobre esse satan, sobre a pessoa humana e frágil do pescador da Galileia. Se assim fora, se tão fraco fosse o alicerce da igreja do Cristo, já nessa mesma hora teriam as "portas do inferno" prevalecido contra ela.
Entretanto, a frágil natureza humana de Simão Bar-Jona nada tem que ver com o fundamento da igreja. Por isto, Jesus não desdisse o que dissera. Cedeu a areia – não cedeu a rocha! Jesus não edificou a sua igreja sobre "o Pedro da confissão", escreve Santo Agostinho, mas sobre "a confissão de Pedro": portanto não sobre um homem, mas sobre o Cristo confessado por Pedro, "edificou a sua igreja sobre si mesmo", sobre o Cristo, que é a rocha dos séculos.
Até ao quinto século, como revelam os escritos de Santo Agostinho, era esta a interpretação predominante no seio da igreja; que Jesus havia fundado a sua igreja sobre a confissão da divindade de Cristo, revelada a Simão Pedro pelo Pai celeste – e não sobre a pessoa humana deste discípulo [4].
- [4] As palavras textuais de Santo Agostinho, em latim, se encontram no Sermão 76, pg. 479 e seguintes, do V Volume das Obras Completas, editadas por Migne, Paris, 1877, sob os auspícios dos Padres Beneditinos.
Citaremos apenas as seguintes palavras de Agostinho: "Tu es Petrus, et super hanc petram, quam cognovisti dicens: Tu es Christus, Filius Dei vivi aedificabo Eccelesian meam. Id est: Super meipsum, Filium Dei vivi, aedificabo Ecclesiam meam. Super me aedificabo te, non me super te. " Como se explica, então, uma interpretação, quase geral, tradicional na igreja romana dos nossos dias, segundo a qual a pedra é o discípulo Simão Pedro?
A razão é uma razão de conveniência histórica, e não uma razão de verdade intrínseca. Durante toda a Idade Média, que começa depois dos tempos de Santo Agostinho, acentua-se cada vez mais no seio da igreja cristã do ocidente a tendência de centralizar o poder espiritual numa só pessoa, praticamente no bispo de Roma, por ser esta a cidade e sede do império romano. E, quando, em fins do século V, o império dos Césares ruiu ao tremendo embate dos povos nórdicos – godos, hunos, vândalos, etc. – a igreja passou a ser também o império, papa e imperador eram uma só pessoa, e assim continuaram por diversos séculos. Nesse período de progressiva centralização era de vital interesse provar que tanto o poder espiritual da igreja como também o poder material do império eram de instituição divina e como tal devia ser respeitado.
Ora, o melhor modo de provar a origem divina desse duplo poder hierárquico do chefe da igreja era o apelo para as palavras de Jesus dirigidas ao pescador galileu, em Cesareia-de-Filipe.
Era necessário provar que o bispo de Roma era o sucessor direto e legítimo de Simão Pedro, e, portanto, detentor do mesmo poder divino confiado a este.
Ora, a sucessão é de pessoa a pessoa, e não de espírito a espírito. Muitos poderiam ser os herdeiros do espírito divino de Simão Pedro, um só, de cada vez, podia ser o sucessor da sua pessoa humana. Era, pois, necessário provar que o bispo de Roma era o sucessor pessoal de Simão Pedro, porque só assim teria valor para a ideia da centralização do poder. Se prevalecesse a concepção antiga, de Santo Agostinho e seus contemporâneos e predecessores, nada seguiria daí para o poder hierárquico do bispo de Roma.
Mas, se se aceitasse que a superestrutura da igreja cristã tinha como subestrutura a própria pessoa de Simão Pedro, recairia sobre o bispo de Roma todo o poder e toda a glória que Jesus teria conferido a seu discípulo.
E assim foi que, obliterando séculos de intuição espiritual e cristã, a hierarquia eclesiástica suprimiu tudo que fosse contrário à interpretação hoje adotada, proclamando ter a pessoa de Pedro sido nomeada o fundamento da igreja, sendo, por isto, o bispo de Roma o legítimo detentor do mesmo privilégio da primazia que Jesus conferira a Pedro.
Esta teoria, hoje corrente na igreja de Roma, falha em três pontos:
1) admite que Jesus fundou sua igreja sobre a pessoa humana de Simão Pedro, quando isto é claramente desmentido pelo próprio texto do Evangelho, como também por toda a tradição antiga, pelo menos até ao século quinto,
2) que Simão Pedro tenha recebido de Jesus uma primazia de poder e jurisdição sobre os outros apóstolos e os cristãos em geral, o que é totalmente ignorado tanto pelo próprio apóstolo Pedro, como também por seu colega Paulo e a igreja cristã primitiva,
3) que Pedro tenha sido o fundador da igreja de Roma e o primeiro bispo da mesma, o que é totalmente incompatível com os fatos históricos, porquanto está provado tanto pelos textos sacros do Novo Testamento como pelos historiadores antigos, a) que Pedro não fundou a igreja de Roma, b) que não foi bispo de Roma, c) que não residiu na capital do império, d) que, depois do ano 64, início da perseguição da igreja por parte de Nero, Pedro, como também seu coapóstolo Paulo, foram visitar os cristãos de Roma em 67, e após breve período de atividades apostólicas foram presos e condenados à morte.
A igreja de Cristo possui alicerce divino, infinitamente mais poderoso do que o que a teologia eclesiástica admite. Se tão humano fosse o alicerce do reino de Deus, já teria ele sucumbido às potências do Hades, isto é, aos fatores negativos do erro e da morte.
O elemento divino da igreja, a "rocha dos séculos", não tem sucessor em nenhuma pessoa humana. A rocha da igreja é o Cristo, porquanto "ninguém pode lançar outro fundamento a não ser aquele que foi lançado", o Cristo, a "pedra angular" do reino de Deus. Todo homem unido ao Cristo, faz parte do alicerce da igreja.
Essa rocha, porém, não é transmissível por sucessão histórica, no plano horizontal, de pessoa a pessoa – essa rocha, o Cristo, só existe por meio do poder de Deus. Quem aceita o Cristo e confessa com Simão Pedro "Tu és o Cristo, o filho do Deus vivo!" – esse faz parte do alicerce da igreja do Cristo.
Contra ele não prevalecerão as potências destruidoras do mal, porque edificou a sua casa sobre a rocha: soprem os vendavais, desabem os aguaceiros, transbordem os rios e deem de rijo contra essa casa – ela não cairá, porque está edificada sobre a rocha, "a rocha, porém, é o Cristo", o "rei imortal dos séculos". Cristo "o mesmo, ontem, hoje e para sempre". "A QUEM VÓS PERDOARDES OS PECADOS SÃO LHES PERDOADOS" Há nas páginas sacras do Evangelho, como já dissemos, certas passagens que, no decorrer dos séculos, foram explicadas segundo as necessidades da época. Essas necessidades não nasceram de dentro desses textos, mas das circunstâncias de tempo e lugar.
As palavras acima citadas pertencem e esse grupo. No tempo em que se formou a hierarquia eclesiástica, entenderam os teólogos que era indispensável conferir aos componentes dessa hierarquia poderes divinos para que tivessem suficiente autoridade perante o povo em geral. O poder de perdoar pecados é um poder divino.
De fato, há homens que possuem o poder de perdoar pecados. Mas o erro está em que a hierarquia eclesiástica pretende monopolizar esse poder, de pessoa a pessoa, mediante determinadas cerimônias rituais. Contra esses dois erros, nascidos das circunstâncias, e talvez da ambição, afirmamos:
1) o poder de perdoar pecados não é privilégio exclusivo de determinada classe sacerdotal,
2) esse poder não é conferido por meio de cerimônias rituais, no plano horizontal, mas vem diretamente, na vertical, de Deus e é conferido a toda e qualquer pessoa que seja idônea para o receber.
As palavras esotéricas "A quem vós perdoardes os pecados são lhes perdoados, e a quem vós os retiverdes são lhes retidos" foram dirigidas por Jesus, repetidas vezes, a) a uma só pessoa, b) ao grupo seleto dos seus apóstolos, c) a todos os seus verdadeiros discípulos em geral.
Entretanto, é de suma importância não desligar estas palavras das que as precedem: "Recebei o espírito santo. " Convém notar que a palavra "perdoar" é um composto de "dar" ou "doar".
Perdonare em latim, é composto de "per" e "donare" (doar); da mesma forma em inglês "forgive" é composto de "for" e "give" (dar), ou em alemão "vergeben", composto de "ver" e "geben" (dar). Perdoar quer, pois, dizer "dar plenamente", fazer uma "doação total". A ideia que está no fundo deste vocábulo é esta: quando um pecador recebe uma dádiva ou doação de luz espiritual muito abundante, uma doação plena, ele compreende o seu estado, arrepende-se e se converte a Deus. Está perdoado. Porque é inadmissível que um pecador seja perdoado externamente sem que internamente se converta;
mas essa conversão supõe uma nova compreensão, uma luz divina mais intensa. Se ele receber uma "per – doação", isto é, uma doação abundante que lhe dê a suficiente compreensão intuitiva do seu estado, se converterá a Deu " – e está perdoado.
Se, por conseguinte, Jesus afirma que um homem pode perdoar os pecados a outro homem e que essa "perdoação" é ratificada por Deus, afirma que um homem pode fazer com que outro homem seja a tal ponto iluminado que ele compreenda o seu estado pecaminoso e se converta. Mas, para que um homem possa contribuir para que outro homem seja iluminado deste modo, é indispensável que o primeiro possua luz muito abundante, ou que "receba o espírito santo", isto é, o espírito cósmico de Deus, o espírito da universalidade [5].
- [5] Conforme explicamos em "Metafísica do Cristianismo", e alhures, a palavra "santo" é, em todas as línguas, um sinônimo de "total" ou "universal". Cf. "whole" (total) e "holy" (santo); ou "heil" (todo, inteiro) e "heilig" (santo). Mesmo em português, as palavras "são" e "santo" nasceram do mesmo radical, significando totalidade, inteireza, universalidade. O "espírito santo", é, pois, o espírito da universalidade, o espírito cósmico, o espírito divino.
Que é, pois, que Jesus afirma?
Afirma que, se alguém tiver o espírito de Deus, e, em nome desse espírito divino que nele está, fizer a um seu semelhante completa doação da luz divina que nele mesmo está, também o próprio Deus fará essa mesma doação, que tem por inevitável consequência a conversão do pecador. Tudo quanto um homem possuidor do espírito de Deus faz e declara, é Deus mesmo que o faz e declara, porque esse homem e o Pai são um só. Neste mesmo sentido dizia Jesus: "As obras que eu faço não sou eu que as faço – é o Pai que em mim está que as faz. " Ou: "A minha doutrina não é minha, mas daquele que me enviou. " A seus discípulos dizia ele: "O Pai está em vós, assim como o Pai está em mim. " Se, pois, um homem, repleto do espírito de Deus que nele habita, perdoar pecados, não é ele, o seu ego físico-mental, humano, que os perdoa, porquanto já não é ele que vive, mas o Cristo que vive nele. Quem, neste caso perdoa é o Eu divino no homem, sua alma, seu espírito santo, seu Emanuel;
porque esse homem já não age em seu nome pessoal, individual, mas age sempre em nome de Deus, do Deus imanente nele.
Enquanto o Lúcifer (intelecto) do homem liga a consciência de alguém, não está ela ligada; mas se o Lógos (razão, Cristo) do homem desligar a consciência de alguém, ela está realmente desligada, porque esse Lógos no homem é o mesmo Lógos em Jesus e o mesmo Lógos que no princípio estava com Deus e que é Deus. Já não é o homem que desliga, é o Cristo, vivo nele, que desliga.
Pensar e ensinar que essa iniciação cósmica do homem seja resultado dum determinado ritual litúrgico, ou que possa ser transmitida de pessoa a pessoa, ou transferida, é ignorar um dos dispositivos fundamentais da Constituição Cósmica do Universo. Se uma realidade espiritual fosse transferível de pessoa a pessoa, no plano individual, horizontal, deixaria o cosmos de ser o que é, um sistema de ordem e harmonia, e acabaria num horripilante caos de confusão e desordem; haveria uma espécie de ilegalidade ou contrabando no reino de Deus. Em hipótese alguma pode alguém receber ou herdar a experiência espiritual de outra pessoa, porque essa experiência é estritamente individual e deve ser adquirida individualmente pelo iniciando, embora outro, já iniciado, o possa ajudar externamente, removendo certos obstáculos e aplainando os caminhos para a experiência espiritual.
No caso que alguém me abrisse as portas do céu (se tal coisa fosse possível) sem que eu mesmo estivesse maduro para esse acontecimento máximo, eu, de fato, não estaria no céu, mas no inferno; porque, devido à minha imaturidade espiritual, me sentiria de tal modo desambientado no meio daquela companhia celeste se seres altamente espiritualizados que suspiraria pelo momento redentor de sair desse "céu infernal", a fim de encontrar um ambiente mais congenial, em algum "inferno celestial".
Só quem passou pela grande experiência divina e teve o seu encontro pessoal com Deus é que está em condições de entrar no céu e ficar nele – aliás, ele já está no céu, no reino de Deus, graças a essa mesma experiência, uma vez que o céu está nele.
O poder de ligar e desligar, de perdoar ou reter pecados não é transmitido nem transmissível no plano horizontal humano, mas advém ao homem idôneo pela vertical divina. Os nossos mestres, guias e educadores espirituais podem preparar esse nosso encontro com Deus, podem levar-nos até ao limiar do santuário, mas não nos podem introduzir nele.
Virgílio despede-se de Dante na fronteira entre o Purgatório e o Paraíso, e daí por diante é Beatriz que guia o poeta-filósofo. Virgílio é o homem físico-mental, profano, a consciência telúrica, experiente nas coisas da vida terrestre (inferno e purgatório), mas inexperiente nas coisas celestes. Virgílio é a inteligência "virgem", não fecundada pelo Espírito, pelo divino Lógos, pelo Cristo. Beatriz, a "beatificadora", é a Razão espiritual, o espírito divino, capaz de introduzir o homem nos divinos mistérios do paraíso.
Certos "Virgílios" humanos se arrogam o direito e privilégio de iniciar os viajores telúricos no reino de Deus, mediante determinados ritos externos, usurpando assim a prerrogativa que cabe a Beatriz.
Quem recebe o espírito cósmico (ou santo) é conduzido por Beatriz, pela razão, pelo Cristo, pelo Lógos universal, por Deus mesmo. O que ele liga ou desliga está ligado ou desligado por Deus; o que ele perdoa ou não perdoa está perdoado ou não perdoado por aquele que é a vida desse iniciado. "Recebei o espírito santo! A quem vós perdoardes os pecados são lhes perdoados; e a quem vós os retiverdes são lhes retidos. "
Analisamos a palavra portuguesa "perdoar". Mas convém não esquecer que nem o texto grego do primeiro século, nem mesmo o texto latino dos séculos subsequentes falam em "perdoar". O grego usa o vocábulo aphíemi, que quer dizer desligar, soltar, libertar. O latim usa a palavra demittere, que significa demitir, que é um sinônimo de soltar, libertar.
Quer dizer, o perdão é considerado como uma libertação ou um desligamento entre o ofendido e o ofensor. Quando alguém não se dá por ofendido pelas ofensas do ofensor, então ele se desliga, ele se põe numa outra dimensão de consciência: há um ofensor, mas não há um ofendido. O ofensor se acha no plano do ego ofendido; e o ofendido se acha no mesmo plano. Mas, se o suposto ofendido se tornar inofendível, então abandona ele o plano do ego e passa para a dimensão superior do Eu divino, que é inofendível. O ego é comparável com a água, que é "ofendível", isto é, contaminável pelo ambiente.
O Eu é como a luz, que é "inofendível", incontaminável pelo ambiente. "Vós sois a luz do mundo. " De maneira que, à luz do texto, o homem espiritual não perdoa propriamente as ofensas, mas ignora-as; desligou-se do plano do ego ofendível e subiu às alturas do Eu inofendível.
O ego vicioso, quando ofendido, se vinga.
O ego virtuoso, quando ofendido, perdoa.
O Eu crístico, se desliga da ideia de ser ofendido; está para além de vingança e perdoação. "Sede perfeitos assim como é perfeito vosso Pai que faz nascer seu sol sobre bons e maus e faz chover sobre justos e injustos. " "ISTO É O MEU CORPO – ISTO É O MEU SANGUE" Quanto mais intensamente cósmica é uma verdade do Evangelho tanto mais a inteligência humana, ainda totalmente telúrica, se desorienta em face dessa revelação.
É o que acontece, sobretudo, com aquilo que uns chamam a Eucaristia, e outros a Ceia do Senhor. Esse tópico cindiu a cristandade em campos adversos e, aparentemente, irreconciliáveis. A desarmonia creada no seio da cristandade por estas palavras de Jesus só é comparável a que nasceu das palavras "Tu és Pedro. . . " E essa discórdia é perfeitamente compreensível, uma vez que a nossa teologia é ainda visceralmente escolástica, intelectualista, telúrica – e neste plano não há nenhuma possibilidade de compreensão real, única suficiente e capaz de unificar as dissidências.
Acresce a agravante de que o ritualismo sacramental que uma grande parte da igreja cristã estruturou sobre o texto eucarístico é a base principal que, há séculos, garante a subsistência material, e, não raro, até a prosperidade financeira do clero. Se a interpretação desse tópico estivesse inteiramente divorciado do prestígio social e político e da prosperidade econômica do clero, seria relativamente fácil compreendermos o verdadeiro sentido dessas palavras e teríamos uma porta aberta para um congraçamento universal no seio das igrejas cristãs. Por ora, porém, estamos bem longe dessa solução feliz, porque a imensa maioria da humanidade cristã se acha ainda no estágio meramente intelectual-teológico. Mais fácil seria essa solução no setor do mundo leigo que no setor hierárquico da igreja, porque para o sacerdócio a religião representa uma profissão material, ao passo que para os fiéis em geral é um ideal espiritual.
Em vésperas de sua morte proferiu Jesus a mais profunda e misteriosa de todas as suas parábolas, não só em palavras, mas em palavras e fatos.
Expressou, num drama de inigualável verdade e beleza aquilo que com o seu corpo e sangue ia acontecer no dia imediato e o que com sua alma e divindade ia perpetuar-se através dos séculos e milênios.
Para compreender o mistério do pão e do vinho, seria necessário compreender primeiro o próprio Cristo.
Que é o Cristo?
Diz o quarto Evangelho que ele é o próprio espírito universal de Deus que se individualizou no Cristo cósmico e, mais tarde, se personalizou em Jesus, no qual "o Verbo se fez carne". Nesta forma individualizada é que o espírito universal de Deus é chamado o Cristo, isto é, o Ungido, aquele que foi totalmente penetrado do espírito divino.
O texto grego do primeiro século usa a palavra profunda e sublime da filosofia antiga "Lógos" (isto é, Razão, ou Espírito) para designar o espírito divino encarnado em Jesus. A tradução latina da Vulgata diz "Verbum", isto é, Palavra ou Verbo, como a mais concreta manifestação da Razão ou do Espírito.
Entretanto, esse mesmo Cristo, individualizado em Jesus, depois de terminado o seu ciclo terrestre, se ia universalizar no Espírito Santo.
Deus, em si mesmo, é "in-nato" (não nato, não individualizado).
Jesus Cristo é "intra-nato" (nascido para dentro do mundo individual).
O Espírito Santo é extra-nato (nascido para fora, universalizado através de toda a natureza do cósmico) [6].
- [6] A língua alemã presta-se admiravelmente para clarificar esta verdade: Gott ist un-geboren.
Christus ist ein-geboren.
Der Heilige Gist ist aus-geboren.
Em última análise, Deus, Jesus Cristo e o Espírito Santo são uma e a mesma realidade. Apenas as suas funções são diferentes.
Como pessoa física não podia Jesus estar com seus discípulos todos os dias até à consumação dos séculos – como o Cristo universalizado ele podia.
Por isto, ele se despersonalizou pela morte (assim como se havia personalizado pela encarnação).
Essa universalização do Cristo e consequente onipresença no tempo e espaço teria sido impossível se ele permanecesse aquele Jesus personal e de presença uni-local; porquanto a ubiquidade supõe a universalidade. Se ele não se despersonalizasse e universalizasse, poderia estar num só lugar e nunca poderia realizar o que exprimiu com as palavras: "Onde quer que dois ou três estiverem reunidos em meu nome, lá estou eu no meio deles"; ou então: "Ide pelo mundo inteiro – e eu estou convosco todos os dias até à consumação dos séculos. " Isto implica universalidade, onipresença.
Quando os discípulos estavam tristes com a próxima retirada do Mestre, disselhes ele: "Convém a vós que eu me vá, porque, se não for, não virá a vós o Espírito Santo; porque ele tomará do que é meu e vo-lo anunciará. " O Jesus da Palestina tornou-se o Cristo do universo.
O Jesus visível do primeiro século tornou-se o Cristo invisível de todos os séculos.
Ora, em véspera desse novo modo de ser, e para simbolizar essa sua despersonalização pela morte e universalização pela ressurreição, recorre Jesus a um símile tão profundo que até hoje os homens eruditos não o compreenderam e forjam interpretações segundo a imagem e semelhança do seu estado mental.
Que acontece quando ingerimos algum alimento, sólido como o pão, líquido como o vinho? O nosso organismo absorve ou assimila, não o alimento em sua constituição material; mas desintegra a matéria dos alimentos e dela extrai as "calorias" ou energias vitais. Essas calorias ou energias não são a matéria do alimento, mas a força imponderável neles contida; não o corpo, mas a alma da comida.
Para que o nosso organismo vivo possa vitalizar esses alimentos, é necessário que primeiro os destrua e desintegre – digamos, "mate" – o alimento, reduzindo-o a seus últimos componentes porque só nesse estado de total desintegração, ou "morte" é que o alimento pode ser reintegrado e revivificado pelo organismo e fazer parte integrante dele. Essa integração do alimento mineral, vegetal ou animal no organismo humano é uma espécie de "ressurreição" ou ressurgimento. O alimento "morreu" para o seu antigo estado mineral, vegetal ou animal – e "ressuscita" para um novo estado no organismo do homem. Por mais estranho que pareça, as calorias dos alimentos assimilados passam a fazer parte real do nosso Eu. De fato, no estado atual da nossa existência, não podemos pensar e querer sem o auxílio das calorias extraídas do alimento material. Nenhum alimento pode ressuscitar para essa vida superior sem que primeiro morra; para se universalizar em nosso corpo deve primeiro desindividualizar-se.
A integração supõe a desintegração.
Ora, Jesus, que possuia profunda intuição dos segredos da natureza, serviu-se deste fenômeno material para simbolizar uma realidade espiritual: ele, Jesus de Nazaré, não podia entrar na alma de seus discípulos sem que primeiro se desintegrasse pela morte voluntária a fim de se integrar em nós como o Cristo onipresente. Por isto, tomou ele nas mãos o pão e disse a seus discípulos que aquilo era como seu corpo, porque, ingerido por eles, faria parte deles; de modo análogo, o seu corpo, entregue à morte, se espiritualizaria de tal modo que partilharia da onipresença do espírito; o Jesus humano passaria a universalizar-se como o Cristo divino. O mesmo aconteceria com o vinho, símbolo de seu sangue, que, uma vez derramado pela morte, passaria a se universalizar para que os seus discípulos o pudessem assimilar espiritualmente. "A carne de nada vale – o espírito é que dá vida; e as palavras que vos tenho dito são espírito e são vida".
A Eucaristia, ou Ceia do Senhor, é, pois, a mais profunda e significativa parábola mística da morte e ressurreição de Jesus Cristo e é neste sentido que ele incumbe os seus discípulos de perpetuarem esse memorial, "até que ele venha", como diz São Paulo. Até que ele venha espiritualmente, porque materialmente já veio. Depois da vinda espiritual do Cristo cessa o simbolismo material, porquanto o símbolo físico encontrará o seu cumprimento no simbolizado metafísico.
A Eucaristia é para os viajores infantis, não para os adultos. Para estes, o Cristo já veio definitivamente; eles fizeram a comunhão crística.
Este sentido metafísico-místico da Eucaristia pode ser aplicado também no sentido ético, resultando na seguinte verdade profunda: Enquanto o homem não se "desintegrar" ou "despersonalizar", isto é, enquanto não deixar de ser egoísta e egocêntrico, não pode beneficiar a seus semelhantes, porque não é bom, e só pode fazer bem aquele que é bom. Só quando "morrer" para o seu Ego personal, físico-mental – sua cobiça, luxúria e orgulho – é que ressuscitará para o seu verdadeiro e divino Eu espiritual, que é essencialmente altruísmo, amor, benevolência universal.
O divino Mestre exprime esta grande verdade nos seguintes termos: "Se o grão de trigo não morrer ficará estéril; mas, se morrer, produzirá fruto abundante. " O apóstolo Paulo afirma de si mesmo: "Estou crucificado para o mundo, e o mundo está crucificado para mim. . . Morro todos os dias, e é por isto mesmo que vivo, mas já não sou eu que vivo – é o Cristo que vive em mim. " Quem não se desintegrar não se pode integrar.
Se a Eucaristia fosse compreendida e vivida deste modo, seria ela uma verdadeira "sagrada comunhão", uma união diária e permanente com Deus – em vez de ser apenas um rito sacramental, para uns e uma fonte de renda para outros.
Talvez nenhuma outra palavra e parábola de Jesus tenha sido tão mal compreendida e tão sacrilegamente profanada como este mistério máximo do seu Evangelho, eterno memorial da sua morte e ressurreição.
Quando farão os cristãos a sua sagrada comunhão com o Cristo – em espírito e em verdade?. . .
Se aceitarmos a doutrina tradicional de certa igreja sobre as ocorrências na última ceia; se aceitarmos ter Jesus celebrado a primeira missa, ordenado sacerdotes os 12 apóstolos e ter dado a primeira comunhão a eles, seremos obrigados a aceitar os maiores absurdos e as mais revoltantes blasfêmias.
Logo após a suposta primeira missa, um dos neo-sacerdotes e neocomungantes consumou o plano da traição, e logo depois se suicidou; outro neo-sacerdote e neo-comungante negou três vezes o divino Mestre, mentindo e jurando que não o conhecia e rogando pragas sobre si mesmo, se é que era discípulo dele; os outros neo-sacerdotes e neo-comungantes fugiram covardemente, deixando Jesus entregue a seus inimigos.
Se é pelos frutos que se conhece a árvore, então não é possível aceitarmos como autêntica uma árvore que tais frutos produziu. Logo, não é possível aceitar a suposição teológica de ter Jesus celebrado a primeira missa, ordenado os primeiros sacerdotes e ter dado a primeira comunhão a seus apóstolos, na santa ceia.
Tudo isto não passava de uma maravilhosa parábola, cujo significado espiritual se cumpriu na manhã do Pentecostes, quando 120 pessoas, homens e mulheres, comungaram realmente, não a carne e o sangue do Jesus humano, mas o espírito do Cristo divino, em espírito e em verdade, iniciando o verdadeiro cristianismo sobre a face da terra. "QUEM NÃO É POR MIM É CONTRA MIM" Na "Divina Comédia" de Dante ocorre uma cena não menos estranha que mística. O poeta e seu mentor, Virgílio, chegam às portas do Inferno. Diante da lúgubre entrada dos ínferos encontram enorme multidão de seres amorfos e anônimos, espécie de vultos nebulosos e moluscoides, de contornos indefinidos. Pergunta Dante:
– Quem são esses?
Responde Virgílio:
– "Estas são as almas que viveram sem censura nem louvor; não as acolheu o céu, para que não lhe empanassem o brilho; nem as engoliu o inferno, porque não eram dignas dele. . . Olha – e passa adiante!" É esta a imensa multidão dos homens moralmente indefinidos, nem frios nem quentes, porém mornos, que vivem ou vegetam sem censura nem louvor, entre o céu e o inferno, nas lúgubres penumbras da sua melancólica neutralidade. "Porque tu não és nem frio nem quente, mas morno – diz o espírito, no Apocalipse – vomitar-te-ei da minha boca!" A humanidade está repleta dessas almas amorfas, anônimas, penumbrais, indecisas entre o bem e o mal.
Quando Pilatos estava sentado no tribunal, naquela memorável manhã da primeira sexta-feira santa, envolvido no ruidoso processo contra Jesus, ainda indeciso – de súbito aparece um mensageiro enviado pela esposa do governador romano, Cláudia Prócula, entrega-lhe um recado, que dizia: "Nada tenhas que ver com esse homem justo, porque esta noite, em sonhos, sofri muito por causa dele. " Seguiu-se um momento de silêncio e suspensão. Depois, Pilatos mandou vir água, lavou as mãos diante do povo e declarou em público: "Eu sou inocente do sangue desse justo! vós lá vos avinde!" E proferiu a sentença de morte contra Jesus: "Seja crucificado!" Assim acabou a pretensa neutralidade de Pôncio Pilatos e Cláudia Prócula, esse casal de almas amorfas e indecisas. . . "Quem não é por mim é contra mim". . .
Em teoria, pode haver neutralidade; mas na prática é impossível: ninguém pode pairar indeciso e incolor entre o bem e o mal; se não favorece o bem favorece o mal, mesmo que se diga neutro. A neutralidade é profundamente má, e tanto maior é o mal que ela causa quanto menos parece ser má, e dificilmente se converte para o bem. Quem é frio, isto é, conscientemente mau, pode tornar-se quente, conscientemente bom; mas quem é morno, neutro, dificilmente se convence de que é mau, uma vez que ninguém lhe pode provar um mal determinado que tenha cometido. O mal que os neutros praticam é, sobretudo, a omissão do bem que deviam praticar – mas quem pode fazer da omissão um argumento e uma prova palpável contra o omissor? Como vivem sem censura nem louvor, esses seres furta-cores são praticamente inacessíveis a qualquer demonstração contrária à sua atitude nebulosa e penumbrista.
A mulher de Pilatos teve, naquela noite, uma visão estranha, que a fez sofrer muito e lhe deu a certeza de que o Nazareno era inocente. Mas, em vez de tomar atitude positiva a favor de Jesus e mandar dizer categoricamente ao marido: "Absolve de vez esse homem, porque ele é inocente!" ela pede covardemente que abra mão do processo, indeciso, e entregue o Nazareno aos caprichos da sinagoga hostil; convida o esposo à neutralidade. E Pilatos, externamente, atende ao pedido da esposa, lavando as mãos perante o povo e declarando-se não responsável pelas consequências da sua pretensa neutralidade.
E assim acabou nas sangrentas alturas do Calvário essa farsa duma neutralidade impossível entre o bem e o mal – acabou com a vitória do mal sobre o bem. . . "Quem não é por mim é contra mim. "
Certo dia, foi Jesus convidado ao jantar por um rabino judeu, de nome Simão.
Esse homem era ao mesmo tempo pró e contra Jesus, isto é, neutro. Convidou Jesus ao jantar, porque, como colega daquele outro rabi que chegara à cidade, mandava o bom-tom que o convidasse; mas intimamente era contra Jesus, porque sua doutrina não harmonizava com a teologia da sinagoga. E, nessa estranha dualidade de sentimentos, o fariseu não demonstrou ao Nazareno nenhuma das costumadas cortesias que a hospitalidade reclamava, nem sequer lhe ofereceu uma bacia com água e uma toalha para lavar e enxugar os pés empoeirados, depois de tirar as sandálias, que, segundo a praxe, ficavam fora da casa. O fariseu não quis ser nem bom nem mau para com seu hóspede; tentou guardar neutralidade, equilibrar-se entre o céu e o inferno, na dúbia penumbra daqueles que "vivem sem censura nem louvor".
Aparece então uma mulher que acabava de sair do inferno, recém-liberta de "sete demônios", e arromba decididamente as portas do céu, caindo aos pés do seu redentor como uma tempestade de fogo e amor. Essa não era neutra. Não quer saber se é bem-vinda nessa casa ou indesejável; o que ela quer é dar expressão pública à sua grande gratidão e a seu grande amor para com o Mestre que a salvara do inferno. E, nesse ímpeto de entusiasmo, supre a tempestade de fogo tudo que o morno rabino havia deixado de fazer: lava os pés do Mestre, não com a frieza impessoal da água, mas com o fluido quente e pessoal das suas próprias lágrimas; enxuga os pés do Mestre, não com alguma toalha fria e impessoal, mas com a sedosa maciez e eminentemente pessoal da sua linda cabeleira. Depois de limpos e enxutos, beija esses pés queridos do bom pastor e unge-os com perfumosa essência, cujo odor encheu a casa toda.
Todos estão escandalizados: o fariseu, os discípulos e o futuro traidor, Judas.
O fariseu, lá na sua torre de marfim de impecável legalidade, não compreende como um homem decente possa permitir e aceitar a apaixonada homenagem de uma mulher impura, oferecer-lhe os pés para beijos de amor em vez de lhe dar um pontapé de desprezo. Os discípulos acham que aquilo é desperdício.
Iscariotes arvora-se logo em advogado da pobreza e calcula de relance que aquele frasco de perfume precioso valia pelo menos trezentos denários, que se poderiam ter distribuído entre os pobres; acrescenta, porém, o evangelista, como que entre parêntesis, não era porque lhe interessassem os pobres, mas porque Judas era ladrão e, portador da bolsa, da turma, surripiava o que entrava.
O único que aprova integralmente a atitude da Madalena é Jesus.
Na casa do fariseu Simão estava condensada a humanidade de todos os tempos e países: o céu de Jesus e Madalena, o inferno de Judas, e aquela zona anônima dos semi-bons e semi-maus representada pelo fariseu e pelos onze discípulos de Jesus – ao que não eram dignos do céu nem do inferno. . .
Em certa ocasião, um jovem declarou a Jesus que estava disposto a segui-lo aonde quer que fosse. Jesus, porém, o repeliu com as palavras: "As raposas têm cavernas e as aves do céu têm ninhos – mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça. " E o candidato, aparentemente positivo, mas realmente neutro, desapareceu, porque não se sentia assaz, decidido a ser mais pobre que as raposas e as aves. . .
Outro quis seguir o Nazareno, mas pediu permissão para primeiro voltar à casa e celebrar uma festa de despedida – ao que o Mestre lhe declarou categoricamente: "Quem lança mão ao arado, e olha para trás não é idôneo para o reino de Deus. " E também este candidato indeciso desapareceu do cenário. A sua atitude não era resolutamente a favor do bem, e por isto não era esse homem idôneo para o reino de Deus. "Quem não é por mim é contra mim – quem não recolhe comigo, dispersa". . . "ENQUANTO ORAVA, TRANSFIGUROU-SE DIANTE DELES" Três discípulos seletos – Pedro, Tiago e João, o "círculo esotérico" do colégio apostólico – presenciaram o misterioso fenômeno da transfiguração de Jesus.
Os outros nove ficaram ao pé do monte, como, mais tarde, ficaram fora do horto de Getsêmane para não assistirem à agonia do Mestre. Só quem viu tamanha glória pode suportar tamanha inglória. . .
Era ao pôr do sol quando os quatro atingiram o cume do Tabor, que quer dizer "altar". Distanciou-se dos discípulos o Mestre e entrou numa intensa comunhão com Deus. Enquanto orava, diz o evangelista, mudou-se a expressão do seu semblante. O seu rosto era brilhante como o sol, e as suas vestiduras eram brancas como a neve, resplandecendo com tanta alvura como nenhum lavandeiro da terra as poderia branquear. Ergueu-se aos ares, e apareceram ao lado dele Moisés e Elias, falando com ele sobre a morte que ia padecer em Jerusalém. E uma voz soou dizendo: "Este é meu filho muito querido, no qual pus a minha complacência! Ouvi-o!" As trevas da noite envolvendo a terra – as glórias do céu iluminando os espaços. . .
Moisés, o grande legislador; Elias, o exímio profeta – todo o Antigo Testamento homenageando o iniciador da Nova Aliança. . . A inteligência e o coração, sintonizados com a suprema Razão, o divino Lógos, o Cristo de ontem, de hoje e de sempre. . .
E no meio dessas glórias fala-se em sofrimento e morte. . .
E lá embaixo, os três discípulos, ainda presos no mundo dos sentidos, caem como que fulminados pelos esplendores do Cristo, que por uns momentos permitiu que a luz da divindade rompesse pelo invólucro opaco da sua humanidade.
– "Senhor! – exclama Simão Pedro – que bom que é estarmos aqui!. . . Se quiseres, vamos armar aqui três tendas, uma para ti, uma para Moisés e uma para Elias. . . " Três tendas para os três que não necessitavam de tendas – e esqueceu-se dos três que ainda tinham mister habitar em tendas terrestres. . .
Mas não sabia o que dizia, de tão transido de terror e de gozo. . . Só sabia que felicidade reclama eternidade, profunda, profundíssima eternidade. Felicidade que não seja eterna não é felicidade, é tormento. A perspectiva do fim do gozo deita gotas de absinto na beatitude. . .
Orar, como já dissemos, quer dizer literalmente "abrir a boca", abrir a consciência rumo ao Infinito.
Por via de regra, a luz do mundo, que é o Cristo, estava encoberta pelos invólucros opacos da natureza humana de Jesus. Nessa personalidade habitava toda a plenitude da Divindade; mas o Cristo-lógos, ao encarnar na pessoa humana de Jesus se havia esvaziado dos esplendores da Divindade, e, por fora, parecia simples homem. Por dentro desta humanidade, porém, continuava a existir a luz da Divindade.
Só de vez em quando permitia Jesus que o seu Cristo-luz transparecesse através do seu Jesus-matéria. E isto acontecia quando a sua consciência crística atingia a mais alta voltagem de intensidade, como aconteceu no monte Tabor, quando ele estava em profunda e prolongada sintonização com a Divindade. Então a matéria do seu corpo humano se desmaterializou e lucificou a tal ponto que a materialidade do seu corpo não era mais perceptível, e todo ele era uma deslumbrante figura de luz. Os evangelistas não encontram termos para descrever essa luminosidade de Jesus; dizem que era tão luminoso como o sol meridiano em pleno fulgor; dizem que as suas vestimentas eram tão alvas como nenhum lavandeiro poderia alvejar uma roupa.
Moisés escreveu que no primeiro período da creação Deus fez a luz, e da luz vieram todas as coisas materiais. Cerca de 3. 500 anos depois desta intuição de Moisés, escreveu Einstein que a matéria prima do Universo, os 92 elementos da química, são luz.
Mas além da luz física existe a luz metafísica, que a ciência ignora, mas que a sapiência conhece por intuição.
A luz metafísica é a consciência do Eu divino no homem. Quando o homem atinge o zênite da consciência "Eu e o Pai somos um", então a própria matéria do seu corpo começa a lucificar-se aos poucos. Por vezes, essa luz metafísica se manifesta fisicamente em forma duma aura, ou auréola, ao redor da cabeça.
Outras vezes, essa luz envolve todo o corpo do homem. Por vezes, essa luz neutraliza a gravidade natural do corpo, fazendo o homem flutuar livremente no espaço. Estes fenômenos ocorreram no monte Tabor durante a transfiguração do corpo de Jesus. E os três discípulos Pedro, Tiago e João presenciaram este fenômeno e foram por ele a tal ponto penetrados que perderam a sua consciência humana normal, e Pedro exclamou: "Que bom que é estarmos aqui. . . vamos armar aqui três tendas. . . uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias. . . ".
No Tabor, a irradiação luminosa de Jesus alargou os seus círculos ao ponto de envolver os discípulos que estavam a certa distância. E o envolvimento e a penetração da luz metafísica de Jesus deu aos três uma espécie de cosmovisão, de maneira que eles viram também os corpos imateriais de Moisés e Elias, esses dois dos quais afirmam os livros sacros que não haviam morrido, mas tinham transformado o seu corpo material num corpo imaterial.
E, estranhamente os três transfigurados falavam da próxima desmaterialização ou morte do corpo de Jesus.
Jesus, porém, ao descer do Tabor proibiu os seus discípulos de falarem do ocorrido, até que tivessem presenciado a rematerialização do corpo de Jesus.
O homem profano não pode compreender semelhante fenômeno, que a luz metafísica do espírito tenha poder sobre a física da matéria.
Toda a vez que o homem "ora" de fato, abrindo a sua consciência rumo ao Infinito, aumenta ele a sua lucificação potencial. Orar é a mais importante realidade da religião.
Muitos falam de Deus.
Alguns falam com Deus.
Poucos sabem calar-se diante de Deus para que Deus lhes possa falar – poucos sabem orar. "NEM EM ISRAEL, ENCONTREI TÃO GRANDE FÉ" A palavrinha "fé" (fides, pistis) tem, hoje em dia, dois sentidos totalmente diferentes e divide a humanidade espiritual em dois campos. O que, comumente, se chama fé em nossos tratados teológicos e livros devocionais é a aceitação de uma doutrina ou realidade espiritual em virtude do testemunho de uma pessoa considerada competente e fidedigna. O crente crê numa determinada doutrina ou realidade, embora não tenha dela a menor experiência espiritual, direta; encampa cegamente a experiência alheia. O crente continua a ser um "profano" ou "exotérico", aceitando, porém, a experiência de um "iniciado" ou "esotérico".
Para que essa espécie de fé seja razoável, supõe-se tacitamente que, pelo menos, uma pessoa tenha tido experiência direta e imediata da realidade espiritual. Se não existisse no princípio dessa longa cadeia de crentes pelo menos um iniciado ou experiente, não teria valor toda essa subsequente série de elos de crença dos inexperientes.
A fé, tomada neste sentido, como se vê, está baseada num ato de boa vontade: o crente ignora pessoalmente a existência de um mundo invisível;
contudo, benevolente como é, admite a realidade do mesmo, porque fulano ou sicrano lhe afirmam a existência desse mundo; e o crente admite que esses seus mestres não se tenham enganado nem o queiram enganar.
É esta a fé que, geralmente, se descreve nos livros religiosos. Cremos em Deus e na vida eterna, porque os profetas da lei antiga, os grandes gênios religiosos da humanidade e, sobretudo, Jesus o Cristo afirmam que Deus existe e há uma vida eterna.
Entretanto, essa "fé em segunda mão" pouco ou nada tem que ver com o que Jesus proclama como fé. O caso do centurião romano de Cafarnaum ilustra tipicamente o que o Nazareno entendia por fé. Afirma ele que nem mesmo em Israel, entre o povo e os sacerdotes oficialmente religiosos, encontrou tão grande fé como no coração desse oficial gentio.
Será que o centurião cria em algum determinado dogma ou doutrina teológica?
Será que admitia a realidade do mundo invisível pelo fato de outros lhe terem contado da existência desse mundo?
Não, nada disto acontecia com centurião. Não tinha fé neste sentido derivado.
O que ele tinha era experiência direta e imediata do mundo das forças invisíveis, como claramente revelam as suas palavras e como dá a entender a entusiástica exclamação de Jesus. Como o próprio Cristo possuía em altíssimo grau essa experiência direta de Deus, essa fides, ou fidelidade, deve ele ter encontrado uma espécie de afinidade espiritual entre si e o oficial romano.
Acha desnecessário que Jesus vá à casa dele, onde jazia de cama seu servo doente; sabe por experiência íntima que o poder de Jesus não está limitado à esfera da sua presença física, visível; sabe que o Cristo, o eterno Lógos, o Verbo que encarnou em Jesus, é onipresente, presente também lá onde jaz seu servo doente, porque a presença e atuação do Cristo não depende de tempo e espaço; é universal, uma vez que o próprio espírito, de Deus, é a vida que tudo permeia, a luz que ilumina todo homem. Basta, portanto, que o Jesus humano, de presença local e restrita, apele para o seu Cristo divino, de presença universal e irrestrita, imanente em tudo, apesar de transcendente a tudo.
Por isto, diz o centurião, não é necessário que tu, o Jesus visível e físico, vás à minha casa para curar o meu servo; cura-o daqui mesmo onde estás, apela para o Verbo que em ti está, porque o teu divino Cristo, onipresente, está presente lá onde meu servo jaz em tormentos.
As traduções comuns deste episódio fazem o centurião romano dizer: "Dize tão somente uma palavra, e meu servo será curado. " Mas, tanto no texto grego do primeiro século como também na tradução latina está: "Dize ao verbo" (Logô, Verbo, e não Logon, Verbum); a palavra Verbo está no dativo, e não no acusativo, supondo que seja um ser consciente, e não uma palavra inconsciente. Como se poderia falar à palavra, ao Verbo, se se tratasse duma coisa inconsciente, de uma simples vibração aérea?
E que motivo teria a grande admiração de Jesus, se o centurião romano se referisse apenas a essa espécie de magia ritual, a cura de seu servo mediante uma telepatia verbal?
Para ilustrar essa sua fé experiencial, recorre o oficial romano a uma comparação não menos misteriosa do que genial; diz que sua autoridade de superior militar faz com que seus subordinados executem imediatamente qualquer ordem recebida – do mesmo modo, quer ele dizer, a moléstia de meu servo obedecerá infalivelmente a uma ordem do Cristo, uma vez que todas as forças da natureza veem no Cristo a mais alta manifestação de Deus, a que tudo presta obediência.
O centurião vê o Jesus visível – e tem fé no Cristo invisível, ou antes, sabe por uma experiência íntima que esse Cristo, visível em Jesus, ultrapassa todas as fronteiras dessa presença visível, podendo, pois, agir a qualquer distância do Jesus visível.
O centurião é, sem dúvida, um dos grandes videntes e místicos do Evangelho.
Sabe por vivência própria o que outros admitem apenas por uma crença alheia.
É por isto que Jesus se enche de viva admiração e grande entusiasmo em face das palavras e da atitude do oficial romano. Nunca, nem mesmo entre os eruditos teólogos da sinagoga de Israel, encontrara ele uma experiência espiritual dessa pureza, profundidade e amplitude.
A teologia de nossas igrejas está marcando passo, há quase dois mil anos, no mesmo ponto em que se achava a teologia da sinagoga, no tempo de Jesus.
Quando Jesus interroga aos mestres de Israel: "Que vos parece do Cristo?" respondem com uma afoiteza só comparável à sua grande ignorância: "É filho de David. " Ao que Jesus lhes faz ver que o próprio David, cerca de mil anos antes do nascimento de Jesus chama o Cristo "meu senhor"; se, pois, é seu "senhor", como é que é seu "filho"? E nenhum dos eruditos teólogos soube dar resposta a essa pergunta. É que identificavam o Jesus humano com o Cristo divino, o veículo visível com o conteúdo invisível.
Quase o mesmo acontece aos nossos dias! A expressão "Jesus Cristo" – em vez de "Jesus, o Cristo" – não permite aos nossos mestres solver o problema.
A ideia de que o divino Lógos, que a princípio estava com Deus e que era Deus, possa ter estado presente no mundo muito antes que a pessoa de Jesus lhe oferecesse um canal e veículo de manifestação visível – essa ideia é rejeitada por muitos como "não ortodoxa". O quarto Evangelho afirma explicitamente que a luz do eterno Lógos "ilumina a todo homem que vem a este mundo", mesmo àqueles milhares e milhões que viveram antes do nascimento de Jesus e que ainda hoje vivem sem jamais terem ouvido proferir este nome. A presença e atuação do Cristo eterno e onipresente não está necessariamente ligada à presença ou ao conhecimento de Jesus.
Só um conhecimento direto do Cristo, adquirido, não pelo estudo analítico do intelecto, mas pela intuição espiritual da razão, é que pode fazer compreender realmente o sentido profundo das palavras do centurião romano de Cafarnaum. "EU VIM PARA LANÇAR FOGO À TERRA – E QUE QUERO SENÃO QUE ARDA?" Segundo estas palavras do Mestre, o Evangelho de Cristo, o verdadeiro Cristianismo, é fogo ardente.
Fogo é luz, calor, energia.
Luz é símbolo de sabedoria, compreensão espiritual.
Calor simboliza amor, simpatia, entusiasmo.
Energia realiza praticamente aquilo que a razão compreendeu como Verdade e o coração ama como Beleza.
Nada se realiza dinamicamente que não se tenha compreendido experiencialmente e amado entusiasticamente. Compreensão e amor são as duas asas para as grandes realizações. Onde há compreensão e amor tudo é possível, nada é impossível.
Quando o discípulo de Cristo compreende o que é o Cristo e seu reino não pode deixar de amar entusiasticamente essas grandezas, porque a Verdade aparece então como Beleza, e esta Verdade compreendida pela razão e amada pelo coração como Beleza gera tão intensa Felicidade que o homem se sente irresistivelmente impelido a realizar dinamicamente aquilo que compreende e ama. Não é possível compreender a Verdade como Beleza e amar a Beleza como Verdade sem as transformar em realidades concretas no plano horizontal da vida. Toda mística genuína é realizadora, ativa, dinâmica. O verdadeiro místico é necessariamente dinâmico, porque se sabe invulnerável e sempre vitorioso no essencial, embora nos secundários, nos resultados externos e palpáveis, pareça, por vezes, derrotado; ele sabe que é absolutamente inderrótavel, e isto lhe dá irresistível coragem e intrepidez em todas as suas realizações em prol do reino de Deus.
Enquanto a Verdade é apenas entendida, perifericamente, pela luz fria da inteligência, ela não atrai, não fascina, porque parece vaga, longínqua, incolor, teórica, austera, uma espécie de região polar, um vasto campo de neve e gelo palidamente iluminado pela luz fria e fantástica da lua. Mas logo que a Verdade passa a ser compreendida vitalmente pela razão, ela adquire cores, vida, beleza – e fundem-se então numa só realidade a Verdade e a Beleza. E em face desse consórcio do verdadeiro e do belo, o homem se sente empolgado por uma força metafísica de possuir a Verdade e gozar a Beleza do reino de Deus – e logo todas as coisas da vida presente, mesmo as que pareciam difíceis, se tornam fáceis e deleitáveis; o jugo amargo da disciplina se torna suave, e seu peso se torna leve. "A verdade – disse Mahatma Gandhi – é dura como diamante e delicada como flor de pessegueiro. " "Eu vim para lançar fogo à terra – e que quero eu senão que arda?"
O culto do fogo e da luz é antiquíssimo. Se há uma idolatria desculpável, é esta a mais desculpável de todas: a adoração do sol, e, em geral, do fogo e da luz.
Em todos os tempos, o homem sentiu ou adivinhou obscuramente o que os cientistas da Era Atômica acabam de provar claramente: que a luz é a base de todas as coisas do mundo físico. Hoje em dia, sabemos que os 92 elementos do sistema periódico da química não são outras tantas realidades distintas, senão apenas 92 manifestações várias de uma e a mesma realidade fundamental, que Einstein e outros entendidos em física nuclear chama "luz", confirmando cientificamente o que o autor de Gênesis já sabia intuitivamente quando escrevia: "No primeiro dia Deus creou a luz". E desta luz, segundo Moisés e Einstein, nasceram todas as outras coisas, energias e matérias, do universo físico. A luz é a mãe de todas as coisas. Todas as coisas são lucigênitas, filhas da luz. A matéria é "energia congelada", e as energias são "luz condensada". Quanto mais condensada é uma coisa, tanto mais material;
quanto menos condensada, tanto menos material. A luz possui condensação mínima, e, por isto, expansão máxima, isto é, presença; a luz possui onipresença no plano do universo material; ela é imanente em todas as coisas e todas as coisas são feitas de luz, lucigênitas. A luz é a mais imaterial de todas as coisas materiais, e, por isto mesmo, o mais perfeito símbolo da Divindade. Em todos os livros sacros da humanidade Deus é comparado à luz: "Deus é luz, e nele não há trevas. " "Eu sou a luz do mundo, quem me segue não anda em trevas. " Quando Jesus diz que veio lançar luz à terra, afirma simbolicamente que veio permear do espírito de Deus todas as coisas do mundo de Deus. Esse espírito divino, é verdade, já existe no mundo, porque está imanente em todas as coisas, também no homem, porquanto Deus é aquele Ser "no qual vivemos, nos movemos e temos o nosso ser", como Paulo de Tarso disse aos filósofos de Atenas.
Mas, falta que esse espírito de Deus presente e imanente em todas as coisas se torne consciente, plenamente consciente, no homem. A luz do divino Lógos, como diz o quarto Evangelho, "ilumina a todo homem que vem a este mundo";
mas nem todos os homens são conscientes dessa luz do Cristo interno;
somente "àqueles que o recebem dá-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus". Somente aqueles nos quais o Cristo potencial e latente se torna um Cristo atual e manifesto "renascem pelo espírito" e "podem ver o reino de Deus".
Não basta que o fogo de Cristo esteja presente em cada homem; é necessário que "arda", que se atualize, que se torne consciente e permeie toda a vida do homem.
Toda lenha, e qualquer outro combustível, é fogo potencial; mas só arderá quando um fogo atual dele se aproximar e atualizar o fogo potencial latente no combustível. Uma vez iniciada a ignição – mesmo por uma chama pequenina de fogo atual – estabelece-se a misteriosa "reação em cadeia": um fogo atual atualiza o fogo potencial, seu vizinho, e esse, devidamente atualizado, atualiza o combustível mais próximo, e assim por diante, até se estabelecer imenso incêndio de fogo atual. E este continuará sem cessar enquanto houver material combustível, isto é, fogo potencial capaz de ser atualizado.
Basta que uma única alma humana desperte para a realidade do seu Cristo interno, que é o Cristo eterno – e logo se inicia um novo incêndio cósmico, que vai alastrando, empolgando outras almas em gestação espiritual, e todas, atingidas pela mesma luz, dão à luz o Cristo latente nelas – e a "reação em cadeia" prossegue, interminável, iluminando e acalentando as almas do mundo inteiro, até que o reino de Deus seja proclamado por toda parte.
Onde quer que exista uma alma humana capaz de ignição espiritual, uma alma em estado adiantado de gestação crística, lá se operam estupendas maravilhas. De nada valem organizações impessoais, jurídicas, burocráticas, sociais, por mais perfeitas e bem excogitadas, se lhes faltar uma pessoa humana, um Eu, uma alma viva; porque não são as coisas, mas tão-somente as almas que podem iniciar e propagar esse divino incêndio; as coisas não são incendiáveis em si, não podem "pegar fogo"; isto é privilégio das pessoas, das almas humanas. É, pois, trabalho perdido querer promover movimentos de "reavivamento" por meio de organizações eclesiásticas ou técnicas burocráticas. Esse material não é combustível, e o fogo do Cristo não vai romper em viva chama nas coisas impessoais. É necessário e suficiente que haja pelo menos uma alma incendiável – algum Paulo de Tarso, algum Francisco de Assis, algum Sundar Singh, algum Mahatma Gandhi, algum Albert Schweitzer, ou outra alma disposta a fazer nascer dentro de si o Cristo e depois irradiá-lo pelo mundo.
O espírito do Evangelho é essencialmente ígneo. O fogo atua extensivamente na razão direta da sua intensidade. Não pode produzir efeitos externos senão em virtude da sua causa interna. O mais esplêndido fogo artificial, pintado, não produz efeito de fogo, não ilumina, não acalenta, não tem força – ao passo que o mais humilde fogo real é irresistivelmente poderoso, quando encontra no seu caminho fogo potencial, isto é, material combustível ao qual possa comunicar a sua própria natureza. "Se tiverdes fé, ainda que seja do tamanho dum grão de mostarda, nada vos será impossível. " Se tiverdes fogo, por mais pequenino, tudo será incendiável.
O fogo artificial, apenas pintado numa tela, é uma fé crida, mas não uma experiência vivida, que é fogo real. O que apenas se crê vagamente, intelectualmente, eclesiasticamente, não é fogo real, não ateia incêndios, nem no próprio crente, nem nos outros, porque com fogo pintado não se pode atear fogo real.
O fogo que o Cristo veio lançar à terra é fogo real, vivo, dinâmico, é experiência direta e imediata de Deus, é o contato pessoal com o Cristo, é a gloriosa vivência do reino de Deus.
Naturalmente, para que esse fogo ateie incêndios é necessário que haja suficiente combustível na alma do homem. As cinco virgens tolas tentaram acender as suas lâmpadas, mas não o conseguiram, porque não havia combustível, azeite, nas mesmas – e ficaram nas trevas. O combustível é a vida ética do homem. Se esta não existir, nunca haverá luz permanente na alma. Não posso atear fogo num montão de pedras frias, nem com um pequeno fósforo, nem com uma grande tocha, porque a pedra não oferece combustível.
A moral pré-mística, difícil e dolorosa, é necessária para que possa vir a ética pós-mística, fácil e deleitável. A cruz telúrica, pesada e sangrenta, tem de preceder à cruz cósmica, leve e luminosa. Era necessário que o Cristo sofresse tudo aquilo, para "assim entrar em sua glória". "Eu vim para lançar fogo à terra – e que quero eu senão que arda?". . .
"A VIDA ETERNA É ESTA: QUE OS HOMENS TE CONHEÇAM, Ó PAI. . . " Não é possível compendiar em termos mais precisos e concisos a verdade fundamental da humanidade.
Que é que mais deseja o homem?
Existência eterna?
Não! Vida eterna.
Todas as coisas existem eternamente, sem princípio nem fim – mas nem todas têm vida eterna, isto é, a consciência do seu eterno existir.
Não há início absoluto nem fim absoluto de coisa alguma, nem de Deus nem dos seus mundos. O SER de Deus e das suas creaturas é eterno, embora, o existir dessas últimas seja temporário. Em Deus tudo é, mesmo antes de existir. Existir (de ex e sistere – estar de fora) é um efeito do SER. Antes de existirem, todas as coisas do mundo SÃO, e depois de deixarem de existir, continuam a SER, não já como indivíduos, sim como fundidos na grande Realidade Universal.
Não há creação nem aniquilamento absoluto – toda creação e aniquilamento são processos meramente relativos. Nascer é passar do estado universal para o estado individual; morrer é passar do estado individual para o estado universal.
Mas não é isto que chamamos vida eterna.
Vida eterna é a eterna consciência do Eu, a interminável perpetuação da consciência da identidade do Eu. Onde não há perpetuação da Eu-consciência não há vida eterna, embora haja existência eterna.
Vida eterna é incomparavelmente mais que existência eterna. É uma existência auto-consciente.
Não me interessa se vou ou não vou existir eternamente; interessa-me unicamente se vou viver eternamente.
O existir é comparável à luz, essa creatura inconsciente.
O viver, porém, é como que uma luz consciente.
A vida eterna não é um estado de ser, mas um processo de agir. Não é uma realidade estática, é uma realidade dinâmica. Vida não é passividade inerte, é atividade vibrante. Vida é conhecer. Vida eterna é eterno conhecimento.
Viver eternamente é conhecer eternamente. Mas, como o cognoscente é finito, e o cognoscível é infinito, jamais o cognoscente chegará ao termo final da sua jornada cognoscitiva. Por mais que conhece, sempre lhe resta infinito a conhecer. Em ponto algum da sua jornada evolutiva encontrará "luz-vermelha" na estrada, "trânsito impedido". Sempre terá diante de si a "luz verde" de "trânsito livre". Quanto mais o homem conhece a Deus, mais o deseja conhecer, porque vai "de glória em glória", como diz Paulo de Tarso.
Se o homem finito chegasse algum dia a conhecer plenamente o Deus Infinito, ou o homem se teria infinitizado, ou Deus estaria finitizado. Nenhum dos dois processos é possível. Entre o finito do cognoscente e o Infinito do cognoscíve " – ou incognoscível – vai uma distância infinita.
Nesse incessante bandeirismo do espírito, rumo a Deus, é que consiste o fascínio da vida eterna. A consecução da meta final seria morte eterna, absorção do indivíduo pelo Universal, de relativo pelo Absoluto, do finito pelo Infinito, da parte pelo Todo. Se eu me diluísse em Deus, assim como uma pequena onda se dilui no grande Oceano, não seria eu imortal, mas tãosomente Deus, porque eu não existiria depois.
O homem não dilui em Deus, mas integra-se em Deus.
Há dois sistemas filosóficos que destroem o conceito da imortalidade do homem: o materialismo, que destrói a imortalidade por deficiência – o panteísmo, que o destrói por excesso. O materialismo ensina que a alma é matéria e, como tal, se decompõe de deixa de existir como um todo. O panteísmo ensina que o homem é Deus, e, algum dia, perderá a sua individualidade no imenso nirvana do Universal e deixará de existir individualmente. Nem no materialismo nem no panteísmo há imortalidade do homem no sentido verdadeiro.
O Evangelho do Cristo, porém, não é materialista nem panteísta. Para ele, o homem individual nunca deixará de existir; a diferença entre a nossa vida individual de hoje e a nossa vida individual de amanhã está em que hoje a nossa individualidade não está permeada pela Universalidade, ao passo que, um dia, esta mesma individualidade será totalmente penetrada da divina Universalidade, assim como um límpido cristal é inteiramente permeado de luz solar, embora o cristal continue a ser o que é e sempre foi, o cristal, ele mesmo.
Não é, pois, o sujeito cognoscente que vai se diluir no objeto cognoscível, mas este penetrará de tal modo aquele que o sujeito (homem) se tornará plenamente penetrado pelo objeto (Deus). O homem cósmico se diviniza, mas não se deifica.
Só Deus é, fora dele nada é. "Eu sou o que sou", Yahveh, eu sou aquele que simplesmente é, e é com infinita necessidade.
Dizer a um profano que só Deus é, é dizer o maior absurdo. Este aparente absurdo, porém, encerra a maior das verdades.
Só Deus é – eu (o meu eu individual) não sou, eu apenas existo.
O Universal é, o individual apenas existe.
O que existe começou a existir e pode acabar de existir – mas o que é nunca poderá deixar de SER. O existir é apenas um fenômeno temporário do eterno SER.
O meu SER eterno, meu espírito, é idêntico a Deus; mas o meu existir temporário é inferior a Deus, porque é apenas uma das inumeráveis manifestações da eterna Divindade. Mas, se o meu eterno SER penetrar totalmente o meu temporário existir, também este pequeno e efêmero existir adquire eternidade, graças ao grande e eterno SER.
Todo o homem é imortal potencialmente, mas não atualmente. A imortalidade atual é uma conquista, e não um presente de berço. Essa imortalidade atual é que é a vida eterna em toda a sua plenitude.
Atualizar a sua imortalidade potencial – é esta a grande e única tarefa do homem aqui na terra. É isto que Jesus chama "renascer pelo espírito".
Esse renascimento pelo espírito, essa conquista da imortalidade atual, esse ingresso na vida eterna – como é que se realiza?
Realiza-se quando o homem, penetrando nos abismos do seu ser, descobre a sua identidade essencial com Deus, e, depois dessa descoberta, faz penetrar toda a sua vida pela luz e força dessa verdade fundamental. A primeira parte desse processo chama-se mística, a segunda parte chama-se ética. Do consórcio da mística e da ética resulta o crístico. Verdade é que também existe uma ética antes dessa mística, mas é uma ética precária, dolorosa e sem sólida garantia de perpetuidade, como tudo que é difícil e sacrificial. A ética pré-mística se chama moral. Mas a ética que nasce da mística – quer dizer, a vida oriunda da experiência da nossa identidade com Deus – é uma ética diferente daquela primeira, porque é espontânea, sem nenhuma dificuldade nem sacrifício. Deus é bom com infinita felicidade e gozo. Por isto, todo o homem que vive a sua identidade com Deus é necessariamente bom com felicidade e gozo. A ética difícil ou moral é filha de um dualismo, isto é, nasceu da ilusão de que o homem e Deus sejam duas realidades essencialmente diversas; é uma pseudo-ética que crê apenas num Deus transcendente, mas não tem experiência direta do Deus imanente. A fé num Deus transcendente torna o homem bom, mas dolorosamente bom, porque está baseada na ideia de um Deus distante, longínquo, separado do homem. Somente quando o homem ultrapassa o seu velho dualismo e verifica que o Deus transcendente e longínquo é, ao mesmo tempo, um Deus imanente e propínquo, só então é que ele entra na vivência de um grande monismo, que não nega a transcendência de Deus, mas acrescenta-lhe a imanência. À luz do meu existir dualista, Deus é apenas transcendente, porque é infinitamente maior do que esse existir, e por isto parece sempre um Deus longínquo em que se deva crer compulsoriamente; é a voz austera da lei: Tu deves! Mas quando a essa fé na transcendência longínqua de Deus se associa a vivência da sua imanência propínqua, em virtude do meu SER monista, da minha identidade essencial com Deus, então a austeridade da lei do compulsório dever se transforma na suavidade de um espontâneo querer, que é amor. E com essa experiência íntima do Deus em mim, da minha própria divindade essencial, toda amargura da moral se transforma em doçura, a amarga medicina cede lugar ao doce manjar, e o homem, assim remido, quer o que deve, executa com espontâneo amor os imperativos categóricos da lei compulsória. Quer dizer que para esse homem que passou pela experiência mística a lei passa a ser amor, o dever passa a ser querer, o difícil passa a ser fácil. Esse homem cumpre o conteúdo da lei como os outros homens bons, mas não o cumpre como eles. Cumpre o mesmo, de um modo diferente. Verifica que o jugo de Cristo é suave e que seu peso é leve; carrega com leveza as coisas pesadas, faz com suavidade as coisas amargas, estende arco-íris de sorrisos sobre dilúvios de lágrimas.
Em última análise, o verdadeiro Cristianismo não consiste em ser bom e fazer o bem – consiste essencialmente em ser perfeito, isto é, risonhamente bom e em fazer jubilosamente todo o bem que faz a seus semelhantes. A moral é como uma máquina de aço, pesadíssima; o homem tristonhamente bom, o discípulo da moral pré-mística, faz funcionar pesada e ruidosamente esta máquina pesada - mas o discípulo da ética pós-mística, o homem risonhamente bom e perfeito, faz funcionar esta pesada máquina com a leveza de um sopro, com o silêncio da luz e com a exultante felicidade do amor.
A vida eterna é, pois, uma bondade feliz, ou uma felicidade cuja plenitude transborda em torrentes de bondade.
Todo homem que, deste modo, atualiza, pela mística e ética, a sua imortalidade potencial transpõe um abismo decisivo e se liberta definitivamente do pecado e da morte metafísica.
Também, como poderia ainda pecar – isto é, desamar a Deus – quem sabe por experiência que ele e o Pai são um?
E, uma vez chegado ao conhecimento intuitivo dessa sua essencial identidade com Deus, como poderia esse homem ainda recear a morte? O temor da morte nasce do dualismo, isto é, da ignorância de que a essência do homem é idêntica a Deus. A experiência mística, sendo a suprema verdade, acaba com toda a ignorância e todo o erro sobre Deus e o homem. Verdade é que o seu existir individual poderia morrer, porque não é idêntico a Deus; mas, uma vez que esse existir individual foi totalmente penetrado pelo SER universal de Deus, segue-se que nem esse existir individual pode morrer, enquanto não se separar do SER universal. Mas, por que razão havia esse existir individual do homem de divorciar-se do SER universal de Deus? A integração do pequeno existir no grande SER é acompanhada de tão intensa felicidade que o homem nem sequer pode ter o desejo de voltar atrás, separar-se novamente do SER divino e tornar a ser infeliz como antes dessa integração. Há um caminho do ser-infeliz para o ser-feliz, mas não há caminho do ser-feliz pra ser-infeliz. Pode alguém descrer hoje do Deus em que ontem creu – mas ninguém pode amanhã ignorar o Deus que hoje sabe e saboreia por experiência íntima. Há ida e volta do crer ao descrer – mas não do saber ao não-saber. Há só ida.
"ESSA POBRE VIÚVA DEU MAIS QUE TODOS OS OUTROS" A filosofia espiritual de Jesus está em flagrante oposição à filosofia material do mundo profano. Esta trata quase só de quantidades; aquela, de qualidades.
Quantitativamente, os outros ofertantes tinham dado mais do que a viúva, que lançou no cofre apenas duas moedazinhas de cobre, cada uma talvez do valor de um antigo vintém nosso. Qualitativamente, porém, essa exígua oferta material representava gigantesco valor espiritual. Esse valor não era aferido pelo objeto, mas sim pelo sujeito.
Quando o homem profano quer dizer que uma coisa é solidamente real ele diz que é "objetiva"; se é apenas "subjetiva", tem pouca realidade, lá no seu entender. Para o iniciado, porém, o "subjetivo" é muito mais real que o "objetivo", ou melhor, o "subjetivo" é a única realidade verdadeira, ao passo que o "objetivo" é apenas uma aparência, um reflexo derivado daquele. Deus é o grande SUJEITO, os mundos dele são os pequenos objetos. O grande SUJEITO é a causa de tudo, os pequenos objetos são apenas uns efeitos efêmeros. O grande SUJEITO é, os pequenos objetos apenas existem.
Quanto mais real, e, portanto, divino, o homem se torna tanto mais subjetivo vai ficando; quer dizer, tanto mais valor ele dá à qualidade interna, e tanto menos importância dá as quantidades externas.
A pobre viúva do Evangelho possuía pouquíssimas quantidades materiais, mas uma imensa qualidade espiritual. E, como a qualidade interna dá valor às quantidades externas, Jesus afirma que ela deu mais que todos os outros, porque os outros, os ricaços quantitativos, davam muito das suas quantidades de ouro e prata, mas pouco ou nada da sua qualidade humana e espiritual, porque não a possuíam. A viúva qualitativa era uma indigente de quantidades, mas uma milionária de qualidade – ao passo que os outros eram ricos, talvez milionários em quantidades, porém indigentes em qualidade. Objetivamente ricos, subjetivamente pobres.
Esta filosofia qualitativa do sujeito é de difícil compreensão para nós, que tradicionalmente professamos uma pseudo-filosofia quantitativa de objetos.
Não compreendemos ainda que as quantidades objetivas não têm realidade autônoma, intrínseca, senão apenas realidade heterônoma, extrínseca. As quantidades objetivas são como outros tantos zeros, que, por mais numerosos, não representam valores reais, embora somados e multiplicados indefinidamente. As qualidades subjetivas, porém, são como valor positivo "1", que, anteposto aos zeros, confere valor a estes: 1000. O primeiro zero após o "1" vale dez, o segundo cem, o terceiro mil; zeros valorizados pelo "1".
Quando Jesus disse: "Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se chegar a sofrer prejuízo em sua alma?" frisou ele o valor intrínseco e qualitativo do sujeito, ou Eu humano, e o desvalor das quantidades externas do mundo.
Para quem, como ele, tem a noção nítida da realidade do valor subjetivo e da irrealidade dos valores objetivos, sabe que é grande sabedoria salvar aquele, mesmo à custa destes, e grande loucura ganhar estes perdendo aquele.
Para que alguém possa compreender essa filosofia qualitativa do sujeito e sobrepô-la à tradicional filosofia, ou pseudo-filosofia quantitativa dos objetos, requer-se que tenha experiência direta do seu próprio Eu, não desse pequeno ego periférico, físico-mental, mas do grande Eu central, racional. Em última análise, tudo depende da experiência pessoal, da vivência direta da realidade.
Ninguém sabe, de fato, senão aquilo que ele vive; e ninguém pode viver senão aquilo que ele é. De maneira que saber, viver e ser são, última análise, uma e a mesma coisa.
O homem profano, que só conhece os pseudo-valores quantitativos do plano objetivo, horizontal, nunca compreenderá o verdadeiro espírito do Evangelho, que só trata dos valores qualitativos do plano subjetivo, vertical. Só no dia e na hora em que o homem viver intimamente esses valores é que saberá o que eles são na realidade. "Quem ouve estas minhas palavras, mas não as realiza (vive), é como um homem insensato que edificou a sua casa sobre areia. Mas, quem ouve estas minhas palavras, e as pratica (vive), este é como um homem sábio que edificou a sua casa sobre rocha. " O espiritual, invisível, eterno, infinito, absoluto, universal, divino – é que é a causa de tudo que é material, visível, temporal, finito, relativo, individual, que são os efeitos derivados daquela causa, inderivada.
A filosofia cósmica é 100% realista. Verdade é que o profano pensa precisamente o contrário, mas o seu errôneo pensamento não modifica a realidade. O profano costuma apelidar de "idealistas" os realistas, porque ignora que eles são muito mais realistas do que ele. Jesus é o rei dos realistas, e o seu Evangelho é a Carta Magna do maior realismo que já apareceu à face da terra; porque reais são as qualidades, irreais as quantidades, quando não "realizadas" por aquelas, assim como os zeros são "realizados" ou "valorizados" pelo "1".
A própria física nuclear dos nossos dias vem em nosso socorro e é nossa grande aliada e auxiliadora, porque prova, matemática e experimentalmente, que tanto mais real é uma coisa quanto menos material ou quantitativa, e tanto menos real quanto mais material. A matéria visível e palpável, que é "energia congelada" é menos real que essa energia em estado não congelado.
Congelamento é passividade, descongelamento é atividade. A energia, por sua vez, é luz condensada, menos real que a luz não condensada. No mundo físico é a luz a mais real das realidades, por ser o menos material dos fenômenos do mundo físico.
No homem, a alma é mais real que a mente e o corpo; a mente é menos real que a alma, porém mais real que o corpo; o corpo é menos real que aquelas duas.
Quanto mais o homem se espiritualiza mais se realiza. Deus, sendo a suprema espiritualidade, ou o espírito absoluto, é a realidade absoluta. Quanto mais o homem se diviniza mais se realiza. O homem mais intensamente realizado que o mundo viu foi Jesus o Cristo, o "filho do homem", isto é, o homem por excelência, e, por isto mesmo, o "filho de Deus", a tal ponto divinizado que podia dizer: "Eu e o Pai somos um. " O supremo destino do homem, aqui ou alhures, é a sua auto-realização, que é idêntica à sua cristificação ou teo-realização, uma vez que a íntima essência do homem é Deus.
Se o homem se realizar a si mesmo, todas as coisas fora dele também serão realizadas, por intermédio dele. O homem é o grande sacerdote e profeta da natureza. O homem auto-relizado, ou espiritual, tem sobre a natureza um domínio muito maior do que o maior cientista ou mais hábil técnico.
Através do seu sujeito, devidamente realizado, realiza o homem os objetos muito melhor do que através dos objetos.
O modesto óbolo da viúva era um grande passo no caminho da sua autorealização, ao passo que as pingues ofertas dos outros eram apenas alorealizações. Ela realizou obra eterna, no plano vertical do seu sujeito – eles tentaram realizar obras efêmeras no plano horizontal dos objetos ao redor deles.
Por isto, ela fez mais que todos os outros.
Ela era iniciada na grande filosofia cósmica – eles eram apenas estudantes primários da pequena filosofia telúrica.
O muito que os outros davam era pouco – o pouco que ela deu era muito.
Os outros jogavam no mealheiro ruidosas quantidades de zeros, gordos, ocos, vazios – ela deitou um silencioso e imponderável "1" de qualidade – e este modesto "1" deu valor positivo aos arrogantes "000 000" negativos dos outros.
Os outros deram do que lhes sobrava – ela deu o que lhe fazia falta.
Outros deram por ostentação – ela deu com amor e humildade.
Para dar do supérfluo não se requer qualidade, basta quantidade – para dar o necessário exige-se grande qualidade.
Outros deram do seu – ela deu o próprio Eu. . .
E o Mestre, que nada tinha de seu, mas era um grande Eu, ficou encantado com o Eu da viúva, que deu o pouco que era seu – e essa migalha do seu assumiu infinito valor em virtude do Eu que a deu. . .
Todo o valor dos nossos atos depende de nossa atitude. Nenhum ato tem valor em si mesmo.
"VÓS, QUANDO NÃO VEDES OBRAS PODEROSAS, NÃO TENDES FÉ" "Dynamis" (plural "dynameis") é o termo grego do Evangelho do primeiro século para designar aquilo que nós, geralmente, chamamos milagres.
Entretanto, milagre não exprime o mesmo pensamento que "dynamis" (dynameis), que significa "força", "poder", ou, no plural, como em geral aparece, "obras poderosas", "feitos potentes". "Miraculum" (do verbo "mirari", admirar) é algo que se admira, que causa estranheza, ao passo que aquilo que Jesus realizava, as "dynameis", eram obras que revelavam um poder, uma força superior às forças dos homens.
A admiração ou estranheza provém da ignorância do espectador. Quem conhece a causa de um efeito não estranha. De maneira que, para as massas ignorantes, o que Jesus fazia eram "miracula", coisas de admirar; mas para ele mesmo eram "dynameis", obras poderosas.
Imensa literatura tem sido escrita, inumeráveis discursos, conferências e sermões têm sido proferidos sobre os chamados "milagres" de Jesus.
Muitos relegam as narrativas em torno desses prodígios ao mundo da mitologia, quer dizer, ao plano da irrealidade, das invenções ingenuamente fictícias e poéticas que acompanham a origem de muitas religiões. Os mitos pertencem à infância da humanidade. A criança não distingue nitidamente entre fato e fantasia; os contos de Grimm, Andersen, as histórias de "Mil e Uma Noites", etc. tudo isto é, para a criança, tão real como os acontecimentos de cada dia. A percepção da linha divisória entre fato e ficção pertence aos adultos, embora o conteúdo ideal de muitas ficções seja, de per si, mais real dos que os fatos que ocorrem na perceptível periferia do mundo objetivo.
Outros apelam para as forças da sugestão e hipnose, passando os "milagres" do plano objetivo dos eventos externos para o plano subjetivo de uma impressão interna. Segundo estes, Jesus não teria, por exemplo, convertido água em vinho, em Caná, nem multiplicado uns poucos pães e peixes, em Betsaida-Júlias, para fartura de milhares de pessoas esfaimadas, mas tudo isto teria acontecido unicamente no interior dos observadores; o intenso entusiasmo religioso pelo grande mestre teria sugerido ou sugestionado a tal ponto os convivas às bodas de Caná que ele julgassem sentir o gosto do melhor vinho ao beberem simples água da fonte; e as multidões no deserto se julgavam fartas quando de fato andavam de estômago vazio após o "milagre", abstração feita de uma migalha infinitesimal de pão e peixe que tivessem recebido. Também os doentes teriam recobrado saúde e forças em virtude duma magia sugestiva que partia da pessoa do Nazareno. Verdade é que, em certos casos, essa hipótese da sugestão ou autossugestão esbarra com uns sérios quês, como, por exemplo, no caso dos defuntos ressuscitados, sobretudo de Lázaro em estado de franca putrefação, bem como no caso da tempestade no lago de Genesaré acalmada pelo taumaturgo e sobretudo em face dos doze cestos de fragmentos que sobraram dos cinco pães e dois peixes – mas os defensores dessa teoria não se desconcertam com tão "pouco". . .
Há uma terceira hipótese para explicar, ou antes, eliminar dos Evangelhos os "milagres" de Jesus: a da "fraude piedosa", baseada no princípio de que o fim (bom) justifica os meios (maus). Jesus teria enganado propositadamente as massas ignorantes com milagres aparentes. Quando se objeta que um homem de acendrada pureza ética como Jesus não podia lançar mão de semelhante expediente, inético, respondem-nos os advogados dessa teoria: "Ora, não queiramos medir os gigantes com a bitola dos pigmeus!" para os super-homens não existe a suposta diferença entre moralidade e imoralidade, eles estão (para usar a frase de Nietzsche) "jenseits von gut und boes" (para além do bem e do mal); tudo é moralmente bom para quem tem em mira um fim sublime, conto esse de regeneração da humanidade, que não era possível sem o "milagre";
mas, como milagres segundo eles, não são possíveis, por serem contrários às leis da natureza, só restava ao Nazareno lançar mão de pseudo-milagres para conseguir esse grande ideal.
Tais, e outras similares, são, em síntese, as tentativas de eliminar do texto evangélico os chamados "milagres" de Jesus. Não faltou quem dissesse que, se conseguíssemos expurgar desses infelizes milagres o Evangelho, teríamos diante de nós o mais estupendo documento ético da humanidade.
Que dizer a isto?
Duas coisas, e importantíssimas, temos de responder aos inventores e adeptos dessas e de outras teorias afins:
1) Todas essas teorias partem do falso suposto de que o "milagre" seja uma exceção ou negação das leis da natureza, quando, na realidade, são a mais brilhante afirmação e confirmação dessas mesmas leis.
2) Todos os defensores dessas teorias constroem o seu edifício sobre uma base fictícia, e não sobre um fato real, admitindo tacitamente uma premissa errônea. Que premissa ou suposição é esta? É a admissão tácita de que o homem comum de hoje seja um homem definitivo em sua evolução e que homem algum possa fazer algo essencialmente diverso daquilo que nós podemos fazer.
Em outro capítulo trataremos do primeiro ponto. No presente parágrafo abordaremos tão somente o segundo ponto: o erro de supor que o homem físico-mental dos nossos dias seja o homem, em toda a sua plenitude e perfeição, quando, de fato, é um ser humano provisório e primitivo.
A fim de ilustrar e concretizar esta verdade, vamos estabelecer o seguinte paralelo: Tempo houve em que o homem primitivo, pré-histórico, não possuía inteligência suficiente para construir uma casa do tipo das nossas vivendas de hoje. Muito menos era capaz de iluminar a sua moradia com luz elétrica, colocar nela um aparelho de rádio ou televisão, ou algum dos outros prodígios da nossa ciência e técnica atuais. Se, nesses tempos remotos, tivesse aparecido no meio desses semi-homens, um homem do tipo intelectual de hoje e tivesse construído um dos mencionados aparelhos – que teria acontecido no seio daquela humanidade primitiva? De duas uma: os que não tivessem visto o tal aparelho-prodígio, negariam a realidade, provando "cientificamente" que semelhante fenômeno é impossível e, portanto, objetivamente irreal; outros, que tivessem visto aparelho, proclamariam seu autor como uma espécie de divindade ou portento sobrenatural.
Por que teria o homem primitivo assumido uma dessas atitudes?
Unicamente porque, incapaz de realizar o que esse super-homem realizara, não admitiria que um homem normal fizesse o que ele – que se considerava o único "normal" – não podia fazer.
É precisamente este o caso com os eruditos agnósticos do nosso tempo, os adeptos de todas as hipóteses expostas e outras congêneres. A sua dificuldade provém do fato de suporem o que não deveriam supor como base das suas teorias.
É deveras estranho, ou antes vergonhoso, que, em plena Era Atômica, haja homens considerados cultos, dotados de tão escasso senso de lógica que não percebam o caráter anticientífico e antirracional da sua atitude.
É evidente que o homem intelectivo de hoje não é o homem integral, definitivo.
O homem primitivo estava com os sentidos perfeitamente acordados mas o seu intelecto, embora presente, dormia ainda o sono da meia-noite; não existia ainda um aparelho nérveo e cerebral suficientemente desenvolvido e diferenciado para que a grande artista, Inteligência, se pudesse manifestar nesse instrumento. Aludindo à invisível presença da inteligência de hoje no aparelho visível do cérebro, escreve um cientista alemão, Ludwig von Schleich, estes versos, maravilhosos: "Auf den feinsten Nervensaiten Spielt ein Spielmann sein Gedicht, Wohl fuehlst du die Finger gleiten – Doch den Spielmann siehst du nicht".
A criança dos nossos dias está nas mesmas condições em que, milênios atrás, se encontrava a humanidade. Seria absurdo e anticientífico negar a natureza humana à criança pelo fato de não revelar inteligência. No entanto, sabemos que a criança humana, embora sem vestígio externo de inteligência, é um verdadeiro ser humano; nela existe a inteligência em estado potencial, dormente ou latente. A inteligência potencial é uma inteligência real, ainda que não atualizada.
O homem de hoje está muito longe de personificar o homem completo e definitivo. Somos uma "sinfonia inacabada". As nossas forças estão semiligadas. A nossa inteligência trabalha por meio de processos indiretos, sucessivos, analíticos. É necessário que desperte no homem uma faculdade que ele possui, mais ainda não desenvolveu devidamente. Assim como pelos sentidos, o homem nunca teria chegado a descobrir e utilizar a eletricidade e as energias nucleares, se nele não despertara a inteligência, da mesma forma nunca chegará o homem a sua evolução plena, se não cruzar a fronteira da inteligência para a razão.
A razão opera direta e instantaneamente, sem aparelhos, só pela força intrínseca da sua própria natureza. A razão é essencialmente uma força creadora, e é nisto que está a sua divindade ou semelhança com Deus.
Segundo Teilhard de Chardin, o homem se acha agora na noosfera, ou seja, na intelectualidade; e daí vai em demanda da logosfera, zona da racionalidade. Da perspectiva da logosfera, os chamados milagres de Jesus são perfeitamente naturais, são manifestações do poder, da potência racional do homem, em que se achava o Cristo, que, no quarto Evangelho, é chamado a razão, em grego Lógos.
Para o homem da logosfera, o que Jesus fez será tão natural como para o homem da noosfera é natural a aeronáutica, o rádio, a televisão, etc.
O Lógos no homem logoficado realizará as mesmas obras que o Lógos realizou em Jesus, como ele mesmo disse: "Vós fareis as mesmas obras que eu faço, e fareis obras maiores do que estas porque o Pai, que está em mim, também está em vós. " "SEDE INTELIGENTES COMO AS SERPENTES – E SIMPLES COMO AS POMBAS!" Que a segunda parte desta recomendação seja do Cristo, condiz com o conteúdo das nossas teologias e dos nossos devocionários; mas que também a primeira parte seja dele, isto desdiz e destoa de tudo quanto costumamos dizer, pensar e escrever sabre o Nazareno.
No entanto, poucas palavras caracterizam melhor do que estas o gênio cósmico do filho do homem e do filho de Deus. Nestas palavras, brevíssimas e imensas, vem compendiadas a história evolutiva do gênero humano de centenas de milhares de anos, do passado, presente e futuro.
Inteligência de serpente – simplicidade de pomba!. . .
A história da humanidade começou, propriamente, com o despontar da inteligência, simbolizada pela serpente. Verdade é que, antes dessa alvorada intelectual, já existia o homem, mas apenas em estado potencial, embrionário;
nesse homem pré-intelectual, meramente sensitivo, já existia, em estado latente, o homem de hoje. Nesse tempo remotíssimo, o homem era intelectualizável, como a criança intra ou extra-uterina dos nossos dias; mas não era ainda intelectualizado como hoje. A criança, embora não revele inteligência, é um verdadeiro ser humano; basta que o resto da sua evolução corra normalmente para que, a seu tempo, se revele a inteligência velada;
porquanto, o dom do intelecto (não o grau de inteligência) é, hoje em dia, um elemento universalmente transmissível de pais a filhos.
Se o homem não tivesse passado do estado sensitivo, intelectualizável, para o estado de intelectualização em que hoje se encontra, não seria possível a sua evolução ulterior, ultra-intelectual, rumo à razão, ao espírito. Assim como sem sentidos normalmente desenvolvidos não há inteligência, de modo análogo, sem uma inteligência normal, não pode haver vida racional. A natureza é progressiva, sem lacunas nem intermitências. Não quer isto dizer que o homem, para evolver rumo à razão, deva possuir uma inteligência extraordinária; basta que tenha a faculdade normal de pensar. Da mesma forma, para que um homem seja inteligente não se requer que seja fisicamente um atleta, de músculos hipertrofiados, mas que o seu organismo seja normalmente desenvolvido de tal modo que possa servir de base e veículo para ulterior evolução rumo à inteligência. Muitas vezes, a hipertrofia, quer do corpo quer do intelecto, é antes empecilho do que auxílio para o estágio evolutivo subsequente. Quem só vive para treinar o bíceps material, dificilmente terá tempo nem interesse para robustecer a inteligência; e quem só vive para cultivar a agudeza mental, raramente atingirá a zona do mundo racional.
Era indispensável que, primeiro, despontasse a "estrela d’alva", o Lúcifer (porta-luz), para que depois pudesse nascer o Lógos, a "luz do mundo".
Quando se diz ao homem comum que Lúcifer é o precursor do Lógos (Cristo), fica ele horrorizado com tão sacrílega "irreverência"; porque, para ele, Lúcifer é Satanás, o diabo em pessoa – tamanha é a confusão creada por certos teólogos inexperientes no plano da intuição racional.
Quando então um desses homens escandalizados esbarra, por exemplo, com o hino pascal "Exultet", que, no sábado de aleluia, se canta à entrada das igrejas católicas; e quando percebe e compreende as palavras: "O felix culpa!
O vere necessarium Adae peccatum. . . " – fica esse homem totalmente desnorteado.
Por que?
Porque, desde pequeno, ouviu que Lúcifer é o irreconciliável adversário de Deus; e vê-se em face dum dualismo enigmático.
Como pode haver uma "culpa feliz", como pode existir um "pecado verdadeiramente necessário
"? E como é que uma igreja ousa proclamar tão horripilante heresia?
É que, nesse glorioso hino ecoam certas vozes que se perderam no Cristianismo mais puro, que entraram na liturgia e lá estão até hoje, em contradição com o escolasticismo mental.
Naqueles tempos remotos, Lúcifer era ainda considerado como precursor do Lógos, como vemos na obra de Orígenes, do segundo século da nossa era.
Nesse tempo, Lúcifer não era simplesmente Satanás, o diabo. Lúcifer era a serpente, o intelecto virgem, não antirracional, não-satanizado, não-diabólico.
Lúcifer era a força que conduziu o homem do Éden, das trevas da inconsciência, para a luz crepuscular da consciência individual, intelectual. A "culpa" ou o "pecado" de Lúcifer não era um pecado no sentido de hoje. Lúcifer, como diz a própria palavra, era o "porta-luz", aquela faculdade do homem que o tirou das trevas do inconsciente e o levou à semi-luz do consciente. Lúcifer, a serpente, é pois, a ego-consciência personal do homem pós-edênico.
O Lógos, o Cristo, é a Razão, a consciência cósmica. Mas, como poderia aparecer essa consciência universal sem que primeiro aparecesse a consciência individual? Como poderia o homem edênico, inconsciente, cristificar-se pela consciência universal sem que, primeiro, se luciferizasse pela consciência individual? Como poderia o homem dar o último passo da sua evolução sem dar antes o penúltimo?
Quando Jesus recomenda a seus discípulos que sejam inteligentes como as serpentes, refere-se ele à consciência individual, ao Lúcifer do intelecto, que deve necessariamente preceder, na evolução cronológica o advento do Lógos.
Lúcifer sem Lógos, é o Intelecto.
Lúcifer contra Lógos, é Satan.
Lúcifer com Lógos é o Cristo, o filho do homem, o homem integral, o homem cósmico.
Lógos sem Lúcifer não existe, porque seria Razão sem Intelecto, o que é absurdo, porque a Razão necessita do Intelecto como sua base de operação.
O intelecto é o princípio da individuação consciente, a Razão é o princípio da universalização pleni-consciente.
A Razão, o Lógos, o Cristo, é simbolizado pela pomba, que não é sagaz nem agressiva como a serpente, mas mansa, meiga, pacífica.
A consciência individual, ou inteligência, tem a tendência de usar de violência física ou mental para conseguir os seus fins egoísticos – ao passo que a consciência universal, crística, é inimiga de qualquer espécie de violência, quer física quer mental. A violência mental, a sagacidade intelectual, é alheia à Razão. Onde termina o espírito da força, ali começa a força do espírito.
Essa simplicidade racional ou espiritual não implica na negação da inteligência, é ultramental, assim como o sol meridiano não nega a alvorada matutina, mas a ultrapassa em sua plenitude.
Um animal não pode passar a ser racional – mas sim um homem intelectual.
Nem pode um ser tornar-se intelectual sem passar pelo período da sensitividade.
A razão supõe o intelecto, o intelecto supõe os sentidos. A super-estrutura ergue-se sobre a sub-estrutura.
Nunca apareceu no mundo um homem mais racional e mais intelectual do que o profeta de Nazaré, no qual essas duas faculdades celebram a mais perfeita sinfonia. Nele, a inteligência da serpente estava perfeitamente integrada na simplicidade da pomba; ele é, segundo suas próprias palavras, a "serpente erguida às alturas", o intelecto sublimado pela razão, o Lúcifer que culminou no Lógos.
Quando a serpente horizontal do intelecto, pecável, é sublimada à serpente verticalizada da razão, impecável – então atinge o homem a plenitude da sua evolução, o Lúcifer da consciência individual se funde no Lógos da sua consciência universal. . .
O felix culpa!. . .
"QUANDO TIVERDES FEITO TUDO DIZEI: SOMOS SERVOS 1NÚTEIS. . . " ". . . Cumprimos apenas a nossa obrigação; nenhuma recompensa merecemos por isto. " Eis a apoteose do homem perfeito, do gênio cósmico, da creatura crística!
Quem executa pesadamente as coisas pesadas é bom – mas não é perfeito.
Quem carrega a sua cruz gemendo é bom – mas não é perfeito.
Quem verifica que o jugo do Cristo é amargo e pesado é bom – mas não é perfeito.
Só quem executa com leveza as coisas pesadas; quem carrega a sua cruz sorrindo; quem sabe por experiência íntima que a amargura da disciplina espiritual é suave e que seu peso é leve – este é perfeito.
Quem jejua desfigurando o rosto para mostrar que jejua, é um asceta tristonho e imperfeito – mas quem, jejuando, mostra semblante alegre como o mais farto dos homens, de maneira que ninguém possa suspeitar que ele está jejuando – esse é um gênio crístico, um homem cósmico.
Isto é a sabedoria do Evangelho do ocidente e do oriente, da filosofia do Cristo e da filosofia dos 5edas e da Bhagavad-Gita: "Mata o desejo de possuir, de gozar, de viver – e depois vive como os que mais desejam possuir, gozar e viver!" Quem é tristonhamente bom descobriu o corpo do Cristianismo – quem é radiosamente bom abraçou a alma do Cristianismo.
É esta a divina alquimia do Cristianismo Universal, de todos os tempos e países: transforma em leve o pesado, em suave o amargo, em sorridente o doloroso, em luminoso o escuro, estende arco-íris de paz e sorriso sobre todos os dilúvios de sofrimentos e lágrimas.
É esta a redenção do homem – redenção não só da irredenção dos seus vícios, mas redenção também da pseudo-redenção das suas virtudes. Quem ainda se considera um herói, uma heroína, pelo fato de ter cumprido o seu dever, não está redimido; a complacente consciência de ser bom impede-o de ser perfeito; o homem perfeito, depois de ter cumprido o último dos seus deveres, diz: Sou servo inútil – nenhum prêmio mereço pelo fato de ser bom;
sou bom unicamente por ter reconhecido que isto está certo, em harmonia com as leis eternas. . .
Como é possível realizar essa transformação, se não temos poder sobre os objetos a serem transformados?
Aqui é que está a ilusão fatal da humanidade de todos os tempos: queremos transformar os objetos do plano horizontal, quantitativo – em vez de transformar o Eu, o sujeito do plano vertical, qualitativo. Donde vem essa ilusão? Do nosso inveterado egoísmo, que é a lei da inércia moral: queremos transformar os objetos ao redor de nós, que exige apenas ciência intelectual, mas pode co-existir com o nosso egoísmo – ao passo que a transformação do sujeito dentro de nós exige consciência espiritual, que tem de derribar dos seus tronos os nossos ídolos e fetiches. Por isto, guiados pela lei do menor esforço, preferimos tratar da alquimia dos objetos, e evitamos a alquimia do sujeito.
Aquela é gozosa, esta é dolorosa. Aquela é periférica, quantitativa – esta é central, qualitativa.
Não é necessário, nem suficiente, que tenhamos poder sobre os objetos externos, porque esses objetos quantitativos do plano horizontal não têm realidade autônoma em si mesmos; são reflexos, sombras, efeitos, derivados de uma causa real em si mesma. Os objetos também serão transformados, mas não pelos objetos, e sim pelo sujeito. Não existe transformação do objeto pelo objeto – só existe transformação dos objetos pelo sujeito; ou seja, alorealização por meio de auto-realização. O homem que se realiza a si mesmo realiza todas as coisas fora de si. A alquimia da qualidade traz consigo a alquimia das quantidades.
O maior dos perigos não está em ser mau – o perigo dos perigos está na complacente consciência de ser bom, de ser um herói de virtuosidade, do tipo daquele virtuoso fariseu do templo, que assim orava: "Eu te agradeço, meu Deus, por não ser como o resto dos homens: ladrões, injustos, adúlteros; eu jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de todos os meus haveres. " E voltou este para casa, não ajustado, diz Jesus, porque vivia na complacente consciência da sua justiça e bondade. "Eu detesto os vossos vícios, e mais ainda as vossas virtudes" – exclama Nietzche na sua obra "Also sprach Zarathustra". Dos nossos vícios nos libertaremos um dia – mas das nossas virtudes, isto é, da blandiciosa consciência de sermos heróis, será que algum dia nos libertaremos dessa obsessão? Enquanto o ser-bom não for natural e evidente para nós, sem nenhuma sensação de heroísmo e virtuosidade, estamos longe da alma do Evangelho.
O publicano, pecador, tem consciência dos seus pecados – o fariseu, não menos pecador, tem consciência das suas virtudes; aquele voltou para casa curado – este voltou para casa mais doente ainda, porque chamou saúde a sua doença. Um doente que não reconhece a sua doença, e chega ao absurdo da cegueira de a chamar saúde, é incurável.
"Eu detesto os vossos vícios – e mais ainda as vossas virtudes. . . " Eu detesto a vossa doença chamada doença – e detesto mais ainda a vossa doença chamada saúde. Aquela é uma doença curável – esta é uma doença incurável. Aquela é simples fraqueza – esta é um orgulho satânico. Enquanto alguém diz: "Cumpri o meu dever – e sou servo inútil", tem saúde espiritual; mas, se disser: "Cumpri o meu dever – e sou um servo útil", um herói, um homem virtuoso, está doente e é incurável.
Há, portanto, três atitudes possíveis do homem em face daquilo que é seu dever:
1) há homens que não cumprem o seu dever,
2) há homens que cumprem o seu dever com sacrifício e tristeza, o quer neles gera o senso de heroísmo,
3) há homens que cumprem o seu dever com leveza e alegria, sem nenhum senso de heroísmo nem virtuosidade.
Os da primeira classe são os viciosos.
Os da segunda categoria são os virtuosos.
Os do terceiro grupo são os sábios e santos, os gênios cósmicos, os homens crísticos.
Os da primeira classe são maus.
Os da segunda são bons.
Os da terceira são perfeitos.
Ai do homem que tem a consciência de ser virtuoso. O seu complexo de virtuosismo o impede de ser um homem crístico.
Quem carrega pesadamente o que é pesado, quem executa amargamente o que é amargo, quem padece dolorosamente o que é doloroso é, quando muito, um talento, mas não é um gênio; o gênio riscou do vocabulário da sua vida esses termos negativos "pesado", "amargo", "doloroso", porque nada mais significam para ele. Só quem supera a consciência da sua virtuosidade e do seu heroísmo é que é um gênio espiritual, um homem crístico.
A todos os seus discípulos recomenda o Mestre que, depois de terem cumprido todos os seus deveres, se considerem como "servos inúteis" sem direito a prêmio algum, porque para o homem integral o cumprimento do dever é natural, espontâneo e gratuito. Quem pensa em prêmio ou recompensa é mercenário. Quem tem de ser recompensado, compensado, ou pensado, está doente, fraco, imperfeito. O homem perfeito não necessita de ser recompensado, porque não é mercenário, nem compensado porque é completo, nem pensado, porque possui perfeita sanidade. O homem cósmico cumpre o seu dever não por dever, mas por querer; porque, na sua sabedoria, compreendeu que ser bom é natural, estar em harmonia com as leis do Universo do Deus do Universo. Sintonizou o seu pequeno querer individual com o grande QUERER UNIVERSAL – e nada mais!
EXPLICAÇÕES PRÉVIAS
O simples tentame de querer fazer filosofia sobre o Evangelho de Jesus Cristo parecerá a muitos uma profanação, quase um sacrilégio.
A razão disto é obvia: o Evangelho é o reflexo da maior experiência que um homem já teve de Deus – ao passo que qualquer espécie de filosofia comum é um processo intelectual, indireto e, como tal, infinitamente inferior àquele contato intuitivo, direto com a suprema Realidade do Universo.
A experiência do Evangelho é vivida e saboreada – a filosofia é apenas inteligida, pensada.
O Evangelho representa a mais estupenda verticalidade mística, uma linha de luz e força que vem de ignotas alturas e vai a incógnitas profundezas – enquanto a filosofia, por mais vasta que seja, não deixa nunca de ser horizontal, e a soma total de todas as horizontalidades intelectualistas não chega sequer a roçar de leve a verticalidade racional ou espiritual.
É, pois, matemática e logicamente, absurdo querer compreender o Evangelho espiritual mediante um processo intelectual, porquanto, em hipótese alguma, pode o menor compreender (abranger, abraçar) o maior: nunca pode uma causa pequena produzir um efeito grande; nunca pode um compreendedor inferior abarcar um compreendido superior.
Por que, pois, escrever um livro – e lecionar curso – sobre a filosofia cósmica do Evangelho, se este próprio título é flagrantemente paradoxal?
A esta sensata objeção passaremos a dar duas respostas, não menos sensatas:
1) Não entendemos aqui, por "filosofia", um processo meramente intelectual, analítico, horizontal; mas sim uma atitude essencialmente racional-espiritual;
não uma inteligência periférica de aparências, mas uma vivência central da própria essência. A parte intelectiva que, inevitavelmente, acompanha essa atitude intuitiva não é senão o corpo, o invólucro, um simples veículo da alma, medula e conteúdo da Filosofia do Evangelho; é como a sombra que, fatalmente, acompanha a luz.
2) Não é pretensão nossa vazar a alma do Evangelho em capítulos e parágrafos filosóficos; o que o leitor encontra nas páginas deste livro não é o principal do assunto; não passa duma ligeira indigitação, como certas flechas ou outros marcos à beira da estrada e nas encruzilhadas dos caminhos. O viandante que estacionasse diante de uma dessas setas orientadoras e não prosseguisse na direção indicada não atingiria jamais o destino da sua jornada, nem faria jus ao sentido da seta.
Ora, o que passaremos a dizer nestas páginas é apenas indigitação do caminho certo a seguir, mas não apenas indigitação do caminho certo a seguir, mas não é o próprio andar ou seguimento do caminho. Esse andar ou seguir é tarefa eminentemente individual de cada leitor.
A alma do Evangelho é uma experiência individual com Deus (que costumamos chamar "verticalidade"), e que, se for genuína, terá necessariamente os seus reflexos sobre a vida ética e social do homem (apelidada frequentemente "horizontalidade"). Entretanto, convém não esquecer, nenhuma experiência individual do mundo divino é transmissível de pessoa a pessoa. O que o iniciado pode e deve fazer é indicar ao profano e ao iniciável o caminho certo a seguir; mas não pense jamais que possa transferir a seus discípulos a sua própria experiência por mais genuína, intensa e nítida que esta seja. O próprio Cristo, em três longos anos de convivência com seus discípulos, não conseguiu imbuí-los da experiência que ele mesmo tinha do Pai celeste e do reino de Deus. Esta experiência só lhes veio "verticalmente", pelo "poder do Alto", na manhã do Pentecostes.
Para que alguém tenha essa experiência de Deus, tem de crear em si mesmo um ambiente propício, tem de realizar no seu interior uma espécie de atmosfera ou clima em que a delicada plantinha desse encontro com o Infinito possa brotar e medrar.
Esse ambiente favorável consiste essencialmente em dois fatores básicos: fé e vida.
Fé – Deve o homem, antes de tudo, sintonizar com a realidade de um mundo invisível, embora ainda não tenha dele experiência direta. Essa fé é uma espécie de permanente atitude de humildade, sinceridade, receptividade, um senso de vacuidade ou nulidade do próprio ego físico-mental, unido à ansiosa expectativa e certeza de uma plenitude que lhe possa e deva advir de fora.
Esse "de fora" é uma locução provisória, porque, de fato, a plenitude divina não vem de fora do homem: vem do mais profundo abismo dentro dele, vem do íntimo centro do próprio homem, não desse homem periférico, físico-mental, que ele conhece habitualmente, mas vem das incógnitas profundezas do seu Eu espiritual, divino, que lhe é tão desconhecido e tão "longínquo" como a presença da energia nuclear dentro dum átomo não desintegrado. Para o principiante não há mal em que ele pense que a revelação de Deus e o reino de Deus lhe venham de fora, das alturas do céu, embora esse "céu" esteja dentro dele e essas "alturas" sejam as mais profundas profundezas do seu próprio ser. Mais dia menos dia, na sua jornada ascensional, esse homem saberá – não já com surpresa, mas com espontânea naturalidade – que esse "fora" é o seu "grande Além-de-dentro", a quintessência da sua própria alma, o seu Cristo interno, o "reino de Deus dentro dele", reino esse que ele tem de realizar conscientemente em sua vida, clamando sem cessar "venha o teu reino". Como poderia vir o que não estivesse nele?. . .
Vida – Fé vivida! A fé nunca passará a ser experiência direta de Deus se ficar no terreno meramente intelectual ou teórico; é indispensável que ela se encarne na vida total do homem, ou, no dizer de Santo Agostinho, que se torne "fides quae per charitatem operatur" (fé que atue pelo amor). Quando o homem sintoniza toda a sua vida individual e social pelo conteúdo da sua fé, quando vive o que crê, como se já possuísse experiência direta com Deus, então essa fé concretizada em amor universal desabrochará em experiência imediata do mundo divino, porque encontrou ambiente e clima propício ao seu desenvolvimento.
O crente torna-se, então, um ciente, um sapiente, um vidente.
Já não crê simplesmente – sabe!
Enquanto o homem não tem essa experiência direta da Realidade divina, a sua moral é difícil e sacrificial, é um permanente "carregar a cruz". Sintonizar a sua vida moral com uma norma apenas crida, mas não vivida como real – isto é imensamente difícil e doloroso, pelos menos em muitos casos, como no preceito de amar os inimigos e fazer bem aos que nos fazem mal.
É fora de dúvida que essa moral pré-mística, anterior à experiência direta de Deus, é um teste e uma prova de fogo por que o homem tem de passar, é o vasto e doloroso deserto que medeia entre o Egito da velha escravidão e o Canaã da futura liberdade; esse Canaã é para o simples crente um país longínquo, no tempo e no espaço, ao passo que o horroroso deserto da sua renúncia diária é um fato cruciantemente propínquo.
Entretanto, segundo as eternas leis cósmicas do espírito, tempo virá em que essa moral pré-mística, difícil, se converterá numa ética pós-mística, fácil.
Chegará para o crente sincero o dia em que a amarga medicina do duro dever moral passará a ser um lauto festim de suave querer espiritual, dia em que ele saberá por experiência que o "jugo é suave e seu peso é leve", e em que poderá dizer com o Mestre: "O meu manjar é cumprir a vontade de meu Pai".
Quando o homem tiver atingido, através de sucessivos estágios evolutivos, as sublimes alturas dessa "gloriosa liberdade dos filhos de Deus", em que o serbom é o mesmo que ser-feliz, e o ser-feliz interior transborda irresistivelmente num ser-bom exterior – então saberá ele o que quer dizer "Filosofia Cósmica do Evangelho".
Mas, que é que entendemos por "cósmico"?
Cósmico é sinônimo de "univérsico".
Univérsico, em que sentido?
Ninguém cairá na tentação de considerar o Evangelho como um documento pró-materialismo. É, todavia, opinião assaz generalizada no mundo cristão que o Evangelho seja a Carta Magna do maior espiritualismo que já apareceu à face do nosso planeta. Por espiritualismo entendem esses teólogos uma doutrina essencialmente além-nista e visceralmente anti-aquém-nista; o profeta de Nazaré teria ensinado aos homens a desertarem do mundo a fim de possuírem o reino dos céus, entendendo pela expressão "reino dos céus" alguma região distante após-morte. Houve na igreja cristã um período clássico de ascetismo absoluto e radical, quando ser-cristão era idêntico a ser desertor do mundo, habitante de cavernas desnudas e inimigo mortal de todas as grandezas da civilização, cultura, ciência, arte e técnica que a inteligência humana havia engendrado. Aliás, através de todos os séculos até ao presente dia, continua a persistir essa ideologia negativista, correndo paralela a uma outra concepção mais positiva do Cristianismo. Ainda nos últimos tempos, uma das mentalidades cristãs mais sinceras, Leon Tolstoi, caiu vítima desse pessimismo.
Os que advogam essa doutrina espiritualista-ascética-negativa são, em geral caráteres puros e bem intencionados, cuidando manter o Cristianismo em toda a sua original genuinidade, livre de deturpações e incrustações mundanas. Na verdade, porém, prestam apenas meio serviço ao Evangelho, tornando-o inaceitável para a grande parte da humanidade e reduzindo o Cristianismo Cósmico a uma seita de piedosos ascetas e místicos, ou a uma confraria de almas enamoradas do Deus do mundo e inimigas do mundo de Deus.
O Cristianismo é tão pouco ascético-espiritualista como epicúreo-materialista, O Cristianismo é essencialmente "cósmico", isto é, universalista, afirmando todas as obras de Deus, tanto invisíveis e imateriais como visíveis e materiais.
Aliás, a própria vida do Cristo é genuinamente cósmica, o que lhe mereceu, da parte dos espiritualistas ascéticos da época, a alcunha de "comilão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e pecadores"; o seu primeiro milagre foi realizado por ocasião de uma festa de casamento e consistiu na conversão de água em vinho ótimo. Esse aparente epicurismo do Nazareno, porém, era compatível com a sua profunda espiritualidade mística, ou melhor, esse aquém-nismo humano não era senão das manifestações do seu além-nismo divino.
A magnífica frase de Albert Schweitzer "O Cristianismo é a uma afirmação do mundo que passou pela negação do mundo" resume lapidarmente o que entendemos por Cristianismo cósmico.
Quem afirma o mundo sem o ter negado, é materialista e idólatra.
Quem nega o mundo sem ter a coragem de o afirmar, é asceta espiritualista.
Quem afirma o mundo depois de o ter negado e continuando a negá-lo, internamente, pelo desapego, esse é cristão genuíno e integral, homem cósmico.
O Verbo se fez carne para que a carne se pudesse fazer Verbo. . .
O espírito se materializou para que a matéria se pudesse espiritualizar. . .
O Cristianismo, e a vida de todo cristão, é uma permanente encarnação do Verbo e uma constante verbificação da carne, uma contínua descensão do espírito de Deus ao mundo e uma incessante ascensão do mundo a Deus.
O Cristianismo, e a vida cristã, é Natal e Páscoa, encarnação e ressurreição, descida do espírito divino para dentro do homem, e subida do homem para o espírito de Deus. A manjedoura de Belém e o túmulo vazio do Gólgota, a noite do nascimento de Jesus e a noite do ressurgimento do Cristo – eis a mais breve síntese do homem cósmico!
No meio entre esses dois extremos, porém, está a cruz, não apenas como símbolo de sofrimento, mas também, e sobretudo, como emblema da vida universal, abrangendo com suas quatro pontas o norte e o sul, o leste e o oeste, a totalidade das coisas que há em todas as alturas e profundezas, em todas as latitudes dos horizontes. A cruz é o símbolo cósmico por excelência.
Quem adora o mundo é idólatra.
Quem odeia o mundo é desertor.
Quem ama a Deus no mundo e o mundo em Deus é homem cósmico, crístico.
Sendo, todavia, que o Cristo veio redimir uma humanidade profundamente materialista, era natural que ele insistisse muito mais na necessidade de recusar do que de usar as coisas do mundo material. Quem está habituado a abusar do mundo, como todo pecador, tem de recusá-lo radicalmente antes de o poder usar corretamente; porquanto, "o Cristianismo é uma afirmação do mundo que passou pela negação do mundo".
E até ao presente dia é muito mais importante proclamar o Evangelho do recusar do que o Evangelho do usar, porque o abusar é ainda o grande pecado original desta humanidade profana. É até perigoso recomendar a um abusador do mundo que use esse mundo, porque ele confundirá fatalmente o uso correto com o abuso incorreto a que está habituado; e o seu complacente egoísmo facilmente lhe fará crer que é um homem cósmico, quando não saiu ainda das baixadas do homem telúrico.
Isto, todavia, não invalida a nossa tese de que o Cristianismo é, em sua íntima essência, a religião do uso, ou seja, da afirmação do mundo – naturalmente para os que já se libertaram da velha escravidão do abuso das coisas materiais.
É mais fácil recusar radicalmente o mundo do que usá-lo corretamente. Só quem é perito no recusar é que pode ser mestre no usar. O homem cósmico tem de passar pela escola ascética da disciplina espiritual, a fim de atingir a "gloriosa liberdade dos filhos de Deus".
É esta a Filosofia Cósmica do Evangelho.
"QUEM PECOU PARA ESSE HOMEM NASCER CEGO – ELE OU SEUS PAIS?"
Refere o Evangelho que Jesus se encontrou com um cego de nascença.
Quiseram os seus discípulos e outros saber do mestre quem é que pecara, esse homem ou seus pais, para ele ter nascido cego.
Os consulentes não querem saber se o sofrimento da cegueira era castigo dum pecado, o que para eles era evidente; querem tão-somente saber quem contraíra esse débito moral que esse cego estava pagando, ele mesmo ou seus pais. Que o débito existia parecia estar fora de dúvida, porque sofrimento supõe culpa; onde não há culpa não há sofrimento.
Como se vê, os consulentes só conhecem o caráter negativo do sofrimento;
nada sabem do seu aspecto positivo. Que possa haver um sofrimento-crédito lhes é totalmente ignoto; só conhecem um sofrimento-débito.
Supõem eles, além disto, que o homem possa, na vida presente, solver um débito contraído numa vida passada; alguém deixou aquela existência anterior sem estar quite com a justiça cósmica, e tem de saldar a sua dívida na atual existência terrestre. A ideia da reencarnação é tão antiga como a própria humanidade pensante, patrimônio geral de muitas das antigas religiões e filosofias.
Supõe esta pergunta ainda a possibilidade de não ter o homem contraído débito algum, nem na vida atual nem numa existência anterior, mas ter de solver o débito de outros homens, seus pais ou antepassados.
Nesta pergunta, como se vê, temos as duas teorias para explicar o problema do sofrimento humano: a teoria da reencarnação, defendida pela teosofia, pelo espiritismo e ideologias afins – e a doutrina do pecado original, advogada pelas igrejas cristãs, discípulas do apóstolo Paulo.
E Jesus, que atitude assume? De qual dessas duas doutrinas se confessa adepto? Toma atitude a favor da reencarnação, ou a favor do pecado original?
Afirma que o cego está pagando seus próprios pecados, ou os pecados herdados de seus pais?
Não se declara a favor de nenhuma dessas doutrinas, mas contra ambas. "Nem ele pecou nem seus pais pecaram, para ele nascer cego!" O sofrimento desse cego não é pagamento dum débito, nem próprio nem alheio. Que é então? Visa a um crédito! "Isto aconteceu para que nele se revelassem as obras de Deus. " Jesus declara categoricamente que esse sofrimento tem uma função positiva!
Por meio dele se revelam as obras de Deus.
Mas que obras?
Dizem uns que essas obras são os milagres, como esse que Jesus ia realizar: Deus teria feito nascer cego esse homem e o teria deixado nessa cegueira, quiçá uns 40 anos, para que, em momento dado, Jesus tivesse ensejo para realizar um dos seus milagres de cura.
Quem é capaz de aceitar essa explicação, aceite-a – mas saiba que reduz Deus a uma espécie de tirano arbitrário que se diverte com as dores dos seus súditos inermes.
A obra de Deus no homem é a evolução ascensional do ser humano, potencialmente creativo, e que deve tornar-se atualmente creador. Muitos homens, porém, não saem da sua creatividade potencial e entram na creação atual se não passarem por um grande sofrimento.
Verdade é que não é o sofrimento como tal que redime o homem – pode até levá-lo ao suicídio – mas é a atitude positiva que o homem assumir em face do sofrimento que o redime das suas misérias e o faz entrar na sua glória.
Evidentemente, esse homem nascera cego, não para pagar débitos, próprios ou alheios, mas para realizar créditos. Esse crédito de aperfeiçoamento não era possível senão através do sofrimento. Era esta a obra de Deus que se devia manifestar nesse homem: a sua evolução espiritual.
Um dos mais esplêndidos livros do Antigo Testamento, obra-prima de literatura dramática, versa esse misterioso problema do sofrimento humano. Um abastado e santo fazendeiro gentio, na terra de Huz, perde subitamente toda a sua vasta fortuna, sua saúde e seus filhos; da sua família só lhe ficou, para cúmulo de desgraça, uma mulher insipiente e cínica que nada compreende da alma profunda e sublime de seu esposo.
Sentado num fétido monturo, raspa Job o pus das suas chagas com o caco de um vaso partido, derradeiro vestígio de passadas grandezas – quando aparecem, para o consolar na sua imensa dor, três amigos da vítima, filósofos do oriente. Consternados param ao longe; depois, aproximando-se do infeliz, mudos de dor, sentam-se no chão ao redor dele, sem poderem proferir uma só palavra à vista de tão grande sofrimento.
Finalmente, um dos filósofos abre os lábios e procura elucidar o porquê do sofrimento. O que ele sabe dizer é, em resumo, o seguinte: Deus não castiga inocentes, só castiga culpados.
Replica Job que não tem consciência de pecado que tal sofrimento lhe haja merecido.
Mas o filósofo responde que Job deve ter algum pecado inconsciente, ignorado, pelo qual esteja sofrendo, algum resíduo de "karma negativo", diriam os hindus, algum débito oculto de existências anteriores, diriam os reencarnistas, débito que, finalmente, na presente encarnação ele deva pagar.
Neste mesmo sentido, com ligeiras variantes, abundam também os outros dois filósofos. Todos os três, portanto, admitem que Job é culpado, consciente ou inconscientemente, que o seu sofrimento é o pagamento de uma dívida moral.
Nestas alturas intervém o próprio Deus e rebate com palavras veementes os argumentos dos pretensos exegetas do mistério da dor: Insensatos! Que estais aí a adulterar com palavras tolas a sabedoria dos meus planos?
Declara Deus que seu servo Job não sofre para pagar algum débito negativo, de tempos passados, mas sim para acumular crédito positivo e glórias futuras.
Implicitamente, diz o mesmo que Jesus disse tangente ao cego de nascença: que esse sofrimento o colheu para que nesse homem se revelassem as obras de Deus.
Na tarde da primeira Páscoa, deixaram dois discípulos de Jesus a cidade de Jerusalém e foram em demanda da sua aldeia natal, Emaús, profundamente revoltados com os sofrimentos e a morte do profeta de Nazaré, inocente e just " – quando se associou a eles o próprio Jesus, sem que eles o reconhecessem.
E começou a expor aos dois, à luz das Escrituras, provando-lhes que o "O Cristo devia sofrer tudo isto e assim entrar em sua glória. " Nenhuma palavra sobre débito! Jesus sofreu tudo aquilo – por quê? A fim de pagar um débito, próprio ou alheio? Que ele mesmo tivesse débito a saldar, ninguém o admite; mas que os seus sofrimentos tinham por fim solver os débitos de terceiros, da humanidade pecadora de todos os tempos, isto é doutrina geral das igrejas cristãs. Entretanto, Jesus não afirma nem isto nem aquilo. Diz simples e positivamente que esse sofrimento era necessário para ele atingir a plenitude da sua evolução e perfeição, que ele chama "glória".
Admite, pois, o sofrimento como um fator de evolução espiritual, isto é, o sofrimento-crédito.
Em síntese: o sofrimento é um elemento evolutivo, tanto em Job, como no cego de nascença, como também em Jesus. O sofrimento, à luz desses textos, atualiza algo que era potencial no homem, despertando do sono o que dormia nas profundezas da alma, tornando visível algo que jazia invisível e latente nos abismos da natureza humana.
Quem puder compreendê-lo compreenda-o!
Enquanto o homem não atingir as alturas do Cristo não compreenderá que o sofrimento – embora possa, em certos casos, ser pagamento de débitos negativos – crea também um crédito positivo, sendo assim uma etapa para o homem "entrar em sua glória" de homem integral. "HÁ QUEM DEIXE DE CASAR, POR AMOR AO REINO DE DEUS" Há, ou pode haver, na vida humana dois apogeus de felicidade peculiar, determinados ou pelo êxtase da carne ou pelo êxtase do espírito.
Alguns não conhecem nenhuma dessas experiências; a maior parte das pessoas adultas só conhece a primeira: uns poucos sabem por experiência pessoal da segunda.
Toda felicidade, material ou espiritual, consiste fundamentalmente na consciência de uma intensa e exuberante vitalidade, de uma espécie de transbordamento de energias vitais.
Quando a vitalidade do corpo humano atinge o seu máximo, na culminância da juventude, podem o jovem e a jovem gozar a mais intensa felicidade corporal, que consiste no êxtase da carne. A imensa maioria da humanidade, no presente estágio evolutivo, não ultrapassou ainda essa etapa de prazer sensorial ou felicidade meramente material. E é por isto que não reagem com entusiasmo quando ouvem falar numa felicidade ultra-sensorial, que consideram como quimérica e irreal em face de veemência brutal da embriaguez erótica. Falta-lhes a antena receptora espiritual; quando muito, creem vagamente numa satisfação espiritual, mas nada sabem experiencialmente desse mundo desconhecido.
Uns poucos seres humanos, no presente plano evolutivo, alcançaram uma vitalidade espiritual suficiente para saberem de experiência direta, o que quer dizer o êxtase do espírito, ou seja, a vivência mística pelo contato imediato com a Divindade.
Em ambos os casos – tanto na erótica da carne como na mística do espírito – a intensa consciência de uma exuberante vitalidade, que é o segredo da felicidade, nasce de uma espontânea integração da parte no Todo, porque Vida é essencialmente um Todo.
O êxtase erótico vem duma integração da parte no Todo.
O êxtase místico nasce duma integração da parte no Todo.
Daí, a profunda afinidade entre esta e aquela, por mais paradoxal que isto pareça à primeira vista.
A diferença está no seguinte: no primeiro caso, trata-se de um Todo relativo – no segundo caso, do Todo Absoluto.
O sexo não passa duma secção ou segmento da natureza humana total. Nem o homem nem a mulher são a natureza humana em sua inteireza, o Anthropos, o Mensch. O homem e a mulher são apenas duas individualizações parciais e imperfeitos do SER HUMANO em si.
Por isto, a união sexual, que parece integrar o ser masculino e o ser feminino no seu Todo maior, produz uma espécie de êxtase supra-individual ou uma embriaguez erótica, que não deixa de ter certa afinidade com a morte ou o suicídio. Parece que ele ou ela deixa de ser um indivíduo à parte e, através dele ou dela, se funde num Todo supra-individual, universal, cósmico, "de maneira que já não são dois, mas um só". Tanto o orgasmo erótico como o entusiasmo místico têm caráter cósmico, seja para o subconsciente, seja para o supraconsciente.
Essa desintegração dos indivíduos, masculino e feminino, e sua reintegração num Todo ultra – ou extra-sexual, tem algo de comum com a morte ou dissolução do indivíduo e sua absorção pelo grande Todo. Não é sem razão que consideramos a virgindade como uma espécie de "integridade" individual, e sua perda faz lembrar uma tal ou qual "desintegração" individual seguida de uma "integração" universal.
O êxtase da carne, a embriaguez erótica, é a transição daquele para este estado.
Ora, na experiência mística há essa mesma sensação, essa espécie de volúpia que empolga o indivíduo no momento da sua integração no Todo relativo, pela erótica sexual; mas, na experiência mística já não se trata duma integração do indivíduo num Todo relativo mas sim no Todo Absoluto, na Divindade.
A erótica da carne é suplantada pela erótica do espírito, que é a mística; mas a afinidade continua a vigorar, embora num plano essencialmente superior, imaterial. Não é mais o indivíduo que se cosmifica – é o próprio homem, a creatura humana, que se super-humaniza, para se divinizar. Na mística é bem mais radical o egocídio do que na erótica. Amor, erótica, mística, morte – é impossível dissociar estes fenômenos, diversos nas suas ramificações externas, mas idênticos na sua raiz interna, no misterioso subsolo da sua unidade essencial.
Essa integração do Eu humano no Tu divino, essa fusão da consciência individual na Consciência Universal, essa submersão da onda da minha vida limitada no ilimitado oceano da Vida Cósmica, vem necessariamente acompanhada de uma sensação de indizível felicidade, de uma embriaguez beatífica incomparavelmente mais intensa e fascinante do que a momentânea embriaguez erótica do sexo. Esta é como que um relâmpago em plena noite, um parêntesis de luz violeta no meio de duas trevas profundas – ao passo que aquela é semelhante a uma serena e tranquila claridade solar em pleno dia.
Na erótica do orgasmo sexual não há nem pode haver verdadeira fusão dele e dela, porque se trata de dois indivíduos, necessariamente separados como tais;
nunca pode o indivíduo A ser realmente o indivíduo B. Mas na experiência mística a fusão é possível, porque se trata de um individual e dum Universal.
Não se pode fundir a parte A na parte B, mas pode-se fundir o indivíduo parcial e finito no Ser Universal e Infinito.
Na erótica, a fusão é ilusória – na mística a fusão é real.
Por isto, daquela resulta uma felicidade efêmera – desta, uma beatitude eterna.
A fusão mística, porém, não é uma absorção, substituição, aniquilamento ou extinção do indivíduo em prol do Universal – e é precisamente aqui que principia a grande e jamais devassada obscuridade para o nosso intelecto analítico! De que modo continua a existir o indivíduo após a sua definitiva fusão no Universal, na Divindade? Em vez de analisar esta pergunta inanalisável, lembramos apenas que é experiência de todos os grandes gênios espirituais da humanidade, sobretudo do Cristo, que a identidade individual do Eu continua a persistir após a fusão do homem na Divindade. É que todos esses gênios viviam num plano superior onde a lógica intuitiva da razão espiritual eclipsa toda a lógica, ou pseudo-lógica, analítica da inteligência personal.
Sendo que a mais intensa felicidade (ou prazer) no plano material é o êxtase da carne erótica sexual, e como, por ora, a nossa humanidade não possui vocabulário próprio para experiência mística, é geral em todas as literaturas o uso de termos eróticos para designar experiências místicas. O inexperiente corre, então, o perigo de tomar esses símbolos materiais pelo simbolizado espiritual, uma vez que "o conhecido está no cognoscente segundo a capacidade do cognoscente". Quem nunca teve experiência espiritual não pode saber o que simbolizam os símbolos materiais.
Nos livros sacros de todos os povos, sobretudo na Bíblia, quer no Antigo, quer no Novo Testamento, como também nas obras dos místicos, dentro e fora do Cristianismo, o encontro direto da alma com Deus é, invariavelmente, representado sob a forma de uma "festa nupcial", de um conúbio da alma com o divino Esposo.
No âmbito dos livros sacros do ocidente, é o "Cântico dos Cânticos" o poema clássico da mística divina apresentada em roupagens de erótica humana, e é indício de uma verdadeira intuição espiritual que tanto a sinagoga de Israel como também a igreja cristã tenham incluído o livro dos Cantares no cânon dos livros divinamente inspirados. Nas páginas desse grandioso poema eróticomístico não ocorre nenhuma união sexual, nenhum acasalamento no sentido tradicional, nenhuma procreação de filhos, porque no terreno do simbolizado místico não há união carnal nem procreação material: há uma espécie de autocreação, por mais paradoxal que isto pareça.
Se Salomão é o autor do "Cântico dos Cânticos", pode-se afirmar que esta epopeia mística marca a verdadeira grandeza desse homem singular, tão humano e tão divino – assim como a vida erótica com suas esposas e concubinas assinala o limite da sua grandeza: depois de gozar a plenitude do êxtase da carne, anseia Salomão, insatisfeito, pelo êxtase do espírito.
Quando o homem chega ao zênite da sua experiência mística, eclipsa-se nele todo o desejo erótico, não por uma violenta supressão, mas por um processo de espontânea integração deste naquela. As núpcias espirituais da alma humana com o divino Lógos sobrepujam totalmente as núpcias materiais do homem e da mulher.
São estes os "eunucos por amor ao reino de Deus", na misteriosa linguagem de Jesus; não os que nasceram incapazes para o casamento, nem os que foram feitos incapazes por crime de outros, mas os que a si mesmos se tornaram incapazes da erótica sexual graças à plenitude da mística divina. No mundo dos "regenerados" – isto é, dos novamente gerados ou renascidos pelo espírito – não se casa nem se dá em casamento, porque "todos eles são como os anjos de Deus nos céus, por serem filhos da ressurreição".
Quem ressuscitou da matéria para o espírito, da erótica para a mística, se tornou a si mesmo inidôneo para as núpcias humanas, não por deficiência de vigor orgânico, como os eunucos naturais ou artificiais, mas por abundância e plenitude de vigor e poder divino, porque contraiu núpcias com o eterno Lógos, cheio de graça e de verdade.
Quanto mais completo é um ser humano pela integração do seu pequeno indivíduo no grande Universal, tanto menos lhe falta uma "outra metade", porque a integração no Todo Absoluto fez silenciar nele todo o desejo de uma integração num Todo relativo. No caso, porém, que viva em regime de núpcias humanas, estas não lhe representam o último centro de gravitação da sua vida, mas lhe são antes como que uma periferia concomitante com a qual todo o seu ser sexual e humano gira em torno do centro cósmico do eterno Lógos.
O Cristo, que era totalmente "um com o Pai", já não necessitava de integração humana; a plenitude da sua mística eclipsara nele toda e qualquer erótica sexual. É possível que, para o homem comum, a integração no Todo relativo da erótica seja uma ascensão e um meio de aperfeiçoamento – mas, para o Cristo, no qual "habitava corporalmente toda a plenitude da Divindade", essa integração relativa teria sido uma diminuição e decaída da sua grandeza. "Há quem se torne incapaz para o casamento por amor ao reino de Deus – quem puder compreendê-lo compreenda-o!"
"PROCURAI PRIMEIRO O REINO DE DEUS – E TUDO ISTO VOS SERÁ DADO DE ACRÉSCIMO" O Evangelho de Jesus está repleto de afirmações categóricas como esta, afirmações que se podem resumir e parafrasear nos seguintes termos: Todo homem que buscar sinceramente as realidades do mundo espiritual receberá espontaneamente as coisas necessárias para uma vida terrestre decentemente humana.
Haja vista palavras de Jesus como estas: "Tudo que pedirdes a meu Pai em meu nome, crede que o recebereis".
Ou estas: "Tudo que, na oração, pedirdes com fé, se não vacilardes, crede que o recebereis. " Ou ainda: "Tudo é possível àquele que tem fé. . . Se tiverdes fé, que seja como um grão de mostarda, e disserdes a este monte: Sai daqui e lança-te ao mar!
Assim acontecerá. " Ou, finalmente, o texto completo parcialmente citado na epígrafe deste capítulo: "Buscai em primeiro lugar o reino de Deus e sua harmonia e todas as outras coisas vos serão dadas de acréscimo. " Nestas e em outras afirmações promete Jesus, não só a consecução das coisas espirituais ("o reino de Deus"), mas também toda e qualquer outra coisa material que não seja contrária àquela; promete mesmo o completo domínio sabre a natureza física em virtude duma simples ordem, sem aplicação de aparelho algum. Dizer a um monte: Sai daqui e joga-te ao mar! Não faz parte do mundo espiritual em si, mas também isto garante o Nazareno a quem tiver fé, isto é, quem estiver identificado com o mundo espiritual pela consciência cósmica.
Com outras palavras: Todo homem que tiver, de fato, realizado a si mesmo, o seu Eu espiritual e divino, será capaz de realizar tudo fora de si. A realização do sujeito produz a realização dos objetos. É esta a filosofia do Evangelho, por mais estranho e inverossímil que pareça ao homem inexperiente.
Para fins de brevidade e simplicidade, passaremos a chamar o processo subjetivo "auto-realização", e o processo objetivo "alo-realização".
O homem profano vive na estranha ilusão de que deva realizar, aqui na terra, umas quantas coisas fora dele, e, quanto mais coisas externas realizar tanto mais vitorioso foi na vida. Ganhar dinheiro, comprar terrenos, construir casas, gozar grande soma de variados prazeres, adquirir celebridade, fazer um bom casamento, criar filhos, conquistar posição social e política, etc. – tudo isto considera ele como a quintessência da sua vida terrestre. Entretanto, tudo isto é alo-realização, realização de objetos vários, no plano horizontal, de algo que é dele, mas que não é ele. Realiza objetos, não realiza o sujeito. Conhece a fundo todos os recantos no plano horizontal, ignorando, talvez, por completo os mistérios do plano vertical.
A diferença essencial entre a filosofia dos grandes gênios espirituais da humanidade, sobretudo Jesus de Nazaré, e a política do homem comum, é precisamente esta: o homem profano vive na permanente, e quiçá inconsciente obsessão de que deva realizar tais e tais coisas fora de si, no plano material, científico, social, para que sua vida tenha valor e plenitude; feito isto, esse homem morre tranquilamente, na certeza de que a sua vida foi fecunda e próspera – os grandes iniciados, porém, procuram realizar plenamente o seu próprio Eu divino.
Que é que faz o homem profano? Faz uma enorme coleção de zeros, de todos os tamanhos e de todas as cores; soma e multiplica essas vacuidades, pequenas e grandes, e despede-se da vida, na convicção de ter acumulado grande cabedal de valores. Em sua cegueira, não percebe que esses zeros não têm valor intrínseco, autônomo, em si mesmos, pois representam qualidades negativas. E essa ignorância da sua própria cegueira lhe dá aquela tranquilidade em que vive e morre. Se ao menos suspeitasse a ilusão em que se encontra!. . .
Seria possível dar valor a cada uma dessas nulidades, a essa coleção de zeros?
Seria possível, sim; bastaria antepor-lhes um valor positivo, por exemplo o algarismo "1". Neste caso, o primeiro zero teria o valor de 10, o segundo o de 100, o terceiro valeria 1000, e assim por diante. Cada uma das quantidades negativas dos zeros fez, por assim dizer, um empréstimo no "banco" da qualidade positiva "1". Esse valor positivo "1" é, por assim dizer, uma fonte inesgotável para todos os zeros a ele associados, um foco luminoso que, por mais luz que irradie aos objetos escuros em derredor, nada perde da sua intrínseca luminosidade. De fato, o "1", por mais que valorize os desvalores dos zeros atrás dele, não se desvaloriza a si mesmo. Dá sem nada perder.
Se o homem profano descobrisse essa maravilhosa matemática do reino de Deus, essa sapiência espiritual, deixaria de ser um profano e se tornaria um iniciado.
Todos os iniciados sabiam desta grandeza e fizeram dela o centro da sua vida.
Daí a sua imperturbável firmeza e segurança, daí a sua inabalável serenidade e felicidade em todas as conjunturas da vida.
Enquanto o homem não é ainda plenamente iniciado no âmago da verdade, mas já deixou ser um profano absoluto, trata ele com certa desconfiança esses zeros das coisas do mundo; não os quer ver associados ao grande "1" da sua vida espiritual; deserta do mundo, isola-se numa caverna ou mosteiro, porque quanto mais longe do mundo tanto mais perto se sente ele de Deus. É que não compreendeu ainda que esse "1" que ele busca com tanto afã pode e deve valorizar todos os zeros – quando estes ocupam o seu lugar à direita que lhes compete: 1. 000. 000; se ocuparem a esquerda, é claro que o "1" sairia diminuído e tanto mais desvalorizado quanto maior é o numero dos zeros; 000. 000. 1. "Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se chegar a sofrer prejuízo em seu próprio Eu" (alma) – é com estas conhecidas palavras que o maior auto-realizador da história exprime a grande verdade.
O homem inexperiente pretende realizar os objetos pelos objetos – o homem experiente descobriu que os objetos só podem ser realizados pelo sujeito, suposto, naturalmente, que este se ache plenamente realizado. A causa é o sujeito, os efeitos são os objetos; não podem estes nascer se aquela não for perfeitamente sadia e forte. Uma fêmea imatura não produz filhos; para que estes possam nascer deve ela adquirir plena maturidade.
Querer realizar objetos do plano horizontal por meio de objetos desse mesmo plano – eis a ignorância multimilenar da humanidade.
Realizar quaisquer objetos externos pelo sujeito interno, do plano vertical – eis a grande sabedoria de todos os gênios espirituais!
Alo-realização pela auto-realização!
Só quando o sujeito individual (homem) se identifica totalmente com o SUJEITO UNIVERSAL (Deus) é que ele pode, de fato, realizar algo no plano dos objetos; toda e qualquer outra espécie de alo-realização é puramente ilusória e irreal.
A filosofia cósmica é a única ciência realmente exata, porque o seu contrário é metafisicamente impossível. Podem-se provar, com todo o rigor da lógica, três coisas baseadas nesta verdade:
1) que alo-realização não é possível sem autorealização,
2) que a auto-realização acontece infalivelmente quando o sujeito individual (homem) consegue adquirir a consciência cósmica da sua essencial identidade com Deus, essencial identidade essa que, todavia, não exclui, mas inclui, a nítida consciência da sua diversidade e inferioridade existencial, humana,
3) que, uma vez efetuada a auto-realização, a alo-realização acontece infalivelmente, consoante a lei básica da Constituição do Universo, porque o efeito segue necessariamente à causa, quando esta atinge sua plenitude.
O que acabamos de expor, em terminologia filosófica, naturalmente difícil para os não-habituados, encontra-se, em substância, no fundo de todas as afirmações e declarações dos grandes mestres espirituais da humanidade.
Como, porém, o gênero humano não possui um vocabulário adequado para experiências espirituais, servem-se os mestres da linguagem comum, com a diferença de que por detrás desses símbolos materiais deve o homem experiente descobrir o simbolizado espiritual. Toda linguagem espiritual é uma parábola: o contenedor é humano, o conteúdo é divino; o corpo é material, a alma é imaterial.
O texto diz "o Reino de Deus e sua harmonia", ou justiça, que quer dizer ajustamento, ou harmonia. O homem espiritual percebe a harmonia ou a justeza que vigora entre o mundo espiritual e o mundo material. As leis cósmicas primam por uma perfeita complementaridade: se o homem realizar o seu Eu espiritual, então as leis cósmicas se encarregam de manter o seu ego material. O homem espiritualizado não necessita de correr atrás das coisas materiais, porque estas correm atrás dele.
A melhor confirmação desta complementaridade é a vida do próprio Jesus, que nunca adquiriu nenhum bem material, nunca mendigou nada – e nunca sofreu necessidade de coisa alguma. Andava tão bem vestido que, ao pé da cruz do calvário, os soldados romanos repartiram entre si as vestimentas dele, e ainda sobrou a túnica inconsútil, que foi sorteada pelos guardas.
O homem-ego deve "comer o seu pão no suor do seu rosto", mas o homem-Eu que realizou em si o Reino de Deus receberá "de acréscimo" todas as coisas necessárias a uma vida decentemente humana.
É esta a misteriosa matemática do Reino de Deus, dificilmente compreensível para a aritmética dos homens. "AS PALAVRAS QUE VOS DIGO SÃO ESPÍRITO E VIDA" Há, nas páginas do Evangelho, sobretudo três grupos de palavras de Jesus que, através dos séculos, estão sendo usados – ou abusados – pelos chefes eclesiásticos para cingir de um halo de autoridade divina as suas instituições hierárquicas. São as palavras seguintes:
1) "Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja".
2) "A quem vós perdoardes os pecados são lhes perdoados. "
3) "Isto é meu corpo, isto é meu sangue. " Em todos os três casos temos palavras de sentido puramente espiritual, profundamente metafísico-místico, que de forma alguma visam fins organizatórios, nem pretendem favorecer esta ou aquela classe de homens.
Entretanto, todos esses tópicos estão sendo interpretados em benefício de uma determinada classe de homens eclesiásticos, com o fim de levar os fiéis, a uma obediência cega e incondicional a seus chefes hierárquicos.
O primeiro desses tópicos é explorado teologicamente com o fim de conferir poderes divinos ao supremo hierarca da igreja romana, cujo primeiro antecessor teria sido o pescador galileu Simão Pedro, embora as fontes históricas sejam contrárias a essa pretensão.
O segundo e terceiro textos têm por fim provar que Jesus conferiu à classe sacerdotal poderes divinos de perdoar ou de reter pecados, e de converter pão e vinho no corpo e sangue dele.
Toda essa teologia eclesiástica peca por um erro fundamental, porquanto supõe que um elemento espiritual, divino, possa ser transmitido por meio de cerimônias, de pessoa a pessoa. No entanto, sabemos que é impossível transmitir de pessoa a pessoa um poder divino. Nenhuma experiência ou iniciação espiritual é susceptível de transmissão, no plano horizontal; só pode ser recebida na vertical, do alto, de Deus, suposto que haja entre os homens um receptor idôneo para a captação dessas realidades divinas. Não existe nenhuma classe social especialmente apta para o recebimento de poderes divinos; nem um estudo teológico de dez ou mais anos torna o candidato apto para ser receptor de poderes divinos; muitas vezes esse escolasticismo intelectual até destrói no estudante a capacidade receptiva. A verdadeira aptidão receptora depende da disposição individual do receptor, disposição que pode encontrar-se em qualquer ponto do globo, dentro ou fora do Cristianismo ou de qualquer outra religião organizada. Deus não conhece gente – Deus só conhece indivíduos. Perante Deus não existem sociedades, instituições, grupos, organizações – só existem almas humanas individuais. Melquisedec era pagão, e, no entanto, era "sacerdote do Altíssimo", que abençoou o patriarca Abraão. Saulo de Tarso era rabino judeu, e foi escolhido por Deus para ser o maior apóstolo do Cristo naqueles tempos, com grande estranheza de certos discípulos de Jesus palestinenses. Francisco de Assis era um jovem negociante italiano, e foi eleito por Deus para ser um dos maiores sacerdotes da humanidade de todos os tempos e países, ele, que nunca aceitou o sacerdócio ritual, uma vez que já recebera sacerdócio espiritual muito superior àquele. Mahatma Gandhi, chefe espiritual e político hindu, foi designado por Deus para ser o guia religioso de centenas de milhões de almas e um dos mais lídimos sacerdotes da humanidade de todos os tempos. Albert Schweitzer, ministro evangélico, tornou-se o modelo do místico dinâmico que exerceu o seu heroico sacerdócio universal no meio da porção mais abandonada do gênero humano.
Deus não conhece acepção de pessoas nem de classes; outorga poderes a toda e qualquer pessoa, de qualquer raça, classe ou credo, desde que essa pessoa possua a necessária receptividade para receber os dons divinos.
Supor que Jesus tenha instituído determinada sociedade hierárquica e designado certos homens para, com exclusividade, servirem de veículos de privilégios divinos, é reduzir o maior gênio espiritual da humanidade à condição de um talento medíocre, de um hábil codificador de dispositivos teológicos e jurídicos.
De mais a mais, como poderia ele designar, dantemão, os seus sucessores sem saber se eles seriam capazes de receber e canalizar tão grandes realidades espirituais? O veículo é escolhido individualmente por Deus, e não fabricado pelos homens.
Há mais sacerdotes de Deus fora do sacerdócio ritual do que dentro dele. "O sopro sopra onde quer. " Para Deus não existem barreiras nem fronteiras de organizações ou seitas humanas. Dá o seu espírito a quem encontrar preparado para o receber. "Quando o discípulo está pronto, o mestre aparece", diz o provérbio oriental, que bem poderia ser aplicado ao nosso caso. Quando o homem for iniciável, será iniciado por Deus – seja ele Melquisedec, Job ou Gandhi, seja ele Saulo de Tarso, Francisco de Assis, Albert Schweitzer, ou outro homem qualquer. Deus nada sabe das nossas burocracias hierárquicas ou jurídicas.
Queixaram-se, certo dia, uns discípulos de Jesus, ainda não iluminados, porque um homem que não era do grupo deles expulsava demônios em nome do Mestre; este, porém, lhes replicou: "Deixai-o! Quem expulsa demônios em meu nome não é meu inimigo!" Esse exorcista era um sacerdote de Deus espiritualmente iniciado, embora não ritualmente ordenado.
Passaremos a expor, nos seguintes capítulos, o sentido espiritual de certas palavras de Jesus, independente da interpretação que as sociedades eclesiásticas lhes imputaram através dos séculos. "SOBRE ESTA PEDRA EDIFICAREI A MINHA IGREJA" Há no Evangelho de Jesus Cristo três passagens-chave, que têm sido origem de violentas controvérsias teológicas e devastadoras guerras de religião. A mais central dessas três passagens – as outras duas falam do "perdão dos pecados" e do mistério do "pão e do vinho" – talvez seja a de que nos ocuparemos no presente capítulo.
Boa parte do Cristianismo, no período da sua cristalização eclesiástica, se apoderou desses textos sacros para provar que só ela é que é a verdadeira e genuína igreja do Cristo. Em todos os três casos, essa sociedade eclesiástica interpreta as palavras de Jesus em sentido intelectual-eclesiástico-teológico, favorável à organização hierárquica, quando essas palavras foram ditas num plano diferente, puramente espiritual.
Sobretudo no caso das conhecidas palavras "Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja", é evidente que a tradicional interpretação escolásticaintelectual não atinge o sentido real das palavras do Nazareno, que pertencem a um plano de consciência e experiência racional-espiritual. Entretanto, devido à baixa evolução espiritual da humanidade, essa interpretação teológica passou a ser a mais conhecida, e, por muitos, tida como a única verdadeira.
Tem ela a vantagem de se prestar admiravelmente como substrutura para um edifícil hierárquico mundial.
À luz das circunstâncias, e do próprio contexto, é fora de dúvida que a exegese tradicional dessas palavras de Jesus não é uma interpretação real do sentido, mas antes uma injeção mental da parte do homem, que nelas descobre o que dantemão deseja descobrir. O nosso entender vai sempre na direção do nosso querer; a nossa inteligência reveste insensivelmente as cores da nossa vontade. É difícil pensar imparcialmente. . .
Em Cesareia de Filipe, perguntara Jesus a seus discípulos o que é que dele diziam os homens; ao que os discípulos referem diversas opiniões correntes a respeito do Mestre. Depois disto, interpela Jesus os próprios discípulos para saber o que dele pensam eles mesmos. E Simão, o pescador galileu, sempre explosivo e entusiasta, responde: "Tu és o Cristo, o filho do Deus vivo!" De relance percebe Jesus que tão gloriosa confissão não vinha da parte humana ("carne e sangue") de seu discípulo, cujas deficiências humanas conhecia sobejamente, mas que era a voz do elemento divino no homem ("o Pai que está nos céus"): "Não foi a carne e o sangue que to revelou, mas sim meu Pai que está nos céus. " Todas as vezes que Jesus se refere ao elemento divino no homem – ao seu Eu espiritual, eterno, ao Emanuel, ao Deus no homem – ele o chama o "Pai". "As obras que faço, não sou eu que as faço, mas sim meu Pai que em mim está. " "A minha doutrina não é minha, mas sim daquele que me enviou. " E em virtude da íntima união que havia entre o elemento humano e o elemento divino do Nazareno, entre o seu Jesus e o seu Cristo, pode ele em verdade afirmar: "Eu e o Pai somos um. " No mesmo sentido diz Paulo de Tarso: "Já não sou eu (meu elemento humano) que vivo – o Cristo (elemento divino) é que vive em mim. " Neste sentido, diz Jesus a seus discípulos: "O Pai está em vós, e vós estais no Pai. " Toda vez que o homem pensa, fala ou age em virtude de seu ego, ou pseudoeu humano, físico-mental, pensa, fala e age ele como simples pessoa, como carne e sangue – mas, quando ele se deixa guiar pelo Eu divino, por seu Cristo interno, o homem pensa, fala e age inspirado pelo Pai.
Em Cesareia de Filipe, em face da pergunta: "Quem dizeis vós que eu sou?" desperta o elemento divino em Simão Bar-Jona, e, impelido por esse espírito divino, o "Pai dos céus", o discípulo exclama: "Tu és o Cristo, o filho do Deus vivo!" Jesus, sempre animado por esse mesmo espírito do Pai, reconhece de relance que aqui não falou a pessoa humana e frágil do pescador galileu, "carne e sangue", mas sim o espírito de seu Pai celeste.
Por isto, replica Jesus: "Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja. " Em aramaico, dialeto hebraico falado por Jesus e seus discípulos, "Pedro" e "pedra" são a mesma palavra, kepha. De maneira que, na realidade, Jesus disse: "Tu és kepha (pedra) e sobre esta kepha (pedra) edificarei a minha igreja. " Que é que Jesus chama kepha, pedra?
Evidentemente, o elemento divino e forte em Simão. O divino é firme, como a rocha, o humano é inseguro, como a areia. Neste mesmo sentido, concluindo o Sermão da Montanha, dissera Jesus: "Quem ouve estas minhas palavras e as realiza assemelha-se a um homem sensato que construiu a sua casa sobre a rocha – mas quem ouve estas minhas palavras e não as realiza é como um homem insensato que construiu sua casa sobre areia. " Rocha ou pedra (kepha) é, pois, o elemento divino no homem; areia (ou carne e sangue) é o elemento humano. Construir o edifício do Cristianismo sobre elemento humano, físico-mental, não oferece solidez e garantia; é incerto e mal seguro como movediço areal – ao passo que construir o seu Cristianismo sobre a rocha viva da intuição espiritual ou revelação de Deus – isto é seguro e indestrutível.
Não era a matéria visível, mas era o espírito invisível que fizera o discípulo conhecer e confessar: "Tu és o Cristo, o filho do Deus vivo!" E foi por esta mesma razão que Jesus, intuindo a íntima natureza de Simão, lhe dera o cognome simbólico de "Pedro" ou "pedra" (kepha), porque nele o elemento divino se manifestava de um modo especial.
Em Cesareia de Filipe, esse elemento divino em Simão Pedro – o seu "Pedro", a sua "rocha" – conhece, reconhece e confessa que há em Jesus um elemento divino, o seu "Cristo", o "Messias", o "Ungido", o eterno "Lógos". O divino no discípulo percebe e proclama o divino no Mestre.
E foi por isto que Jesus, após ouvir a voz do elemento divino no discípulo, que confessa o Mestre exclama entusiasticamente: "Bem-aventurado és tu, Simão, filho de Jonas (Bar-Jona); porque não foi a carne e o sangue (o humano) que to revelou, mas sim meu Pai (o divino) que está nos céus. " E prossegue: "E por isto, também eu te digo que tu és Pedro. . . " Quer dizer: Porque tu me disseste que em mim há um elemento divino (o Cristo), por isto também eu te digo que em ti há um elemento divino (a pedra, o Eu). "A pedra porém, é o Cristo", escreve São Paulo, continuando: "É ele o fundamento da igreja, e ninguém pode lançar outro fundamento. " Jesus proclama, pois, em Simão o mesmo Cristo que Simão proclamara em Jesus. O Cristo em Simão fala ao Cristo em Jesus. Pode o Cristo em Simão conhecer o Cristo em Jesus, mas a carne e o sangue em Simão não podem conhecer o Cristo em Jesus. Não pode o menor conhecer o maior; o cognoscente só pode conhecer o que é igual a ele, ou inferior; mas não pode conhecer o que é superior. Conhecer perfeitamente é compreender, que significa abranger, abarcar, prender totalmente. Não foi a pessoa humana de Simão que conheceu a divindade de Cristo, mas foi o seu Eu divino, crístico.
E sobre este elemento divino oculto na pessoa humana de Simão Pedro é que Jesus fundou sua igreja; e é esta a razão porque as "portas do inferno não prevalecerão contra ela".
Poucos momentos depois desta cena, as portas do inferno prevaleceram contra a pessoa humana de Simão Bar-Jona; pois, quando, saindo dali, Jesus começou a falar da sua próxima paixão e morte, esse mesmo Simão que tão gloriosa confissão fizera é chamado "satan", isto é, adversário, inimigo do Cristo – por quê? Porque nele prevaleceu o elemento humano, carne e sangue, que se opôs ao elemento divino. O ego humano de Simão Pedro recua diante da perspectiva do sofrimento – ao passo que o Eu divino aceita voluntariamente a paixão e morte. E o Mestre repreende asperamente o discípulo, dizendo: "Vade retro, satan!" vai no meu encalço, na minha retaguarda, adversário, e não te ponhas na minha vanguarda, tentando impedir o meu sofrimento voluntário! E logo passa Jesus a explicar porque dá ao discípulo o nome de "satan" ou adversário: "Porque o teu modo de pensar é de homem, e não de Deus. " Esse "modo de pensar humano" revelara-se em Simão no medo que tinha em face do sofrimento e da morte, e tentou contagiar da mesma fraqueza humana o divino Mestre. Sucumbira ao embate da carne e do sangue, ao seu satan, adversário do Cristo.
Ora, seria absurdo, e até blasfemo, supor que Jesus tivesse edificado a sua igreja sobre tão movediço areal, sobre esse punhado de carne e sangue, sobre esse satan, sobre a pessoa humana e frágil do pescador da Galileia. Se assim fora, se tão fraco fosse o alicerce da igreja do Cristo, já nessa mesma hora teriam as "portas do inferno" prevalecido contra ela.
Entretanto, a frágil natureza humana de Simão Bar-Jona nada tem que ver com o fundamento da igreja. Por isto, Jesus não desdisse o que dissera. Cedeu a areia – não cedeu a rocha! Jesus não edificou a sua igreja sobre "o Pedro da confissão", escreve Santo Agostinho, mas sobre "a confissão de Pedro": portanto não sobre um homem, mas sobre o Cristo confessado por Pedro, "edificou a sua igreja sobre si mesmo", sobre o Cristo, que é a rocha dos séculos.
Até ao quinto século, como revelam os escritos de Santo Agostinho, era esta a interpretação predominante no seio da igreja; que Jesus havia fundado a sua igreja sobre a confissão da divindade de Cristo, revelada a Simão Pedro pelo Pai celeste – e não sobre a pessoa humana deste discípulo [4].
- [4] As palavras textuais de Santo Agostinho, em latim, se encontram no Sermão 76, pg. 479 e seguintes, do V Volume das Obras Completas, editadas por Migne, Paris, 1877, sob os auspícios dos Padres Beneditinos.
Citaremos apenas as seguintes palavras de Agostinho: "Tu es Petrus, et super hanc petram, quam cognovisti dicens: Tu es Christus, Filius Dei vivi aedificabo Eccelesian meam. Id est: Super meipsum, Filium Dei vivi, aedificabo Ecclesiam meam. Super me aedificabo te, non me super te. " Como se explica, então, uma interpretação, quase geral, tradicional na igreja romana dos nossos dias, segundo a qual a pedra é o discípulo Simão Pedro?
A razão é uma razão de conveniência histórica, e não uma razão de verdade intrínseca. Durante toda a Idade Média, que começa depois dos tempos de Santo Agostinho, acentua-se cada vez mais no seio da igreja cristã do ocidente a tendência de centralizar o poder espiritual numa só pessoa, praticamente no bispo de Roma, por ser esta a cidade e sede do império romano. E, quando, em fins do século V, o império dos Césares ruiu ao tremendo embate dos povos nórdicos – godos, hunos, vândalos, etc. – a igreja passou a ser também o império, papa e imperador eram uma só pessoa, e assim continuaram por diversos séculos. Nesse período de progressiva centralização era de vital interesse provar que tanto o poder espiritual da igreja como também o poder material do império eram de instituição divina e como tal devia ser respeitado.
Ora, o melhor modo de provar a origem divina desse duplo poder hierárquico do chefe da igreja era o apelo para as palavras de Jesus dirigidas ao pescador galileu, em Cesareia-de-Filipe.
Era necessário provar que o bispo de Roma era o sucessor direto e legítimo de Simão Pedro, e, portanto, detentor do mesmo poder divino confiado a este.
Ora, a sucessão é de pessoa a pessoa, e não de espírito a espírito. Muitos poderiam ser os herdeiros do espírito divino de Simão Pedro, um só, de cada vez, podia ser o sucessor da sua pessoa humana. Era, pois, necessário provar que o bispo de Roma era o sucessor pessoal de Simão Pedro, porque só assim teria valor para a ideia da centralização do poder. Se prevalecesse a concepção antiga, de Santo Agostinho e seus contemporâneos e predecessores, nada seguiria daí para o poder hierárquico do bispo de Roma.
Mas, se se aceitasse que a superestrutura da igreja cristã tinha como subestrutura a própria pessoa de Simão Pedro, recairia sobre o bispo de Roma todo o poder e toda a glória que Jesus teria conferido a seu discípulo.
E assim foi que, obliterando séculos de intuição espiritual e cristã, a hierarquia eclesiástica suprimiu tudo que fosse contrário à interpretação hoje adotada, proclamando ter a pessoa de Pedro sido nomeada o fundamento da igreja, sendo, por isto, o bispo de Roma o legítimo detentor do mesmo privilégio da primazia que Jesus conferira a Pedro.
Esta teoria, hoje corrente na igreja de Roma, falha em três pontos:
1) admite que Jesus fundou sua igreja sobre a pessoa humana de Simão Pedro, quando isto é claramente desmentido pelo próprio texto do Evangelho, como também por toda a tradição antiga, pelo menos até ao século quinto,
2) que Simão Pedro tenha recebido de Jesus uma primazia de poder e jurisdição sobre os outros apóstolos e os cristãos em geral, o que é totalmente ignorado tanto pelo próprio apóstolo Pedro, como também por seu colega Paulo e a igreja cristã primitiva,
3) que Pedro tenha sido o fundador da igreja de Roma e o primeiro bispo da mesma, o que é totalmente incompatível com os fatos históricos, porquanto está provado tanto pelos textos sacros do Novo Testamento como pelos historiadores antigos, a) que Pedro não fundou a igreja de Roma, b) que não foi bispo de Roma, c) que não residiu na capital do império, d) que, depois do ano 64, início da perseguição da igreja por parte de Nero, Pedro, como também seu coapóstolo Paulo, foram visitar os cristãos de Roma em 67, e após breve período de atividades apostólicas foram presos e condenados à morte.
A igreja de Cristo possui alicerce divino, infinitamente mais poderoso do que o que a teologia eclesiástica admite. Se tão humano fosse o alicerce do reino de Deus, já teria ele sucumbido às potências do Hades, isto é, aos fatores negativos do erro e da morte.
O elemento divino da igreja, a "rocha dos séculos", não tem sucessor em nenhuma pessoa humana. A rocha da igreja é o Cristo, porquanto "ninguém pode lançar outro fundamento a não ser aquele que foi lançado", o Cristo, a "pedra angular" do reino de Deus. Todo homem unido ao Cristo, faz parte do alicerce da igreja.
Essa rocha, porém, não é transmissível por sucessão histórica, no plano horizontal, de pessoa a pessoa – essa rocha, o Cristo, só existe por meio do poder de Deus. Quem aceita o Cristo e confessa com Simão Pedro "Tu és o Cristo, o filho do Deus vivo!" – esse faz parte do alicerce da igreja do Cristo.
Contra ele não prevalecerão as potências destruidoras do mal, porque edificou a sua casa sobre a rocha: soprem os vendavais, desabem os aguaceiros, transbordem os rios e deem de rijo contra essa casa – ela não cairá, porque está edificada sobre a rocha, "a rocha, porém, é o Cristo", o "rei imortal dos séculos". Cristo "o mesmo, ontem, hoje e para sempre". "A QUEM VÓS PERDOARDES OS PECADOS SÃO LHES PERDOADOS" Há nas páginas sacras do Evangelho, como já dissemos, certas passagens que, no decorrer dos séculos, foram explicadas segundo as necessidades da época. Essas necessidades não nasceram de dentro desses textos, mas das circunstâncias de tempo e lugar.
As palavras acima citadas pertencem e esse grupo. No tempo em que se formou a hierarquia eclesiástica, entenderam os teólogos que era indispensável conferir aos componentes dessa hierarquia poderes divinos para que tivessem suficiente autoridade perante o povo em geral. O poder de perdoar pecados é um poder divino.
De fato, há homens que possuem o poder de perdoar pecados. Mas o erro está em que a hierarquia eclesiástica pretende monopolizar esse poder, de pessoa a pessoa, mediante determinadas cerimônias rituais. Contra esses dois erros, nascidos das circunstâncias, e talvez da ambição, afirmamos:
1) o poder de perdoar pecados não é privilégio exclusivo de determinada classe sacerdotal,
2) esse poder não é conferido por meio de cerimônias rituais, no plano horizontal, mas vem diretamente, na vertical, de Deus e é conferido a toda e qualquer pessoa que seja idônea para o receber.
As palavras esotéricas "A quem vós perdoardes os pecados são lhes perdoados, e a quem vós os retiverdes são lhes retidos" foram dirigidas por Jesus, repetidas vezes, a) a uma só pessoa, b) ao grupo seleto dos seus apóstolos, c) a todos os seus verdadeiros discípulos em geral.
Entretanto, é de suma importância não desligar estas palavras das que as precedem: "Recebei o espírito santo. " Convém notar que a palavra "perdoar" é um composto de "dar" ou "doar".
Perdonare em latim, é composto de "per" e "donare" (doar); da mesma forma em inglês "forgive" é composto de "for" e "give" (dar), ou em alemão "vergeben", composto de "ver" e "geben" (dar). Perdoar quer, pois, dizer "dar plenamente", fazer uma "doação total". A ideia que está no fundo deste vocábulo é esta: quando um pecador recebe uma dádiva ou doação de luz espiritual muito abundante, uma doação plena, ele compreende o seu estado, arrepende-se e se converte a Deus. Está perdoado. Porque é inadmissível que um pecador seja perdoado externamente sem que internamente se converta;
mas essa conversão supõe uma nova compreensão, uma luz divina mais intensa. Se ele receber uma "per – doação", isto é, uma doação abundante que lhe dê a suficiente compreensão intuitiva do seu estado, se converterá a Deu " – e está perdoado.
Se, por conseguinte, Jesus afirma que um homem pode perdoar os pecados a outro homem e que essa "perdoação" é ratificada por Deus, afirma que um homem pode fazer com que outro homem seja a tal ponto iluminado que ele compreenda o seu estado pecaminoso e se converta. Mas, para que um homem possa contribuir para que outro homem seja iluminado deste modo, é indispensável que o primeiro possua luz muito abundante, ou que "receba o espírito santo", isto é, o espírito cósmico de Deus, o espírito da universalidade [5].
- [5] Conforme explicamos em "Metafísica do Cristianismo", e alhures, a palavra "santo" é, em todas as línguas, um sinônimo de "total" ou "universal". Cf. "whole" (total) e "holy" (santo); ou "heil" (todo, inteiro) e "heilig" (santo). Mesmo em português, as palavras "são" e "santo" nasceram do mesmo radical, significando totalidade, inteireza, universalidade. O "espírito santo", é, pois, o espírito da universalidade, o espírito cósmico, o espírito divino.
Que é, pois, que Jesus afirma?
Afirma que, se alguém tiver o espírito de Deus, e, em nome desse espírito divino que nele está, fizer a um seu semelhante completa doação da luz divina que nele mesmo está, também o próprio Deus fará essa mesma doação, que tem por inevitável consequência a conversão do pecador. Tudo quanto um homem possuidor do espírito de Deus faz e declara, é Deus mesmo que o faz e declara, porque esse homem e o Pai são um só. Neste mesmo sentido dizia Jesus: "As obras que eu faço não sou eu que as faço – é o Pai que em mim está que as faz. " Ou: "A minha doutrina não é minha, mas daquele que me enviou. " A seus discípulos dizia ele: "O Pai está em vós, assim como o Pai está em mim. " Se, pois, um homem, repleto do espírito de Deus que nele habita, perdoar pecados, não é ele, o seu ego físico-mental, humano, que os perdoa, porquanto já não é ele que vive, mas o Cristo que vive nele. Quem, neste caso perdoa é o Eu divino no homem, sua alma, seu espírito santo, seu Emanuel;
porque esse homem já não age em seu nome pessoal, individual, mas age sempre em nome de Deus, do Deus imanente nele.
Enquanto o Lúcifer (intelecto) do homem liga a consciência de alguém, não está ela ligada; mas se o Lógos (razão, Cristo) do homem desligar a consciência de alguém, ela está realmente desligada, porque esse Lógos no homem é o mesmo Lógos em Jesus e o mesmo Lógos que no princípio estava com Deus e que é Deus. Já não é o homem que desliga, é o Cristo, vivo nele, que desliga.
Pensar e ensinar que essa iniciação cósmica do homem seja resultado dum determinado ritual litúrgico, ou que possa ser transmitida de pessoa a pessoa, ou transferida, é ignorar um dos dispositivos fundamentais da Constituição Cósmica do Universo. Se uma realidade espiritual fosse transferível de pessoa a pessoa, no plano individual, horizontal, deixaria o cosmos de ser o que é, um sistema de ordem e harmonia, e acabaria num horripilante caos de confusão e desordem; haveria uma espécie de ilegalidade ou contrabando no reino de Deus. Em hipótese alguma pode alguém receber ou herdar a experiência espiritual de outra pessoa, porque essa experiência é estritamente individual e deve ser adquirida individualmente pelo iniciando, embora outro, já iniciado, o possa ajudar externamente, removendo certos obstáculos e aplainando os caminhos para a experiência espiritual.
No caso que alguém me abrisse as portas do céu (se tal coisa fosse possível) sem que eu mesmo estivesse maduro para esse acontecimento máximo, eu, de fato, não estaria no céu, mas no inferno; porque, devido à minha imaturidade espiritual, me sentiria de tal modo desambientado no meio daquela companhia celeste se seres altamente espiritualizados que suspiraria pelo momento redentor de sair desse "céu infernal", a fim de encontrar um ambiente mais congenial, em algum "inferno celestial".
Só quem passou pela grande experiência divina e teve o seu encontro pessoal com Deus é que está em condições de entrar no céu e ficar nele – aliás, ele já está no céu, no reino de Deus, graças a essa mesma experiência, uma vez que o céu está nele.
O poder de ligar e desligar, de perdoar ou reter pecados não é transmitido nem transmissível no plano horizontal humano, mas advém ao homem idôneo pela vertical divina. Os nossos mestres, guias e educadores espirituais podem preparar esse nosso encontro com Deus, podem levar-nos até ao limiar do santuário, mas não nos podem introduzir nele.
Virgílio despede-se de Dante na fronteira entre o Purgatório e o Paraíso, e daí por diante é Beatriz que guia o poeta-filósofo. Virgílio é o homem físico-mental, profano, a consciência telúrica, experiente nas coisas da vida terrestre (inferno e purgatório), mas inexperiente nas coisas celestes. Virgílio é a inteligência "virgem", não fecundada pelo Espírito, pelo divino Lógos, pelo Cristo. Beatriz, a "beatificadora", é a Razão espiritual, o espírito divino, capaz de introduzir o homem nos divinos mistérios do paraíso.
Certos "Virgílios" humanos se arrogam o direito e privilégio de iniciar os viajores telúricos no reino de Deus, mediante determinados ritos externos, usurpando assim a prerrogativa que cabe a Beatriz.
Quem recebe o espírito cósmico (ou santo) é conduzido por Beatriz, pela razão, pelo Cristo, pelo Lógos universal, por Deus mesmo. O que ele liga ou desliga está ligado ou desligado por Deus; o que ele perdoa ou não perdoa está perdoado ou não perdoado por aquele que é a vida desse iniciado. "Recebei o espírito santo! A quem vós perdoardes os pecados são lhes perdoados; e a quem vós os retiverdes são lhes retidos. "
Analisamos a palavra portuguesa "perdoar". Mas convém não esquecer que nem o texto grego do primeiro século, nem mesmo o texto latino dos séculos subsequentes falam em "perdoar". O grego usa o vocábulo aphíemi, que quer dizer desligar, soltar, libertar. O latim usa a palavra demittere, que significa demitir, que é um sinônimo de soltar, libertar.
Quer dizer, o perdão é considerado como uma libertação ou um desligamento entre o ofendido e o ofensor. Quando alguém não se dá por ofendido pelas ofensas do ofensor, então ele se desliga, ele se põe numa outra dimensão de consciência: há um ofensor, mas não há um ofendido. O ofensor se acha no plano do ego ofendido; e o ofendido se acha no mesmo plano. Mas, se o suposto ofendido se tornar inofendível, então abandona ele o plano do ego e passa para a dimensão superior do Eu divino, que é inofendível. O ego é comparável com a água, que é "ofendível", isto é, contaminável pelo ambiente.
O Eu é como a luz, que é "inofendível", incontaminável pelo ambiente. "Vós sois a luz do mundo. " De maneira que, à luz do texto, o homem espiritual não perdoa propriamente as ofensas, mas ignora-as; desligou-se do plano do ego ofendível e subiu às alturas do Eu inofendível.
O ego vicioso, quando ofendido, se vinga.
O ego virtuoso, quando ofendido, perdoa.
O Eu crístico, se desliga da ideia de ser ofendido; está para além de vingança e perdoação. "Sede perfeitos assim como é perfeito vosso Pai que faz nascer seu sol sobre bons e maus e faz chover sobre justos e injustos. " "ISTO É O MEU CORPO – ISTO É O MEU SANGUE" Quanto mais intensamente cósmica é uma verdade do Evangelho tanto mais a inteligência humana, ainda totalmente telúrica, se desorienta em face dessa revelação.
É o que acontece, sobretudo, com aquilo que uns chamam a Eucaristia, e outros a Ceia do Senhor. Esse tópico cindiu a cristandade em campos adversos e, aparentemente, irreconciliáveis. A desarmonia creada no seio da cristandade por estas palavras de Jesus só é comparável a que nasceu das palavras "Tu és Pedro. . . " E essa discórdia é perfeitamente compreensível, uma vez que a nossa teologia é ainda visceralmente escolástica, intelectualista, telúrica – e neste plano não há nenhuma possibilidade de compreensão real, única suficiente e capaz de unificar as dissidências.
Acresce a agravante de que o ritualismo sacramental que uma grande parte da igreja cristã estruturou sobre o texto eucarístico é a base principal que, há séculos, garante a subsistência material, e, não raro, até a prosperidade financeira do clero. Se a interpretação desse tópico estivesse inteiramente divorciado do prestígio social e político e da prosperidade econômica do clero, seria relativamente fácil compreendermos o verdadeiro sentido dessas palavras e teríamos uma porta aberta para um congraçamento universal no seio das igrejas cristãs. Por ora, porém, estamos bem longe dessa solução feliz, porque a imensa maioria da humanidade cristã se acha ainda no estágio meramente intelectual-teológico. Mais fácil seria essa solução no setor do mundo leigo que no setor hierárquico da igreja, porque para o sacerdócio a religião representa uma profissão material, ao passo que para os fiéis em geral é um ideal espiritual.
Em vésperas de sua morte proferiu Jesus a mais profunda e misteriosa de todas as suas parábolas, não só em palavras, mas em palavras e fatos.
Expressou, num drama de inigualável verdade e beleza aquilo que com o seu corpo e sangue ia acontecer no dia imediato e o que com sua alma e divindade ia perpetuar-se através dos séculos e milênios.
Para compreender o mistério do pão e do vinho, seria necessário compreender primeiro o próprio Cristo.
Que é o Cristo?
Diz o quarto Evangelho que ele é o próprio espírito universal de Deus que se individualizou no Cristo cósmico e, mais tarde, se personalizou em Jesus, no qual "o Verbo se fez carne". Nesta forma individualizada é que o espírito universal de Deus é chamado o Cristo, isto é, o Ungido, aquele que foi totalmente penetrado do espírito divino.
O texto grego do primeiro século usa a palavra profunda e sublime da filosofia antiga "Lógos" (isto é, Razão, ou Espírito) para designar o espírito divino encarnado em Jesus. A tradução latina da Vulgata diz "Verbum", isto é, Palavra ou Verbo, como a mais concreta manifestação da Razão ou do Espírito.
Entretanto, esse mesmo Cristo, individualizado em Jesus, depois de terminado o seu ciclo terrestre, se ia universalizar no Espírito Santo.
Deus, em si mesmo, é "in-nato" (não nato, não individualizado).
Jesus Cristo é "intra-nato" (nascido para dentro do mundo individual).
O Espírito Santo é extra-nato (nascido para fora, universalizado através de toda a natureza do cósmico) [6].
- [6] A língua alemã presta-se admiravelmente para clarificar esta verdade: Gott ist un-geboren.
Christus ist ein-geboren.
Der Heilige Gist ist aus-geboren.
Em última análise, Deus, Jesus Cristo e o Espírito Santo são uma e a mesma realidade. Apenas as suas funções são diferentes.
Como pessoa física não podia Jesus estar com seus discípulos todos os dias até à consumação dos séculos – como o Cristo universalizado ele podia.
Por isto, ele se despersonalizou pela morte (assim como se havia personalizado pela encarnação).
Essa universalização do Cristo e consequente onipresença no tempo e espaço teria sido impossível se ele permanecesse aquele Jesus personal e de presença uni-local; porquanto a ubiquidade supõe a universalidade. Se ele não se despersonalizasse e universalizasse, poderia estar num só lugar e nunca poderia realizar o que exprimiu com as palavras: "Onde quer que dois ou três estiverem reunidos em meu nome, lá estou eu no meio deles"; ou então: "Ide pelo mundo inteiro – e eu estou convosco todos os dias até à consumação dos séculos. " Isto implica universalidade, onipresença.
Quando os discípulos estavam tristes com a próxima retirada do Mestre, disselhes ele: "Convém a vós que eu me vá, porque, se não for, não virá a vós o Espírito Santo; porque ele tomará do que é meu e vo-lo anunciará. " O Jesus da Palestina tornou-se o Cristo do universo.
O Jesus visível do primeiro século tornou-se o Cristo invisível de todos os séculos.
Ora, em véspera desse novo modo de ser, e para simbolizar essa sua despersonalização pela morte e universalização pela ressurreição, recorre Jesus a um símile tão profundo que até hoje os homens eruditos não o compreenderam e forjam interpretações segundo a imagem e semelhança do seu estado mental.
Que acontece quando ingerimos algum alimento, sólido como o pão, líquido como o vinho? O nosso organismo absorve ou assimila, não o alimento em sua constituição material; mas desintegra a matéria dos alimentos e dela extrai as "calorias" ou energias vitais. Essas calorias ou energias não são a matéria do alimento, mas a força imponderável neles contida; não o corpo, mas a alma da comida.
Para que o nosso organismo vivo possa vitalizar esses alimentos, é necessário que primeiro os destrua e desintegre – digamos, "mate" – o alimento, reduzindo-o a seus últimos componentes porque só nesse estado de total desintegração, ou "morte" é que o alimento pode ser reintegrado e revivificado pelo organismo e fazer parte integrante dele. Essa integração do alimento mineral, vegetal ou animal no organismo humano é uma espécie de "ressurreição" ou ressurgimento. O alimento "morreu" para o seu antigo estado mineral, vegetal ou animal – e "ressuscita" para um novo estado no organismo do homem. Por mais estranho que pareça, as calorias dos alimentos assimilados passam a fazer parte real do nosso Eu. De fato, no estado atual da nossa existência, não podemos pensar e querer sem o auxílio das calorias extraídas do alimento material. Nenhum alimento pode ressuscitar para essa vida superior sem que primeiro morra; para se universalizar em nosso corpo deve primeiro desindividualizar-se.
A integração supõe a desintegração.
Ora, Jesus, que possuia profunda intuição dos segredos da natureza, serviu-se deste fenômeno material para simbolizar uma realidade espiritual: ele, Jesus de Nazaré, não podia entrar na alma de seus discípulos sem que primeiro se desintegrasse pela morte voluntária a fim de se integrar em nós como o Cristo onipresente. Por isto, tomou ele nas mãos o pão e disse a seus discípulos que aquilo era como seu corpo, porque, ingerido por eles, faria parte deles; de modo análogo, o seu corpo, entregue à morte, se espiritualizaria de tal modo que partilharia da onipresença do espírito; o Jesus humano passaria a universalizar-se como o Cristo divino. O mesmo aconteceria com o vinho, símbolo de seu sangue, que, uma vez derramado pela morte, passaria a se universalizar para que os seus discípulos o pudessem assimilar espiritualmente. "A carne de nada vale – o espírito é que dá vida; e as palavras que vos tenho dito são espírito e são vida".
A Eucaristia, ou Ceia do Senhor, é, pois, a mais profunda e significativa parábola mística da morte e ressurreição de Jesus Cristo e é neste sentido que ele incumbe os seus discípulos de perpetuarem esse memorial, "até que ele venha", como diz São Paulo. Até que ele venha espiritualmente, porque materialmente já veio. Depois da vinda espiritual do Cristo cessa o simbolismo material, porquanto o símbolo físico encontrará o seu cumprimento no simbolizado metafísico.
A Eucaristia é para os viajores infantis, não para os adultos. Para estes, o Cristo já veio definitivamente; eles fizeram a comunhão crística.
Este sentido metafísico-místico da Eucaristia pode ser aplicado também no sentido ético, resultando na seguinte verdade profunda: Enquanto o homem não se "desintegrar" ou "despersonalizar", isto é, enquanto não deixar de ser egoísta e egocêntrico, não pode beneficiar a seus semelhantes, porque não é bom, e só pode fazer bem aquele que é bom. Só quando "morrer" para o seu Ego personal, físico-mental – sua cobiça, luxúria e orgulho – é que ressuscitará para o seu verdadeiro e divino Eu espiritual, que é essencialmente altruísmo, amor, benevolência universal.
O divino Mestre exprime esta grande verdade nos seguintes termos: "Se o grão de trigo não morrer ficará estéril; mas, se morrer, produzirá fruto abundante. " O apóstolo Paulo afirma de si mesmo: "Estou crucificado para o mundo, e o mundo está crucificado para mim. . . Morro todos os dias, e é por isto mesmo que vivo, mas já não sou eu que vivo – é o Cristo que vive em mim. " Quem não se desintegrar não se pode integrar.
Se a Eucaristia fosse compreendida e vivida deste modo, seria ela uma verdadeira "sagrada comunhão", uma união diária e permanente com Deus – em vez de ser apenas um rito sacramental, para uns e uma fonte de renda para outros.
Talvez nenhuma outra palavra e parábola de Jesus tenha sido tão mal compreendida e tão sacrilegamente profanada como este mistério máximo do seu Evangelho, eterno memorial da sua morte e ressurreição.
Quando farão os cristãos a sua sagrada comunhão com o Cristo – em espírito e em verdade?. . .
Se aceitarmos a doutrina tradicional de certa igreja sobre as ocorrências na última ceia; se aceitarmos ter Jesus celebrado a primeira missa, ordenado sacerdotes os 12 apóstolos e ter dado a primeira comunhão a eles, seremos obrigados a aceitar os maiores absurdos e as mais revoltantes blasfêmias.
Logo após a suposta primeira missa, um dos neo-sacerdotes e neocomungantes consumou o plano da traição, e logo depois se suicidou; outro neo-sacerdote e neo-comungante negou três vezes o divino Mestre, mentindo e jurando que não o conhecia e rogando pragas sobre si mesmo, se é que era discípulo dele; os outros neo-sacerdotes e neo-comungantes fugiram covardemente, deixando Jesus entregue a seus inimigos.
Se é pelos frutos que se conhece a árvore, então não é possível aceitarmos como autêntica uma árvore que tais frutos produziu. Logo, não é possível aceitar a suposição teológica de ter Jesus celebrado a primeira missa, ordenado os primeiros sacerdotes e ter dado a primeira comunhão a seus apóstolos, na santa ceia.
Tudo isto não passava de uma maravilhosa parábola, cujo significado espiritual se cumpriu na manhã do Pentecostes, quando 120 pessoas, homens e mulheres, comungaram realmente, não a carne e o sangue do Jesus humano, mas o espírito do Cristo divino, em espírito e em verdade, iniciando o verdadeiro cristianismo sobre a face da terra. "QUEM NÃO É POR MIM É CONTRA MIM" Na "Divina Comédia" de Dante ocorre uma cena não menos estranha que mística. O poeta e seu mentor, Virgílio, chegam às portas do Inferno. Diante da lúgubre entrada dos ínferos encontram enorme multidão de seres amorfos e anônimos, espécie de vultos nebulosos e moluscoides, de contornos indefinidos. Pergunta Dante:
– Quem são esses?
Responde Virgílio:
– "Estas são as almas que viveram sem censura nem louvor; não as acolheu o céu, para que não lhe empanassem o brilho; nem as engoliu o inferno, porque não eram dignas dele. . . Olha – e passa adiante!" É esta a imensa multidão dos homens moralmente indefinidos, nem frios nem quentes, porém mornos, que vivem ou vegetam sem censura nem louvor, entre o céu e o inferno, nas lúgubres penumbras da sua melancólica neutralidade. "Porque tu não és nem frio nem quente, mas morno – diz o espírito, no Apocalipse – vomitar-te-ei da minha boca!" A humanidade está repleta dessas almas amorfas, anônimas, penumbrais, indecisas entre o bem e o mal.
Quando Pilatos estava sentado no tribunal, naquela memorável manhã da primeira sexta-feira santa, envolvido no ruidoso processo contra Jesus, ainda indeciso – de súbito aparece um mensageiro enviado pela esposa do governador romano, Cláudia Prócula, entrega-lhe um recado, que dizia: "Nada tenhas que ver com esse homem justo, porque esta noite, em sonhos, sofri muito por causa dele. " Seguiu-se um momento de silêncio e suspensão. Depois, Pilatos mandou vir água, lavou as mãos diante do povo e declarou em público: "Eu sou inocente do sangue desse justo! vós lá vos avinde!" E proferiu a sentença de morte contra Jesus: "Seja crucificado!" Assim acabou a pretensa neutralidade de Pôncio Pilatos e Cláudia Prócula, esse casal de almas amorfas e indecisas. . . "Quem não é por mim é contra mim". . .
Em teoria, pode haver neutralidade; mas na prática é impossível: ninguém pode pairar indeciso e incolor entre o bem e o mal; se não favorece o bem favorece o mal, mesmo que se diga neutro. A neutralidade é profundamente má, e tanto maior é o mal que ela causa quanto menos parece ser má, e dificilmente se converte para o bem. Quem é frio, isto é, conscientemente mau, pode tornar-se quente, conscientemente bom; mas quem é morno, neutro, dificilmente se convence de que é mau, uma vez que ninguém lhe pode provar um mal determinado que tenha cometido. O mal que os neutros praticam é, sobretudo, a omissão do bem que deviam praticar – mas quem pode fazer da omissão um argumento e uma prova palpável contra o omissor? Como vivem sem censura nem louvor, esses seres furta-cores são praticamente inacessíveis a qualquer demonstração contrária à sua atitude nebulosa e penumbrista.
A mulher de Pilatos teve, naquela noite, uma visão estranha, que a fez sofrer muito e lhe deu a certeza de que o Nazareno era inocente. Mas, em vez de tomar atitude positiva a favor de Jesus e mandar dizer categoricamente ao marido: "Absolve de vez esse homem, porque ele é inocente!" ela pede covardemente que abra mão do processo, indeciso, e entregue o Nazareno aos caprichos da sinagoga hostil; convida o esposo à neutralidade. E Pilatos, externamente, atende ao pedido da esposa, lavando as mãos perante o povo e declarando-se não responsável pelas consequências da sua pretensa neutralidade.
E assim acabou nas sangrentas alturas do Calvário essa farsa duma neutralidade impossível entre o bem e o mal – acabou com a vitória do mal sobre o bem. . . "Quem não é por mim é contra mim. "
Certo dia, foi Jesus convidado ao jantar por um rabino judeu, de nome Simão.
Esse homem era ao mesmo tempo pró e contra Jesus, isto é, neutro. Convidou Jesus ao jantar, porque, como colega daquele outro rabi que chegara à cidade, mandava o bom-tom que o convidasse; mas intimamente era contra Jesus, porque sua doutrina não harmonizava com a teologia da sinagoga. E, nessa estranha dualidade de sentimentos, o fariseu não demonstrou ao Nazareno nenhuma das costumadas cortesias que a hospitalidade reclamava, nem sequer lhe ofereceu uma bacia com água e uma toalha para lavar e enxugar os pés empoeirados, depois de tirar as sandálias, que, segundo a praxe, ficavam fora da casa. O fariseu não quis ser nem bom nem mau para com seu hóspede; tentou guardar neutralidade, equilibrar-se entre o céu e o inferno, na dúbia penumbra daqueles que "vivem sem censura nem louvor".
Aparece então uma mulher que acabava de sair do inferno, recém-liberta de "sete demônios", e arromba decididamente as portas do céu, caindo aos pés do seu redentor como uma tempestade de fogo e amor. Essa não era neutra. Não quer saber se é bem-vinda nessa casa ou indesejável; o que ela quer é dar expressão pública à sua grande gratidão e a seu grande amor para com o Mestre que a salvara do inferno. E, nesse ímpeto de entusiasmo, supre a tempestade de fogo tudo que o morno rabino havia deixado de fazer: lava os pés do Mestre, não com a frieza impessoal da água, mas com o fluido quente e pessoal das suas próprias lágrimas; enxuga os pés do Mestre, não com alguma toalha fria e impessoal, mas com a sedosa maciez e eminentemente pessoal da sua linda cabeleira. Depois de limpos e enxutos, beija esses pés queridos do bom pastor e unge-os com perfumosa essência, cujo odor encheu a casa toda.
Todos estão escandalizados: o fariseu, os discípulos e o futuro traidor, Judas.
O fariseu, lá na sua torre de marfim de impecável legalidade, não compreende como um homem decente possa permitir e aceitar a apaixonada homenagem de uma mulher impura, oferecer-lhe os pés para beijos de amor em vez de lhe dar um pontapé de desprezo. Os discípulos acham que aquilo é desperdício.
Iscariotes arvora-se logo em advogado da pobreza e calcula de relance que aquele frasco de perfume precioso valia pelo menos trezentos denários, que se poderiam ter distribuído entre os pobres; acrescenta, porém, o evangelista, como que entre parêntesis, não era porque lhe interessassem os pobres, mas porque Judas era ladrão e, portador da bolsa, da turma, surripiava o que entrava.
O único que aprova integralmente a atitude da Madalena é Jesus.
Na casa do fariseu Simão estava condensada a humanidade de todos os tempos e países: o céu de Jesus e Madalena, o inferno de Judas, e aquela zona anônima dos semi-bons e semi-maus representada pelo fariseu e pelos onze discípulos de Jesus – ao que não eram dignos do céu nem do inferno. . .
Em certa ocasião, um jovem declarou a Jesus que estava disposto a segui-lo aonde quer que fosse. Jesus, porém, o repeliu com as palavras: "As raposas têm cavernas e as aves do céu têm ninhos – mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça. " E o candidato, aparentemente positivo, mas realmente neutro, desapareceu, porque não se sentia assaz, decidido a ser mais pobre que as raposas e as aves. . .
Outro quis seguir o Nazareno, mas pediu permissão para primeiro voltar à casa e celebrar uma festa de despedida – ao que o Mestre lhe declarou categoricamente: "Quem lança mão ao arado, e olha para trás não é idôneo para o reino de Deus. " E também este candidato indeciso desapareceu do cenário. A sua atitude não era resolutamente a favor do bem, e por isto não era esse homem idôneo para o reino de Deus. "Quem não é por mim é contra mim – quem não recolhe comigo, dispersa". . . "ENQUANTO ORAVA, TRANSFIGUROU-SE DIANTE DELES" Três discípulos seletos – Pedro, Tiago e João, o "círculo esotérico" do colégio apostólico – presenciaram o misterioso fenômeno da transfiguração de Jesus.
Os outros nove ficaram ao pé do monte, como, mais tarde, ficaram fora do horto de Getsêmane para não assistirem à agonia do Mestre. Só quem viu tamanha glória pode suportar tamanha inglória. . .
Era ao pôr do sol quando os quatro atingiram o cume do Tabor, que quer dizer "altar". Distanciou-se dos discípulos o Mestre e entrou numa intensa comunhão com Deus. Enquanto orava, diz o evangelista, mudou-se a expressão do seu semblante. O seu rosto era brilhante como o sol, e as suas vestiduras eram brancas como a neve, resplandecendo com tanta alvura como nenhum lavandeiro da terra as poderia branquear. Ergueu-se aos ares, e apareceram ao lado dele Moisés e Elias, falando com ele sobre a morte que ia padecer em Jerusalém. E uma voz soou dizendo: "Este é meu filho muito querido, no qual pus a minha complacência! Ouvi-o!" As trevas da noite envolvendo a terra – as glórias do céu iluminando os espaços. . .
Moisés, o grande legislador; Elias, o exímio profeta – todo o Antigo Testamento homenageando o iniciador da Nova Aliança. . . A inteligência e o coração, sintonizados com a suprema Razão, o divino Lógos, o Cristo de ontem, de hoje e de sempre. . .
E no meio dessas glórias fala-se em sofrimento e morte. . .
E lá embaixo, os três discípulos, ainda presos no mundo dos sentidos, caem como que fulminados pelos esplendores do Cristo, que por uns momentos permitiu que a luz da divindade rompesse pelo invólucro opaco da sua humanidade.
– "Senhor! – exclama Simão Pedro – que bom que é estarmos aqui!. . . Se quiseres, vamos armar aqui três tendas, uma para ti, uma para Moisés e uma para Elias. . . " Três tendas para os três que não necessitavam de tendas – e esqueceu-se dos três que ainda tinham mister habitar em tendas terrestres. . .
Mas não sabia o que dizia, de tão transido de terror e de gozo. . . Só sabia que felicidade reclama eternidade, profunda, profundíssima eternidade. Felicidade que não seja eterna não é felicidade, é tormento. A perspectiva do fim do gozo deita gotas de absinto na beatitude. . .
Orar, como já dissemos, quer dizer literalmente "abrir a boca", abrir a consciência rumo ao Infinito.
Por via de regra, a luz do mundo, que é o Cristo, estava encoberta pelos invólucros opacos da natureza humana de Jesus. Nessa personalidade habitava toda a plenitude da Divindade; mas o Cristo-lógos, ao encarnar na pessoa humana de Jesus se havia esvaziado dos esplendores da Divindade, e, por fora, parecia simples homem. Por dentro desta humanidade, porém, continuava a existir a luz da Divindade.
Só de vez em quando permitia Jesus que o seu Cristo-luz transparecesse através do seu Jesus-matéria. E isto acontecia quando a sua consciência crística atingia a mais alta voltagem de intensidade, como aconteceu no monte Tabor, quando ele estava em profunda e prolongada sintonização com a Divindade. Então a matéria do seu corpo humano se desmaterializou e lucificou a tal ponto que a materialidade do seu corpo não era mais perceptível, e todo ele era uma deslumbrante figura de luz. Os evangelistas não encontram termos para descrever essa luminosidade de Jesus; dizem que era tão luminoso como o sol meridiano em pleno fulgor; dizem que as suas vestimentas eram tão alvas como nenhum lavandeiro poderia alvejar uma roupa.
Moisés escreveu que no primeiro período da creação Deus fez a luz, e da luz vieram todas as coisas materiais. Cerca de 3. 500 anos depois desta intuição de Moisés, escreveu Einstein que a matéria prima do Universo, os 92 elementos da química, são luz.
Mas além da luz física existe a luz metafísica, que a ciência ignora, mas que a sapiência conhece por intuição.
A luz metafísica é a consciência do Eu divino no homem. Quando o homem atinge o zênite da consciência "Eu e o Pai somos um", então a própria matéria do seu corpo começa a lucificar-se aos poucos. Por vezes, essa luz metafísica se manifesta fisicamente em forma duma aura, ou auréola, ao redor da cabeça.
Outras vezes, essa luz envolve todo o corpo do homem. Por vezes, essa luz neutraliza a gravidade natural do corpo, fazendo o homem flutuar livremente no espaço. Estes fenômenos ocorreram no monte Tabor durante a transfiguração do corpo de Jesus. E os três discípulos Pedro, Tiago e João presenciaram este fenômeno e foram por ele a tal ponto penetrados que perderam a sua consciência humana normal, e Pedro exclamou: "Que bom que é estarmos aqui. . . vamos armar aqui três tendas. . . uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias. . . ".
No Tabor, a irradiação luminosa de Jesus alargou os seus círculos ao ponto de envolver os discípulos que estavam a certa distância. E o envolvimento e a penetração da luz metafísica de Jesus deu aos três uma espécie de cosmovisão, de maneira que eles viram também os corpos imateriais de Moisés e Elias, esses dois dos quais afirmam os livros sacros que não haviam morrido, mas tinham transformado o seu corpo material num corpo imaterial.
E, estranhamente os três transfigurados falavam da próxima desmaterialização ou morte do corpo de Jesus.
Jesus, porém, ao descer do Tabor proibiu os seus discípulos de falarem do ocorrido, até que tivessem presenciado a rematerialização do corpo de Jesus.
O homem profano não pode compreender semelhante fenômeno, que a luz metafísica do espírito tenha poder sobre a física da matéria.
Toda a vez que o homem "ora" de fato, abrindo a sua consciência rumo ao Infinito, aumenta ele a sua lucificação potencial. Orar é a mais importante realidade da religião.
Muitos falam de Deus.
Alguns falam com Deus.
Poucos sabem calar-se diante de Deus para que Deus lhes possa falar – poucos sabem orar. "NEM EM ISRAEL, ENCONTREI TÃO GRANDE FÉ" A palavrinha "fé" (fides, pistis) tem, hoje em dia, dois sentidos totalmente diferentes e divide a humanidade espiritual em dois campos. O que, comumente, se chama fé em nossos tratados teológicos e livros devocionais é a aceitação de uma doutrina ou realidade espiritual em virtude do testemunho de uma pessoa considerada competente e fidedigna. O crente crê numa determinada doutrina ou realidade, embora não tenha dela a menor experiência espiritual, direta; encampa cegamente a experiência alheia. O crente continua a ser um "profano" ou "exotérico", aceitando, porém, a experiência de um "iniciado" ou "esotérico".
Para que essa espécie de fé seja razoável, supõe-se tacitamente que, pelo menos, uma pessoa tenha tido experiência direta e imediata da realidade espiritual. Se não existisse no princípio dessa longa cadeia de crentes pelo menos um iniciado ou experiente, não teria valor toda essa subsequente série de elos de crença dos inexperientes.
A fé, tomada neste sentido, como se vê, está baseada num ato de boa vontade: o crente ignora pessoalmente a existência de um mundo invisível;
contudo, benevolente como é, admite a realidade do mesmo, porque fulano ou sicrano lhe afirmam a existência desse mundo; e o crente admite que esses seus mestres não se tenham enganado nem o queiram enganar.
É esta a fé que, geralmente, se descreve nos livros religiosos. Cremos em Deus e na vida eterna, porque os profetas da lei antiga, os grandes gênios religiosos da humanidade e, sobretudo, Jesus o Cristo afirmam que Deus existe e há uma vida eterna.
Entretanto, essa "fé em segunda mão" pouco ou nada tem que ver com o que Jesus proclama como fé. O caso do centurião romano de Cafarnaum ilustra tipicamente o que o Nazareno entendia por fé. Afirma ele que nem mesmo em Israel, entre o povo e os sacerdotes oficialmente religiosos, encontrou tão grande fé como no coração desse oficial gentio.
Será que o centurião cria em algum determinado dogma ou doutrina teológica?
Será que admitia a realidade do mundo invisível pelo fato de outros lhe terem contado da existência desse mundo?
Não, nada disto acontecia com centurião. Não tinha fé neste sentido derivado.
O que ele tinha era experiência direta e imediata do mundo das forças invisíveis, como claramente revelam as suas palavras e como dá a entender a entusiástica exclamação de Jesus. Como o próprio Cristo possuía em altíssimo grau essa experiência direta de Deus, essa fides, ou fidelidade, deve ele ter encontrado uma espécie de afinidade espiritual entre si e o oficial romano.
Acha desnecessário que Jesus vá à casa dele, onde jazia de cama seu servo doente; sabe por experiência íntima que o poder de Jesus não está limitado à esfera da sua presença física, visível; sabe que o Cristo, o eterno Lógos, o Verbo que encarnou em Jesus, é onipresente, presente também lá onde jaz seu servo doente, porque a presença e atuação do Cristo não depende de tempo e espaço; é universal, uma vez que o próprio espírito, de Deus, é a vida que tudo permeia, a luz que ilumina todo homem. Basta, portanto, que o Jesus humano, de presença local e restrita, apele para o seu Cristo divino, de presença universal e irrestrita, imanente em tudo, apesar de transcendente a tudo.
Por isto, diz o centurião, não é necessário que tu, o Jesus visível e físico, vás à minha casa para curar o meu servo; cura-o daqui mesmo onde estás, apela para o Verbo que em ti está, porque o teu divino Cristo, onipresente, está presente lá onde meu servo jaz em tormentos.
As traduções comuns deste episódio fazem o centurião romano dizer: "Dize tão somente uma palavra, e meu servo será curado. " Mas, tanto no texto grego do primeiro século como também na tradução latina está: "Dize ao verbo" (Logô, Verbo, e não Logon, Verbum); a palavra Verbo está no dativo, e não no acusativo, supondo que seja um ser consciente, e não uma palavra inconsciente. Como se poderia falar à palavra, ao Verbo, se se tratasse duma coisa inconsciente, de uma simples vibração aérea?
E que motivo teria a grande admiração de Jesus, se o centurião romano se referisse apenas a essa espécie de magia ritual, a cura de seu servo mediante uma telepatia verbal?
Para ilustrar essa sua fé experiencial, recorre o oficial romano a uma comparação não menos misteriosa do que genial; diz que sua autoridade de superior militar faz com que seus subordinados executem imediatamente qualquer ordem recebida – do mesmo modo, quer ele dizer, a moléstia de meu servo obedecerá infalivelmente a uma ordem do Cristo, uma vez que todas as forças da natureza veem no Cristo a mais alta manifestação de Deus, a que tudo presta obediência.
O centurião vê o Jesus visível – e tem fé no Cristo invisível, ou antes, sabe por uma experiência íntima que esse Cristo, visível em Jesus, ultrapassa todas as fronteiras dessa presença visível, podendo, pois, agir a qualquer distância do Jesus visível.
O centurião é, sem dúvida, um dos grandes videntes e místicos do Evangelho.
Sabe por vivência própria o que outros admitem apenas por uma crença alheia.
É por isto que Jesus se enche de viva admiração e grande entusiasmo em face das palavras e da atitude do oficial romano. Nunca, nem mesmo entre os eruditos teólogos da sinagoga de Israel, encontrara ele uma experiência espiritual dessa pureza, profundidade e amplitude.
A teologia de nossas igrejas está marcando passo, há quase dois mil anos, no mesmo ponto em que se achava a teologia da sinagoga, no tempo de Jesus.
Quando Jesus interroga aos mestres de Israel: "Que vos parece do Cristo?" respondem com uma afoiteza só comparável à sua grande ignorância: "É filho de David. " Ao que Jesus lhes faz ver que o próprio David, cerca de mil anos antes do nascimento de Jesus chama o Cristo "meu senhor"; se, pois, é seu "senhor", como é que é seu "filho"? E nenhum dos eruditos teólogos soube dar resposta a essa pergunta. É que identificavam o Jesus humano com o Cristo divino, o veículo visível com o conteúdo invisível.
Quase o mesmo acontece aos nossos dias! A expressão "Jesus Cristo" – em vez de "Jesus, o Cristo" – não permite aos nossos mestres solver o problema.
A ideia de que o divino Lógos, que a princípio estava com Deus e que era Deus, possa ter estado presente no mundo muito antes que a pessoa de Jesus lhe oferecesse um canal e veículo de manifestação visível – essa ideia é rejeitada por muitos como "não ortodoxa". O quarto Evangelho afirma explicitamente que a luz do eterno Lógos "ilumina a todo homem que vem a este mundo", mesmo àqueles milhares e milhões que viveram antes do nascimento de Jesus e que ainda hoje vivem sem jamais terem ouvido proferir este nome. A presença e atuação do Cristo eterno e onipresente não está necessariamente ligada à presença ou ao conhecimento de Jesus.
Só um conhecimento direto do Cristo, adquirido, não pelo estudo analítico do intelecto, mas pela intuição espiritual da razão, é que pode fazer compreender realmente o sentido profundo das palavras do centurião romano de Cafarnaum. "EU VIM PARA LANÇAR FOGO À TERRA – E QUE QUERO SENÃO QUE ARDA?" Segundo estas palavras do Mestre, o Evangelho de Cristo, o verdadeiro Cristianismo, é fogo ardente.
Fogo é luz, calor, energia.
Luz é símbolo de sabedoria, compreensão espiritual.
Calor simboliza amor, simpatia, entusiasmo.
Energia realiza praticamente aquilo que a razão compreendeu como Verdade e o coração ama como Beleza.
Nada se realiza dinamicamente que não se tenha compreendido experiencialmente e amado entusiasticamente. Compreensão e amor são as duas asas para as grandes realizações. Onde há compreensão e amor tudo é possível, nada é impossível.
Quando o discípulo de Cristo compreende o que é o Cristo e seu reino não pode deixar de amar entusiasticamente essas grandezas, porque a Verdade aparece então como Beleza, e esta Verdade compreendida pela razão e amada pelo coração como Beleza gera tão intensa Felicidade que o homem se sente irresistivelmente impelido a realizar dinamicamente aquilo que compreende e ama. Não é possível compreender a Verdade como Beleza e amar a Beleza como Verdade sem as transformar em realidades concretas no plano horizontal da vida. Toda mística genuína é realizadora, ativa, dinâmica. O verdadeiro místico é necessariamente dinâmico, porque se sabe invulnerável e sempre vitorioso no essencial, embora nos secundários, nos resultados externos e palpáveis, pareça, por vezes, derrotado; ele sabe que é absolutamente inderrótavel, e isto lhe dá irresistível coragem e intrepidez em todas as suas realizações em prol do reino de Deus.
Enquanto a Verdade é apenas entendida, perifericamente, pela luz fria da inteligência, ela não atrai, não fascina, porque parece vaga, longínqua, incolor, teórica, austera, uma espécie de região polar, um vasto campo de neve e gelo palidamente iluminado pela luz fria e fantástica da lua. Mas logo que a Verdade passa a ser compreendida vitalmente pela razão, ela adquire cores, vida, beleza – e fundem-se então numa só realidade a Verdade e a Beleza. E em face desse consórcio do verdadeiro e do belo, o homem se sente empolgado por uma força metafísica de possuir a Verdade e gozar a Beleza do reino de Deus – e logo todas as coisas da vida presente, mesmo as que pareciam difíceis, se tornam fáceis e deleitáveis; o jugo amargo da disciplina se torna suave, e seu peso se torna leve. "A verdade – disse Mahatma Gandhi – é dura como diamante e delicada como flor de pessegueiro. " "Eu vim para lançar fogo à terra – e que quero eu senão que arda?"
O culto do fogo e da luz é antiquíssimo. Se há uma idolatria desculpável, é esta a mais desculpável de todas: a adoração do sol, e, em geral, do fogo e da luz.
Em todos os tempos, o homem sentiu ou adivinhou obscuramente o que os cientistas da Era Atômica acabam de provar claramente: que a luz é a base de todas as coisas do mundo físico. Hoje em dia, sabemos que os 92 elementos do sistema periódico da química não são outras tantas realidades distintas, senão apenas 92 manifestações várias de uma e a mesma realidade fundamental, que Einstein e outros entendidos em física nuclear chama "luz", confirmando cientificamente o que o autor de Gênesis já sabia intuitivamente quando escrevia: "No primeiro dia Deus creou a luz". E desta luz, segundo Moisés e Einstein, nasceram todas as outras coisas, energias e matérias, do universo físico. A luz é a mãe de todas as coisas. Todas as coisas são lucigênitas, filhas da luz. A matéria é "energia congelada", e as energias são "luz condensada". Quanto mais condensada é uma coisa, tanto mais material;
quanto menos condensada, tanto menos material. A luz possui condensação mínima, e, por isto, expansão máxima, isto é, presença; a luz possui onipresença no plano do universo material; ela é imanente em todas as coisas e todas as coisas são feitas de luz, lucigênitas. A luz é a mais imaterial de todas as coisas materiais, e, por isto mesmo, o mais perfeito símbolo da Divindade. Em todos os livros sacros da humanidade Deus é comparado à luz: "Deus é luz, e nele não há trevas. " "Eu sou a luz do mundo, quem me segue não anda em trevas. " Quando Jesus diz que veio lançar luz à terra, afirma simbolicamente que veio permear do espírito de Deus todas as coisas do mundo de Deus. Esse espírito divino, é verdade, já existe no mundo, porque está imanente em todas as coisas, também no homem, porquanto Deus é aquele Ser "no qual vivemos, nos movemos e temos o nosso ser", como Paulo de Tarso disse aos filósofos de Atenas.
Mas, falta que esse espírito de Deus presente e imanente em todas as coisas se torne consciente, plenamente consciente, no homem. A luz do divino Lógos, como diz o quarto Evangelho, "ilumina a todo homem que vem a este mundo";
mas nem todos os homens são conscientes dessa luz do Cristo interno;
somente "àqueles que o recebem dá-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus". Somente aqueles nos quais o Cristo potencial e latente se torna um Cristo atual e manifesto "renascem pelo espírito" e "podem ver o reino de Deus".
Não basta que o fogo de Cristo esteja presente em cada homem; é necessário que "arda", que se atualize, que se torne consciente e permeie toda a vida do homem.
Toda lenha, e qualquer outro combustível, é fogo potencial; mas só arderá quando um fogo atual dele se aproximar e atualizar o fogo potencial latente no combustível. Uma vez iniciada a ignição – mesmo por uma chama pequenina de fogo atual – estabelece-se a misteriosa "reação em cadeia": um fogo atual atualiza o fogo potencial, seu vizinho, e esse, devidamente atualizado, atualiza o combustível mais próximo, e assim por diante, até se estabelecer imenso incêndio de fogo atual. E este continuará sem cessar enquanto houver material combustível, isto é, fogo potencial capaz de ser atualizado.
Basta que uma única alma humana desperte para a realidade do seu Cristo interno, que é o Cristo eterno – e logo se inicia um novo incêndio cósmico, que vai alastrando, empolgando outras almas em gestação espiritual, e todas, atingidas pela mesma luz, dão à luz o Cristo latente nelas – e a "reação em cadeia" prossegue, interminável, iluminando e acalentando as almas do mundo inteiro, até que o reino de Deus seja proclamado por toda parte.
Onde quer que exista uma alma humana capaz de ignição espiritual, uma alma em estado adiantado de gestação crística, lá se operam estupendas maravilhas. De nada valem organizações impessoais, jurídicas, burocráticas, sociais, por mais perfeitas e bem excogitadas, se lhes faltar uma pessoa humana, um Eu, uma alma viva; porque não são as coisas, mas tão-somente as almas que podem iniciar e propagar esse divino incêndio; as coisas não são incendiáveis em si, não podem "pegar fogo"; isto é privilégio das pessoas, das almas humanas. É, pois, trabalho perdido querer promover movimentos de "reavivamento" por meio de organizações eclesiásticas ou técnicas burocráticas. Esse material não é combustível, e o fogo do Cristo não vai romper em viva chama nas coisas impessoais. É necessário e suficiente que haja pelo menos uma alma incendiável – algum Paulo de Tarso, algum Francisco de Assis, algum Sundar Singh, algum Mahatma Gandhi, algum Albert Schweitzer, ou outra alma disposta a fazer nascer dentro de si o Cristo e depois irradiá-lo pelo mundo.
O espírito do Evangelho é essencialmente ígneo. O fogo atua extensivamente na razão direta da sua intensidade. Não pode produzir efeitos externos senão em virtude da sua causa interna. O mais esplêndido fogo artificial, pintado, não produz efeito de fogo, não ilumina, não acalenta, não tem força – ao passo que o mais humilde fogo real é irresistivelmente poderoso, quando encontra no seu caminho fogo potencial, isto é, material combustível ao qual possa comunicar a sua própria natureza. "Se tiverdes fé, ainda que seja do tamanho dum grão de mostarda, nada vos será impossível. " Se tiverdes fogo, por mais pequenino, tudo será incendiável.
O fogo artificial, apenas pintado numa tela, é uma fé crida, mas não uma experiência vivida, que é fogo real. O que apenas se crê vagamente, intelectualmente, eclesiasticamente, não é fogo real, não ateia incêndios, nem no próprio crente, nem nos outros, porque com fogo pintado não se pode atear fogo real.
O fogo que o Cristo veio lançar à terra é fogo real, vivo, dinâmico, é experiência direta e imediata de Deus, é o contato pessoal com o Cristo, é a gloriosa vivência do reino de Deus.
Naturalmente, para que esse fogo ateie incêndios é necessário que haja suficiente combustível na alma do homem. As cinco virgens tolas tentaram acender as suas lâmpadas, mas não o conseguiram, porque não havia combustível, azeite, nas mesmas – e ficaram nas trevas. O combustível é a vida ética do homem. Se esta não existir, nunca haverá luz permanente na alma. Não posso atear fogo num montão de pedras frias, nem com um pequeno fósforo, nem com uma grande tocha, porque a pedra não oferece combustível.
A moral pré-mística, difícil e dolorosa, é necessária para que possa vir a ética pós-mística, fácil e deleitável. A cruz telúrica, pesada e sangrenta, tem de preceder à cruz cósmica, leve e luminosa. Era necessário que o Cristo sofresse tudo aquilo, para "assim entrar em sua glória". "Eu vim para lançar fogo à terra – e que quero eu senão que arda?". . .
"A VIDA ETERNA É ESTA: QUE OS HOMENS TE CONHEÇAM, Ó PAI. . . " Não é possível compendiar em termos mais precisos e concisos a verdade fundamental da humanidade.
Que é que mais deseja o homem?
Existência eterna?
Não! Vida eterna.
Todas as coisas existem eternamente, sem princípio nem fim – mas nem todas têm vida eterna, isto é, a consciência do seu eterno existir.
Não há início absoluto nem fim absoluto de coisa alguma, nem de Deus nem dos seus mundos. O SER de Deus e das suas creaturas é eterno, embora, o existir dessas últimas seja temporário. Em Deus tudo é, mesmo antes de existir. Existir (de ex e sistere – estar de fora) é um efeito do SER. Antes de existirem, todas as coisas do mundo SÃO, e depois de deixarem de existir, continuam a SER, não já como indivíduos, sim como fundidos na grande Realidade Universal.
Não há creação nem aniquilamento absoluto – toda creação e aniquilamento são processos meramente relativos. Nascer é passar do estado universal para o estado individual; morrer é passar do estado individual para o estado universal.
Mas não é isto que chamamos vida eterna.
Vida eterna é a eterna consciência do Eu, a interminável perpetuação da consciência da identidade do Eu. Onde não há perpetuação da Eu-consciência não há vida eterna, embora haja existência eterna.
Vida eterna é incomparavelmente mais que existência eterna. É uma existência auto-consciente.
Não me interessa se vou ou não vou existir eternamente; interessa-me unicamente se vou viver eternamente.
O existir é comparável à luz, essa creatura inconsciente.
O viver, porém, é como que uma luz consciente.
A vida eterna não é um estado de ser, mas um processo de agir. Não é uma realidade estática, é uma realidade dinâmica. Vida não é passividade inerte, é atividade vibrante. Vida é conhecer. Vida eterna é eterno conhecimento.
Viver eternamente é conhecer eternamente. Mas, como o cognoscente é finito, e o cognoscível é infinito, jamais o cognoscente chegará ao termo final da sua jornada cognoscitiva. Por mais que conhece, sempre lhe resta infinito a conhecer. Em ponto algum da sua jornada evolutiva encontrará "luz-vermelha" na estrada, "trânsito impedido". Sempre terá diante de si a "luz verde" de "trânsito livre". Quanto mais o homem conhece a Deus, mais o deseja conhecer, porque vai "de glória em glória", como diz Paulo de Tarso.
Se o homem finito chegasse algum dia a conhecer plenamente o Deus Infinito, ou o homem se teria infinitizado, ou Deus estaria finitizado. Nenhum dos dois processos é possível. Entre o finito do cognoscente e o Infinito do cognoscíve " – ou incognoscível – vai uma distância infinita.
Nesse incessante bandeirismo do espírito, rumo a Deus, é que consiste o fascínio da vida eterna. A consecução da meta final seria morte eterna, absorção do indivíduo pelo Universal, de relativo pelo Absoluto, do finito pelo Infinito, da parte pelo Todo. Se eu me diluísse em Deus, assim como uma pequena onda se dilui no grande Oceano, não seria eu imortal, mas tãosomente Deus, porque eu não existiria depois.
O homem não dilui em Deus, mas integra-se em Deus.
Há dois sistemas filosóficos que destroem o conceito da imortalidade do homem: o materialismo, que destrói a imortalidade por deficiência – o panteísmo, que o destrói por excesso. O materialismo ensina que a alma é matéria e, como tal, se decompõe de deixa de existir como um todo. O panteísmo ensina que o homem é Deus, e, algum dia, perderá a sua individualidade no imenso nirvana do Universal e deixará de existir individualmente. Nem no materialismo nem no panteísmo há imortalidade do homem no sentido verdadeiro.
O Evangelho do Cristo, porém, não é materialista nem panteísta. Para ele, o homem individual nunca deixará de existir; a diferença entre a nossa vida individual de hoje e a nossa vida individual de amanhã está em que hoje a nossa individualidade não está permeada pela Universalidade, ao passo que, um dia, esta mesma individualidade será totalmente penetrada da divina Universalidade, assim como um límpido cristal é inteiramente permeado de luz solar, embora o cristal continue a ser o que é e sempre foi, o cristal, ele mesmo.
Não é, pois, o sujeito cognoscente que vai se diluir no objeto cognoscível, mas este penetrará de tal modo aquele que o sujeito (homem) se tornará plenamente penetrado pelo objeto (Deus). O homem cósmico se diviniza, mas não se deifica.
Só Deus é, fora dele nada é. "Eu sou o que sou", Yahveh, eu sou aquele que simplesmente é, e é com infinita necessidade.
Dizer a um profano que só Deus é, é dizer o maior absurdo. Este aparente absurdo, porém, encerra a maior das verdades.
Só Deus é – eu (o meu eu individual) não sou, eu apenas existo.
O Universal é, o individual apenas existe.
O que existe começou a existir e pode acabar de existir – mas o que é nunca poderá deixar de SER. O existir é apenas um fenômeno temporário do eterno SER.
O meu SER eterno, meu espírito, é idêntico a Deus; mas o meu existir temporário é inferior a Deus, porque é apenas uma das inumeráveis manifestações da eterna Divindade. Mas, se o meu eterno SER penetrar totalmente o meu temporário existir, também este pequeno e efêmero existir adquire eternidade, graças ao grande e eterno SER.
Todo o homem é imortal potencialmente, mas não atualmente. A imortalidade atual é uma conquista, e não um presente de berço. Essa imortalidade atual é que é a vida eterna em toda a sua plenitude.
Atualizar a sua imortalidade potencial – é esta a grande e única tarefa do homem aqui na terra. É isto que Jesus chama "renascer pelo espírito".
Esse renascimento pelo espírito, essa conquista da imortalidade atual, esse ingresso na vida eterna – como é que se realiza?
Realiza-se quando o homem, penetrando nos abismos do seu ser, descobre a sua identidade essencial com Deus, e, depois dessa descoberta, faz penetrar toda a sua vida pela luz e força dessa verdade fundamental. A primeira parte desse processo chama-se mística, a segunda parte chama-se ética. Do consórcio da mística e da ética resulta o crístico. Verdade é que também existe uma ética antes dessa mística, mas é uma ética precária, dolorosa e sem sólida garantia de perpetuidade, como tudo que é difícil e sacrificial. A ética pré-mística se chama moral. Mas a ética que nasce da mística – quer dizer, a vida oriunda da experiência da nossa identidade com Deus – é uma ética diferente daquela primeira, porque é espontânea, sem nenhuma dificuldade nem sacrifício. Deus é bom com infinita felicidade e gozo. Por isto, todo o homem que vive a sua identidade com Deus é necessariamente bom com felicidade e gozo. A ética difícil ou moral é filha de um dualismo, isto é, nasceu da ilusão de que o homem e Deus sejam duas realidades essencialmente diversas; é uma pseudo-ética que crê apenas num Deus transcendente, mas não tem experiência direta do Deus imanente. A fé num Deus transcendente torna o homem bom, mas dolorosamente bom, porque está baseada na ideia de um Deus distante, longínquo, separado do homem. Somente quando o homem ultrapassa o seu velho dualismo e verifica que o Deus transcendente e longínquo é, ao mesmo tempo, um Deus imanente e propínquo, só então é que ele entra na vivência de um grande monismo, que não nega a transcendência de Deus, mas acrescenta-lhe a imanência. À luz do meu existir dualista, Deus é apenas transcendente, porque é infinitamente maior do que esse existir, e por isto parece sempre um Deus longínquo em que se deva crer compulsoriamente; é a voz austera da lei: Tu deves! Mas quando a essa fé na transcendência longínqua de Deus se associa a vivência da sua imanência propínqua, em virtude do meu SER monista, da minha identidade essencial com Deus, então a austeridade da lei do compulsório dever se transforma na suavidade de um espontâneo querer, que é amor. E com essa experiência íntima do Deus em mim, da minha própria divindade essencial, toda amargura da moral se transforma em doçura, a amarga medicina cede lugar ao doce manjar, e o homem, assim remido, quer o que deve, executa com espontâneo amor os imperativos categóricos da lei compulsória. Quer dizer que para esse homem que passou pela experiência mística a lei passa a ser amor, o dever passa a ser querer, o difícil passa a ser fácil. Esse homem cumpre o conteúdo da lei como os outros homens bons, mas não o cumpre como eles. Cumpre o mesmo, de um modo diferente. Verifica que o jugo de Cristo é suave e que seu peso é leve; carrega com leveza as coisas pesadas, faz com suavidade as coisas amargas, estende arco-íris de sorrisos sobre dilúvios de lágrimas.
Em última análise, o verdadeiro Cristianismo não consiste em ser bom e fazer o bem – consiste essencialmente em ser perfeito, isto é, risonhamente bom e em fazer jubilosamente todo o bem que faz a seus semelhantes. A moral é como uma máquina de aço, pesadíssima; o homem tristonhamente bom, o discípulo da moral pré-mística, faz funcionar pesada e ruidosamente esta máquina pesada - mas o discípulo da ética pós-mística, o homem risonhamente bom e perfeito, faz funcionar esta pesada máquina com a leveza de um sopro, com o silêncio da luz e com a exultante felicidade do amor.
A vida eterna é, pois, uma bondade feliz, ou uma felicidade cuja plenitude transborda em torrentes de bondade.
Todo homem que, deste modo, atualiza, pela mística e ética, a sua imortalidade potencial transpõe um abismo decisivo e se liberta definitivamente do pecado e da morte metafísica.
Também, como poderia ainda pecar – isto é, desamar a Deus – quem sabe por experiência que ele e o Pai são um?
E, uma vez chegado ao conhecimento intuitivo dessa sua essencial identidade com Deus, como poderia esse homem ainda recear a morte? O temor da morte nasce do dualismo, isto é, da ignorância de que a essência do homem é idêntica a Deus. A experiência mística, sendo a suprema verdade, acaba com toda a ignorância e todo o erro sobre Deus e o homem. Verdade é que o seu existir individual poderia morrer, porque não é idêntico a Deus; mas, uma vez que esse existir individual foi totalmente penetrado pelo SER universal de Deus, segue-se que nem esse existir individual pode morrer, enquanto não se separar do SER universal. Mas, por que razão havia esse existir individual do homem de divorciar-se do SER universal de Deus? A integração do pequeno existir no grande SER é acompanhada de tão intensa felicidade que o homem nem sequer pode ter o desejo de voltar atrás, separar-se novamente do SER divino e tornar a ser infeliz como antes dessa integração. Há um caminho do ser-infeliz para o ser-feliz, mas não há caminho do ser-feliz pra ser-infeliz. Pode alguém descrer hoje do Deus em que ontem creu – mas ninguém pode amanhã ignorar o Deus que hoje sabe e saboreia por experiência íntima. Há ida e volta do crer ao descrer – mas não do saber ao não-saber. Há só ida.
"ESSA POBRE VIÚVA DEU MAIS QUE TODOS OS OUTROS" A filosofia espiritual de Jesus está em flagrante oposição à filosofia material do mundo profano. Esta trata quase só de quantidades; aquela, de qualidades.
Quantitativamente, os outros ofertantes tinham dado mais do que a viúva, que lançou no cofre apenas duas moedazinhas de cobre, cada uma talvez do valor de um antigo vintém nosso. Qualitativamente, porém, essa exígua oferta material representava gigantesco valor espiritual. Esse valor não era aferido pelo objeto, mas sim pelo sujeito.
Quando o homem profano quer dizer que uma coisa é solidamente real ele diz que é "objetiva"; se é apenas "subjetiva", tem pouca realidade, lá no seu entender. Para o iniciado, porém, o "subjetivo" é muito mais real que o "objetivo", ou melhor, o "subjetivo" é a única realidade verdadeira, ao passo que o "objetivo" é apenas uma aparência, um reflexo derivado daquele. Deus é o grande SUJEITO, os mundos dele são os pequenos objetos. O grande SUJEITO é a causa de tudo, os pequenos objetos são apenas uns efeitos efêmeros. O grande SUJEITO é, os pequenos objetos apenas existem.
Quanto mais real, e, portanto, divino, o homem se torna tanto mais subjetivo vai ficando; quer dizer, tanto mais valor ele dá à qualidade interna, e tanto menos importância dá as quantidades externas.
A pobre viúva do Evangelho possuía pouquíssimas quantidades materiais, mas uma imensa qualidade espiritual. E, como a qualidade interna dá valor às quantidades externas, Jesus afirma que ela deu mais que todos os outros, porque os outros, os ricaços quantitativos, davam muito das suas quantidades de ouro e prata, mas pouco ou nada da sua qualidade humana e espiritual, porque não a possuíam. A viúva qualitativa era uma indigente de quantidades, mas uma milionária de qualidade – ao passo que os outros eram ricos, talvez milionários em quantidades, porém indigentes em qualidade. Objetivamente ricos, subjetivamente pobres.
Esta filosofia qualitativa do sujeito é de difícil compreensão para nós, que tradicionalmente professamos uma pseudo-filosofia quantitativa de objetos.
Não compreendemos ainda que as quantidades objetivas não têm realidade autônoma, intrínseca, senão apenas realidade heterônoma, extrínseca. As quantidades objetivas são como outros tantos zeros, que, por mais numerosos, não representam valores reais, embora somados e multiplicados indefinidamente. As qualidades subjetivas, porém, são como valor positivo "1", que, anteposto aos zeros, confere valor a estes: 1000. O primeiro zero após o "1" vale dez, o segundo cem, o terceiro mil; zeros valorizados pelo "1".
Quando Jesus disse: "Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se chegar a sofrer prejuízo em sua alma?" frisou ele o valor intrínseco e qualitativo do sujeito, ou Eu humano, e o desvalor das quantidades externas do mundo.
Para quem, como ele, tem a noção nítida da realidade do valor subjetivo e da irrealidade dos valores objetivos, sabe que é grande sabedoria salvar aquele, mesmo à custa destes, e grande loucura ganhar estes perdendo aquele.
Para que alguém possa compreender essa filosofia qualitativa do sujeito e sobrepô-la à tradicional filosofia, ou pseudo-filosofia quantitativa dos objetos, requer-se que tenha experiência direta do seu próprio Eu, não desse pequeno ego periférico, físico-mental, mas do grande Eu central, racional. Em última análise, tudo depende da experiência pessoal, da vivência direta da realidade.
Ninguém sabe, de fato, senão aquilo que ele vive; e ninguém pode viver senão aquilo que ele é. De maneira que saber, viver e ser são, última análise, uma e a mesma coisa.
O homem profano, que só conhece os pseudo-valores quantitativos do plano objetivo, horizontal, nunca compreenderá o verdadeiro espírito do Evangelho, que só trata dos valores qualitativos do plano subjetivo, vertical. Só no dia e na hora em que o homem viver intimamente esses valores é que saberá o que eles são na realidade. "Quem ouve estas minhas palavras, mas não as realiza (vive), é como um homem insensato que edificou a sua casa sobre areia. Mas, quem ouve estas minhas palavras, e as pratica (vive), este é como um homem sábio que edificou a sua casa sobre rocha. " O espiritual, invisível, eterno, infinito, absoluto, universal, divino – é que é a causa de tudo que é material, visível, temporal, finito, relativo, individual, que são os efeitos derivados daquela causa, inderivada.
A filosofia cósmica é 100% realista. Verdade é que o profano pensa precisamente o contrário, mas o seu errôneo pensamento não modifica a realidade. O profano costuma apelidar de "idealistas" os realistas, porque ignora que eles são muito mais realistas do que ele. Jesus é o rei dos realistas, e o seu Evangelho é a Carta Magna do maior realismo que já apareceu à face da terra; porque reais são as qualidades, irreais as quantidades, quando não "realizadas" por aquelas, assim como os zeros são "realizados" ou "valorizados" pelo "1".
A própria física nuclear dos nossos dias vem em nosso socorro e é nossa grande aliada e auxiliadora, porque prova, matemática e experimentalmente, que tanto mais real é uma coisa quanto menos material ou quantitativa, e tanto menos real quanto mais material. A matéria visível e palpável, que é "energia congelada" é menos real que essa energia em estado não congelado.
Congelamento é passividade, descongelamento é atividade. A energia, por sua vez, é luz condensada, menos real que a luz não condensada. No mundo físico é a luz a mais real das realidades, por ser o menos material dos fenômenos do mundo físico.
No homem, a alma é mais real que a mente e o corpo; a mente é menos real que a alma, porém mais real que o corpo; o corpo é menos real que aquelas duas.
Quanto mais o homem se espiritualiza mais se realiza. Deus, sendo a suprema espiritualidade, ou o espírito absoluto, é a realidade absoluta. Quanto mais o homem se diviniza mais se realiza. O homem mais intensamente realizado que o mundo viu foi Jesus o Cristo, o "filho do homem", isto é, o homem por excelência, e, por isto mesmo, o "filho de Deus", a tal ponto divinizado que podia dizer: "Eu e o Pai somos um. " O supremo destino do homem, aqui ou alhures, é a sua auto-realização, que é idêntica à sua cristificação ou teo-realização, uma vez que a íntima essência do homem é Deus.
Se o homem se realizar a si mesmo, todas as coisas fora dele também serão realizadas, por intermédio dele. O homem é o grande sacerdote e profeta da natureza. O homem auto-relizado, ou espiritual, tem sobre a natureza um domínio muito maior do que o maior cientista ou mais hábil técnico.
Através do seu sujeito, devidamente realizado, realiza o homem os objetos muito melhor do que através dos objetos.
O modesto óbolo da viúva era um grande passo no caminho da sua autorealização, ao passo que as pingues ofertas dos outros eram apenas alorealizações. Ela realizou obra eterna, no plano vertical do seu sujeito – eles tentaram realizar obras efêmeras no plano horizontal dos objetos ao redor deles.
Por isto, ela fez mais que todos os outros.
Ela era iniciada na grande filosofia cósmica – eles eram apenas estudantes primários da pequena filosofia telúrica.
O muito que os outros davam era pouco – o pouco que ela deu era muito.
Os outros jogavam no mealheiro ruidosas quantidades de zeros, gordos, ocos, vazios – ela deitou um silencioso e imponderável "1" de qualidade – e este modesto "1" deu valor positivo aos arrogantes "000 000" negativos dos outros.
Os outros deram do que lhes sobrava – ela deu o que lhe fazia falta.
Outros deram por ostentação – ela deu com amor e humildade.
Para dar do supérfluo não se requer qualidade, basta quantidade – para dar o necessário exige-se grande qualidade.
Outros deram do seu – ela deu o próprio Eu. . .
E o Mestre, que nada tinha de seu, mas era um grande Eu, ficou encantado com o Eu da viúva, que deu o pouco que era seu – e essa migalha do seu assumiu infinito valor em virtude do Eu que a deu. . .
Todo o valor dos nossos atos depende de nossa atitude. Nenhum ato tem valor em si mesmo.
"VÓS, QUANDO NÃO VEDES OBRAS PODEROSAS, NÃO TENDES FÉ" "Dynamis" (plural "dynameis") é o termo grego do Evangelho do primeiro século para designar aquilo que nós, geralmente, chamamos milagres.
Entretanto, milagre não exprime o mesmo pensamento que "dynamis" (dynameis), que significa "força", "poder", ou, no plural, como em geral aparece, "obras poderosas", "feitos potentes". "Miraculum" (do verbo "mirari", admirar) é algo que se admira, que causa estranheza, ao passo que aquilo que Jesus realizava, as "dynameis", eram obras que revelavam um poder, uma força superior às forças dos homens.
A admiração ou estranheza provém da ignorância do espectador. Quem conhece a causa de um efeito não estranha. De maneira que, para as massas ignorantes, o que Jesus fazia eram "miracula", coisas de admirar; mas para ele mesmo eram "dynameis", obras poderosas.
Imensa literatura tem sido escrita, inumeráveis discursos, conferências e sermões têm sido proferidos sobre os chamados "milagres" de Jesus.
Muitos relegam as narrativas em torno desses prodígios ao mundo da mitologia, quer dizer, ao plano da irrealidade, das invenções ingenuamente fictícias e poéticas que acompanham a origem de muitas religiões. Os mitos pertencem à infância da humanidade. A criança não distingue nitidamente entre fato e fantasia; os contos de Grimm, Andersen, as histórias de "Mil e Uma Noites", etc. tudo isto é, para a criança, tão real como os acontecimentos de cada dia. A percepção da linha divisória entre fato e ficção pertence aos adultos, embora o conteúdo ideal de muitas ficções seja, de per si, mais real dos que os fatos que ocorrem na perceptível periferia do mundo objetivo.
Outros apelam para as forças da sugestão e hipnose, passando os "milagres" do plano objetivo dos eventos externos para o plano subjetivo de uma impressão interna. Segundo estes, Jesus não teria, por exemplo, convertido água em vinho, em Caná, nem multiplicado uns poucos pães e peixes, em Betsaida-Júlias, para fartura de milhares de pessoas esfaimadas, mas tudo isto teria acontecido unicamente no interior dos observadores; o intenso entusiasmo religioso pelo grande mestre teria sugerido ou sugestionado a tal ponto os convivas às bodas de Caná que ele julgassem sentir o gosto do melhor vinho ao beberem simples água da fonte; e as multidões no deserto se julgavam fartas quando de fato andavam de estômago vazio após o "milagre", abstração feita de uma migalha infinitesimal de pão e peixe que tivessem recebido. Também os doentes teriam recobrado saúde e forças em virtude duma magia sugestiva que partia da pessoa do Nazareno. Verdade é que, em certos casos, essa hipótese da sugestão ou autossugestão esbarra com uns sérios quês, como, por exemplo, no caso dos defuntos ressuscitados, sobretudo de Lázaro em estado de franca putrefação, bem como no caso da tempestade no lago de Genesaré acalmada pelo taumaturgo e sobretudo em face dos doze cestos de fragmentos que sobraram dos cinco pães e dois peixes – mas os defensores dessa teoria não se desconcertam com tão "pouco". . .
Há uma terceira hipótese para explicar, ou antes, eliminar dos Evangelhos os "milagres" de Jesus: a da "fraude piedosa", baseada no princípio de que o fim (bom) justifica os meios (maus). Jesus teria enganado propositadamente as massas ignorantes com milagres aparentes. Quando se objeta que um homem de acendrada pureza ética como Jesus não podia lançar mão de semelhante expediente, inético, respondem-nos os advogados dessa teoria: "Ora, não queiramos medir os gigantes com a bitola dos pigmeus!" para os super-homens não existe a suposta diferença entre moralidade e imoralidade, eles estão (para usar a frase de Nietzsche) "jenseits von gut und boes" (para além do bem e do mal); tudo é moralmente bom para quem tem em mira um fim sublime, conto esse de regeneração da humanidade, que não era possível sem o "milagre";
mas, como milagres segundo eles, não são possíveis, por serem contrários às leis da natureza, só restava ao Nazareno lançar mão de pseudo-milagres para conseguir esse grande ideal.
Tais, e outras similares, são, em síntese, as tentativas de eliminar do texto evangélico os chamados "milagres" de Jesus. Não faltou quem dissesse que, se conseguíssemos expurgar desses infelizes milagres o Evangelho, teríamos diante de nós o mais estupendo documento ético da humanidade.
Que dizer a isto?
Duas coisas, e importantíssimas, temos de responder aos inventores e adeptos dessas e de outras teorias afins:
1) Todas essas teorias partem do falso suposto de que o "milagre" seja uma exceção ou negação das leis da natureza, quando, na realidade, são a mais brilhante afirmação e confirmação dessas mesmas leis.
2) Todos os defensores dessas teorias constroem o seu edifício sobre uma base fictícia, e não sobre um fato real, admitindo tacitamente uma premissa errônea. Que premissa ou suposição é esta? É a admissão tácita de que o homem comum de hoje seja um homem definitivo em sua evolução e que homem algum possa fazer algo essencialmente diverso daquilo que nós podemos fazer.
Em outro capítulo trataremos do primeiro ponto. No presente parágrafo abordaremos tão somente o segundo ponto: o erro de supor que o homem físico-mental dos nossos dias seja o homem, em toda a sua plenitude e perfeição, quando, de fato, é um ser humano provisório e primitivo.
A fim de ilustrar e concretizar esta verdade, vamos estabelecer o seguinte paralelo: Tempo houve em que o homem primitivo, pré-histórico, não possuía inteligência suficiente para construir uma casa do tipo das nossas vivendas de hoje. Muito menos era capaz de iluminar a sua moradia com luz elétrica, colocar nela um aparelho de rádio ou televisão, ou algum dos outros prodígios da nossa ciência e técnica atuais. Se, nesses tempos remotos, tivesse aparecido no meio desses semi-homens, um homem do tipo intelectual de hoje e tivesse construído um dos mencionados aparelhos – que teria acontecido no seio daquela humanidade primitiva? De duas uma: os que não tivessem visto o tal aparelho-prodígio, negariam a realidade, provando "cientificamente" que semelhante fenômeno é impossível e, portanto, objetivamente irreal; outros, que tivessem visto aparelho, proclamariam seu autor como uma espécie de divindade ou portento sobrenatural.
Por que teria o homem primitivo assumido uma dessas atitudes?
Unicamente porque, incapaz de realizar o que esse super-homem realizara, não admitiria que um homem normal fizesse o que ele – que se considerava o único "normal" – não podia fazer.
É precisamente este o caso com os eruditos agnósticos do nosso tempo, os adeptos de todas as hipóteses expostas e outras congêneres. A sua dificuldade provém do fato de suporem o que não deveriam supor como base das suas teorias.
É deveras estranho, ou antes vergonhoso, que, em plena Era Atômica, haja homens considerados cultos, dotados de tão escasso senso de lógica que não percebam o caráter anticientífico e antirracional da sua atitude.
É evidente que o homem intelectivo de hoje não é o homem integral, definitivo.
O homem primitivo estava com os sentidos perfeitamente acordados mas o seu intelecto, embora presente, dormia ainda o sono da meia-noite; não existia ainda um aparelho nérveo e cerebral suficientemente desenvolvido e diferenciado para que a grande artista, Inteligência, se pudesse manifestar nesse instrumento. Aludindo à invisível presença da inteligência de hoje no aparelho visível do cérebro, escreve um cientista alemão, Ludwig von Schleich, estes versos, maravilhosos: "Auf den feinsten Nervensaiten Spielt ein Spielmann sein Gedicht, Wohl fuehlst du die Finger gleiten – Doch den Spielmann siehst du nicht".
A criança dos nossos dias está nas mesmas condições em que, milênios atrás, se encontrava a humanidade. Seria absurdo e anticientífico negar a natureza humana à criança pelo fato de não revelar inteligência. No entanto, sabemos que a criança humana, embora sem vestígio externo de inteligência, é um verdadeiro ser humano; nela existe a inteligência em estado potencial, dormente ou latente. A inteligência potencial é uma inteligência real, ainda que não atualizada.
O homem de hoje está muito longe de personificar o homem completo e definitivo. Somos uma "sinfonia inacabada". As nossas forças estão semiligadas. A nossa inteligência trabalha por meio de processos indiretos, sucessivos, analíticos. É necessário que desperte no homem uma faculdade que ele possui, mais ainda não desenvolveu devidamente. Assim como pelos sentidos, o homem nunca teria chegado a descobrir e utilizar a eletricidade e as energias nucleares, se nele não despertara a inteligência, da mesma forma nunca chegará o homem a sua evolução plena, se não cruzar a fronteira da inteligência para a razão.
A razão opera direta e instantaneamente, sem aparelhos, só pela força intrínseca da sua própria natureza. A razão é essencialmente uma força creadora, e é nisto que está a sua divindade ou semelhança com Deus.
Segundo Teilhard de Chardin, o homem se acha agora na noosfera, ou seja, na intelectualidade; e daí vai em demanda da logosfera, zona da racionalidade. Da perspectiva da logosfera, os chamados milagres de Jesus são perfeitamente naturais, são manifestações do poder, da potência racional do homem, em que se achava o Cristo, que, no quarto Evangelho, é chamado a razão, em grego Lógos.
Para o homem da logosfera, o que Jesus fez será tão natural como para o homem da noosfera é natural a aeronáutica, o rádio, a televisão, etc.
O Lógos no homem logoficado realizará as mesmas obras que o Lógos realizou em Jesus, como ele mesmo disse: "Vós fareis as mesmas obras que eu faço, e fareis obras maiores do que estas porque o Pai, que está em mim, também está em vós. " "SEDE INTELIGENTES COMO AS SERPENTES – E SIMPLES COMO AS POMBAS!" Que a segunda parte desta recomendação seja do Cristo, condiz com o conteúdo das nossas teologias e dos nossos devocionários; mas que também a primeira parte seja dele, isto desdiz e destoa de tudo quanto costumamos dizer, pensar e escrever sabre o Nazareno.
No entanto, poucas palavras caracterizam melhor do que estas o gênio cósmico do filho do homem e do filho de Deus. Nestas palavras, brevíssimas e imensas, vem compendiadas a história evolutiva do gênero humano de centenas de milhares de anos, do passado, presente e futuro.
Inteligência de serpente – simplicidade de pomba!. . .
A história da humanidade começou, propriamente, com o despontar da inteligência, simbolizada pela serpente. Verdade é que, antes dessa alvorada intelectual, já existia o homem, mas apenas em estado potencial, embrionário;
nesse homem pré-intelectual, meramente sensitivo, já existia, em estado latente, o homem de hoje. Nesse tempo remotíssimo, o homem era intelectualizável, como a criança intra ou extra-uterina dos nossos dias; mas não era ainda intelectualizado como hoje. A criança, embora não revele inteligência, é um verdadeiro ser humano; basta que o resto da sua evolução corra normalmente para que, a seu tempo, se revele a inteligência velada;
porquanto, o dom do intelecto (não o grau de inteligência) é, hoje em dia, um elemento universalmente transmissível de pais a filhos.
Se o homem não tivesse passado do estado sensitivo, intelectualizável, para o estado de intelectualização em que hoje se encontra, não seria possível a sua evolução ulterior, ultra-intelectual, rumo à razão, ao espírito. Assim como sem sentidos normalmente desenvolvidos não há inteligência, de modo análogo, sem uma inteligência normal, não pode haver vida racional. A natureza é progressiva, sem lacunas nem intermitências. Não quer isto dizer que o homem, para evolver rumo à razão, deva possuir uma inteligência extraordinária; basta que tenha a faculdade normal de pensar. Da mesma forma, para que um homem seja inteligente não se requer que seja fisicamente um atleta, de músculos hipertrofiados, mas que o seu organismo seja normalmente desenvolvido de tal modo que possa servir de base e veículo para ulterior evolução rumo à inteligência. Muitas vezes, a hipertrofia, quer do corpo quer do intelecto, é antes empecilho do que auxílio para o estágio evolutivo subsequente. Quem só vive para treinar o bíceps material, dificilmente terá tempo nem interesse para robustecer a inteligência; e quem só vive para cultivar a agudeza mental, raramente atingirá a zona do mundo racional.
Era indispensável que, primeiro, despontasse a "estrela d’alva", o Lúcifer (porta-luz), para que depois pudesse nascer o Lógos, a "luz do mundo".
Quando se diz ao homem comum que Lúcifer é o precursor do Lógos (Cristo), fica ele horrorizado com tão sacrílega "irreverência"; porque, para ele, Lúcifer é Satanás, o diabo em pessoa – tamanha é a confusão creada por certos teólogos inexperientes no plano da intuição racional.
Quando então um desses homens escandalizados esbarra, por exemplo, com o hino pascal "Exultet", que, no sábado de aleluia, se canta à entrada das igrejas católicas; e quando percebe e compreende as palavras: "O felix culpa!
O vere necessarium Adae peccatum. . . " – fica esse homem totalmente desnorteado.
Por que?
Porque, desde pequeno, ouviu que Lúcifer é o irreconciliável adversário de Deus; e vê-se em face dum dualismo enigmático.
Como pode haver uma "culpa feliz", como pode existir um "pecado verdadeiramente necessário
"? E como é que uma igreja ousa proclamar tão horripilante heresia?
É que, nesse glorioso hino ecoam certas vozes que se perderam no Cristianismo mais puro, que entraram na liturgia e lá estão até hoje, em contradição com o escolasticismo mental.
Naqueles tempos remotos, Lúcifer era ainda considerado como precursor do Lógos, como vemos na obra de Orígenes, do segundo século da nossa era.
Nesse tempo, Lúcifer não era simplesmente Satanás, o diabo. Lúcifer era a serpente, o intelecto virgem, não antirracional, não-satanizado, não-diabólico.
Lúcifer era a força que conduziu o homem do Éden, das trevas da inconsciência, para a luz crepuscular da consciência individual, intelectual. A "culpa" ou o "pecado" de Lúcifer não era um pecado no sentido de hoje. Lúcifer, como diz a própria palavra, era o "porta-luz", aquela faculdade do homem que o tirou das trevas do inconsciente e o levou à semi-luz do consciente. Lúcifer, a serpente, é pois, a ego-consciência personal do homem pós-edênico.
O Lógos, o Cristo, é a Razão, a consciência cósmica. Mas, como poderia aparecer essa consciência universal sem que primeiro aparecesse a consciência individual? Como poderia o homem edênico, inconsciente, cristificar-se pela consciência universal sem que, primeiro, se luciferizasse pela consciência individual? Como poderia o homem dar o último passo da sua evolução sem dar antes o penúltimo?
Quando Jesus recomenda a seus discípulos que sejam inteligentes como as serpentes, refere-se ele à consciência individual, ao Lúcifer do intelecto, que deve necessariamente preceder, na evolução cronológica o advento do Lógos.
Lúcifer sem Lógos, é o Intelecto.
Lúcifer contra Lógos, é Satan.
Lúcifer com Lógos é o Cristo, o filho do homem, o homem integral, o homem cósmico.
Lógos sem Lúcifer não existe, porque seria Razão sem Intelecto, o que é absurdo, porque a Razão necessita do Intelecto como sua base de operação.
O intelecto é o princípio da individuação consciente, a Razão é o princípio da universalização pleni-consciente.
A Razão, o Lógos, o Cristo, é simbolizado pela pomba, que não é sagaz nem agressiva como a serpente, mas mansa, meiga, pacífica.
A consciência individual, ou inteligência, tem a tendência de usar de violência física ou mental para conseguir os seus fins egoísticos – ao passo que a consciência universal, crística, é inimiga de qualquer espécie de violência, quer física quer mental. A violência mental, a sagacidade intelectual, é alheia à Razão. Onde termina o espírito da força, ali começa a força do espírito.
Essa simplicidade racional ou espiritual não implica na negação da inteligência, é ultramental, assim como o sol meridiano não nega a alvorada matutina, mas a ultrapassa em sua plenitude.
Um animal não pode passar a ser racional – mas sim um homem intelectual.
Nem pode um ser tornar-se intelectual sem passar pelo período da sensitividade.
A razão supõe o intelecto, o intelecto supõe os sentidos. A super-estrutura ergue-se sobre a sub-estrutura.
Nunca apareceu no mundo um homem mais racional e mais intelectual do que o profeta de Nazaré, no qual essas duas faculdades celebram a mais perfeita sinfonia. Nele, a inteligência da serpente estava perfeitamente integrada na simplicidade da pomba; ele é, segundo suas próprias palavras, a "serpente erguida às alturas", o intelecto sublimado pela razão, o Lúcifer que culminou no Lógos.
Quando a serpente horizontal do intelecto, pecável, é sublimada à serpente verticalizada da razão, impecável – então atinge o homem a plenitude da sua evolução, o Lúcifer da consciência individual se funde no Lógos da sua consciência universal. . .
O felix culpa!. . .
"QUANDO TIVERDES FEITO TUDO DIZEI: SOMOS SERVOS 1NÚTEIS. . . " ". . . Cumprimos apenas a nossa obrigação; nenhuma recompensa merecemos por isto. " Eis a apoteose do homem perfeito, do gênio cósmico, da creatura crística!
Quem executa pesadamente as coisas pesadas é bom – mas não é perfeito.
Quem carrega a sua cruz gemendo é bom – mas não é perfeito.
Quem verifica que o jugo do Cristo é amargo e pesado é bom – mas não é perfeito.
Só quem executa com leveza as coisas pesadas; quem carrega a sua cruz sorrindo; quem sabe por experiência íntima que a amargura da disciplina espiritual é suave e que seu peso é leve – este é perfeito.
Quem jejua desfigurando o rosto para mostrar que jejua, é um asceta tristonho e imperfeito – mas quem, jejuando, mostra semblante alegre como o mais farto dos homens, de maneira que ninguém possa suspeitar que ele está jejuando – esse é um gênio crístico, um homem cósmico.
Isto é a sabedoria do Evangelho do ocidente e do oriente, da filosofia do Cristo e da filosofia dos 5edas e da Bhagavad-Gita: "Mata o desejo de possuir, de gozar, de viver – e depois vive como os que mais desejam possuir, gozar e viver!" Quem é tristonhamente bom descobriu o corpo do Cristianismo – quem é radiosamente bom abraçou a alma do Cristianismo.
É esta a divina alquimia do Cristianismo Universal, de todos os tempos e países: transforma em leve o pesado, em suave o amargo, em sorridente o doloroso, em luminoso o escuro, estende arco-íris de paz e sorriso sobre todos os dilúvios de sofrimentos e lágrimas.
É esta a redenção do homem – redenção não só da irredenção dos seus vícios, mas redenção também da pseudo-redenção das suas virtudes. Quem ainda se considera um herói, uma heroína, pelo fato de ter cumprido o seu dever, não está redimido; a complacente consciência de ser bom impede-o de ser perfeito; o homem perfeito, depois de ter cumprido o último dos seus deveres, diz: Sou servo inútil – nenhum prêmio mereço pelo fato de ser bom;
sou bom unicamente por ter reconhecido que isto está certo, em harmonia com as leis eternas. . .
Como é possível realizar essa transformação, se não temos poder sobre os objetos a serem transformados?
Aqui é que está a ilusão fatal da humanidade de todos os tempos: queremos transformar os objetos do plano horizontal, quantitativo – em vez de transformar o Eu, o sujeito do plano vertical, qualitativo. Donde vem essa ilusão? Do nosso inveterado egoísmo, que é a lei da inércia moral: queremos transformar os objetos ao redor de nós, que exige apenas ciência intelectual, mas pode co-existir com o nosso egoísmo – ao passo que a transformação do sujeito dentro de nós exige consciência espiritual, que tem de derribar dos seus tronos os nossos ídolos e fetiches. Por isto, guiados pela lei do menor esforço, preferimos tratar da alquimia dos objetos, e evitamos a alquimia do sujeito.
Aquela é gozosa, esta é dolorosa. Aquela é periférica, quantitativa – esta é central, qualitativa.
Não é necessário, nem suficiente, que tenhamos poder sobre os objetos externos, porque esses objetos quantitativos do plano horizontal não têm realidade autônoma em si mesmos; são reflexos, sombras, efeitos, derivados de uma causa real em si mesma. Os objetos também serão transformados, mas não pelos objetos, e sim pelo sujeito. Não existe transformação do objeto pelo objeto – só existe transformação dos objetos pelo sujeito; ou seja, alorealização por meio de auto-realização. O homem que se realiza a si mesmo realiza todas as coisas fora de si. A alquimia da qualidade traz consigo a alquimia das quantidades.
O maior dos perigos não está em ser mau – o perigo dos perigos está na complacente consciência de ser bom, de ser um herói de virtuosidade, do tipo daquele virtuoso fariseu do templo, que assim orava: "Eu te agradeço, meu Deus, por não ser como o resto dos homens: ladrões, injustos, adúlteros; eu jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de todos os meus haveres. " E voltou este para casa, não ajustado, diz Jesus, porque vivia na complacente consciência da sua justiça e bondade. "Eu detesto os vossos vícios, e mais ainda as vossas virtudes" – exclama Nietzche na sua obra "Also sprach Zarathustra". Dos nossos vícios nos libertaremos um dia – mas das nossas virtudes, isto é, da blandiciosa consciência de sermos heróis, será que algum dia nos libertaremos dessa obsessão? Enquanto o ser-bom não for natural e evidente para nós, sem nenhuma sensação de heroísmo e virtuosidade, estamos longe da alma do Evangelho.
O publicano, pecador, tem consciência dos seus pecados – o fariseu, não menos pecador, tem consciência das suas virtudes; aquele voltou para casa curado – este voltou para casa mais doente ainda, porque chamou saúde a sua doença. Um doente que não reconhece a sua doença, e chega ao absurdo da cegueira de a chamar saúde, é incurável.
"Eu detesto os vossos vícios – e mais ainda as vossas virtudes. . . " Eu detesto a vossa doença chamada doença – e detesto mais ainda a vossa doença chamada saúde. Aquela é uma doença curável – esta é uma doença incurável. Aquela é simples fraqueza – esta é um orgulho satânico. Enquanto alguém diz: "Cumpri o meu dever – e sou servo inútil", tem saúde espiritual; mas, se disser: "Cumpri o meu dever – e sou um servo útil", um herói, um homem virtuoso, está doente e é incurável.
Há, portanto, três atitudes possíveis do homem em face daquilo que é seu dever:
1) há homens que não cumprem o seu dever,
2) há homens que cumprem o seu dever com sacrifício e tristeza, o quer neles gera o senso de heroísmo,
3) há homens que cumprem o seu dever com leveza e alegria, sem nenhum senso de heroísmo nem virtuosidade.
Os da primeira classe são os viciosos.
Os da segunda categoria são os virtuosos.
Os do terceiro grupo são os sábios e santos, os gênios cósmicos, os homens crísticos.
Os da primeira classe são maus.
Os da segunda são bons.
Os da terceira são perfeitos.
Ai do homem que tem a consciência de ser virtuoso. O seu complexo de virtuosismo o impede de ser um homem crístico.
Quem carrega pesadamente o que é pesado, quem executa amargamente o que é amargo, quem padece dolorosamente o que é doloroso é, quando muito, um talento, mas não é um gênio; o gênio riscou do vocabulário da sua vida esses termos negativos "pesado", "amargo", "doloroso", porque nada mais significam para ele. Só quem supera a consciência da sua virtuosidade e do seu heroísmo é que é um gênio espiritual, um homem crístico.
A todos os seus discípulos recomenda o Mestre que, depois de terem cumprido todos os seus deveres, se considerem como "servos inúteis" sem direito a prêmio algum, porque para o homem integral o cumprimento do dever é natural, espontâneo e gratuito. Quem pensa em prêmio ou recompensa é mercenário. Quem tem de ser recompensado, compensado, ou pensado, está doente, fraco, imperfeito. O homem perfeito não necessita de ser recompensado, porque não é mercenário, nem compensado porque é completo, nem pensado, porque possui perfeita sanidade. O homem cósmico cumpre o seu dever não por dever, mas por querer; porque, na sua sabedoria, compreendeu que ser bom é natural, estar em harmonia com as leis do Universo do Deus do Universo. Sintonizou o seu pequeno querer individual com o grande QUERER UNIVERSAL – e nada mais!