Filosofia cósmica do evangelho
Versão para cópia
"SE NÃO VOS TORNARDES COMO AS CRIANÇAS. . . "
Certo dia, estavam os discípulos de Jesus discutindo entre si sobre quem deles era o maior no reino dos céus – quando Jesus chamou uma criança, colocou-a no meio desses ambiciosos pecadores e disse-lhes: "Se não vos converterdes e vos tornardes como esta criança, não entrareis no reino dos céus. " Seria crível que o Mestre, para dar uma lição de pureza a seus discípulos, colocasse ante os olhos dos impuros um modelo impuro? Que deles exigisse se convertessem da sua impureza de adultos para a impureza da criança? É evidente que Jesus supõe que essa criança é pura, livre de pecado, em união com Deus, que ela está no reino de Deus por natureza, no qual os egoístas litigantes deviam entrar por seu próprio esforço: "A alma humana é cristã por sua própria natureza", escreve Tertuliano, no segundo século, fazendo eco fiel à filosofia positiva do Evangelho do Cristo.
Em outra ocasião fala Jesus do crime daqueles que "escandalizarem" ou forem motivo de pecado aos pequeninos que "têm fé nele".
Pergunto: que entende Jesus por esse "ter fé"? Evidentemente, nenhuma daquelas crianças cria em Jesus, no sentido teológico de hoje; nenhuma delas o conhecia como Messias; para essas crianças israelitas era Jesus um dos muitos rabis da sua terra. Que quer pois, dizer que "tinham fé nele"?
Fides é o radical de fidelidade, harmonia, consonância, sintonia. O verbo derivado de fides ou fé, seria "fidelizar", ou seja estabelecer fidelidade.
A alma da criança está em estado de fidelidade ou sintonia natural, embora inconsciente, com Deus. A alma é crística por sua própria natureza. Ela não é tornada crística por um ato ritual, como julgam os que creem na existência de um pecado original na criança.
Toda criança natural tem fé, ou fidelidade com o Cristo, com Deus.
O que a criança é por natureza, isto deve o homem adulto tornar-se por consciência. O homem, dotado de livre-arbítrio, pode "desfidelizar-se", perder a harmonia com Deus, mas pode "refidelizar-se", restabelecer a fidelidade ou harmonia perdida por culpa própria. Isto é, na linguagem de Jesus, tornar-se como criança. Não se trata de tornar-se criança, que seria infantilismo, mas sim, fazer-se por esforço da consciência o que a criança é por natureza.
O homem plenamente espiritual tem sempre algo de criança: é simples, sem malícia, sem segundas intenções, humilde, sincero. O homem crístico é conscientemente o que a criança é inconscientemente, sintonizado com Deus.
Quando, certo dia, Jesus abençoava as crianças, tentaram os discípulos afastá-las do Mestre; este, porém censurou seus apóstolos, dizendo: "Deixai que venham a mim as crianças, e não lho embargueis, porque de tais é o reino dos céus. " Segundo a teologia corrente, nenhuma dessas crianças se achava em "estado de graça", todas eram "filhos da ira divina", pecadores natos, e, se alguma delas morresse nesse estado não entraria jamais no reino de Deus; todas iriam para o "limbo". Jesus, porém, afirma que essas crianças e todos os que com elas se parecem estão no reino de Deus, reino de pureza, isenta de pecado.
Qual a razão porque a teologia eclesiástica adotou essa doutrina pessimista do pecado original, quando o Evangelho é manifestamente contrário a essa ideia?
Em parte, devido à interpretação de certas palavras do apóstolo Paulo, em parte em virtude duma psicologia professada em séculos passados, mas hoje abandonada pela elite pensante e espiritual da humanidade. Essa psicologia em cuja atmosfera se desenvolveu a doutrina da essencial maldade do homem continua a vigorar, como funesta pedagogia, em numerosas famílias e institutos de educação dos nossos dias. Acham certos educadores que quanto mais se intensificar na alma do educando a convicção da sua maldade, tanto mais eficazmente aceitará ele o que lhe é oferecido pelo educador. Para ter confiança no mestre, deve o educando ter desconfiança em si mesmo.
Vai nisto uma ilusão fatal. A consciência da sua maldade não produz no educando um ambiente propício à convertibilidade mas antes o contrário; o homem convencido de que é essencialmente mau dificilmente crê na possibilidade de se tornar bom; desespera de si; solta as rédeas a seus instintos negativos; uma vez que já é mau, por culpa alheia, resolve ser ainda pior, por culpa própria.
Ai do homem que não crê em si! Que não tem confiança em sua intrínseca bondade!
Quando, por outro lado, se mostra ao homem que, apesar de ter praticado atos maus, ele não é total e irrevogavelmente mau; que ele é potencialmente bom, embora não o seja ainda atualmente – então esse homem, tomado de um nobre entusiasmo e brio, envidará todos os esforços para se tornar também atualmente o que já é potencialmente.
Mas – exclamará alguém – isto é auto-redenção!
É, sim, auto-redenção – mas a Cristo-redenção é necessariamente uma autoredenção.
Como assim?
Porque a íntima natureza do homem é crística. A luz do Lógos, do Cristo interno "ilumina a todo homem que vem a este mundo. . . e dá aos que a recebem o poder de se tornarem filhos de Deus". O Cristo é o centro real de todo homem, é a alma, o sopro de Deus, o espírito de Deus que habita no homem. Se o "autós" redentor fosse o nosso corpo ou a nossa mente, a autoredenção não seria uma Cristo-redenção e sim uma ego-redenção; mas o verdadeiro "autós", o íntimo "Eu" do homem é seu Cristo interno, e quem é redimido por esse Cristo de dentro é redimido pelo mesmo e único Cristo, que estava e está em Jesus.
Se o homem fosse visceralmente pecador, nem seria possivel a sua redenção, porque, neste caso, não existiria na natureza humana um elemento positivo, um ponto de contato ou de ressonância que respondesse ao apelo do Cristo redentor. O homem essencialmente mau seria irredimível; só um homem potencialmente bom é que é redimível.
Se a semente duma planta no fundo da terra não fosse essencialmente "solar", jamais ia reagir ao silencioso convite dos raios solares de fora; se de fato brota ao encontro do sol em virtude desse misterioso apelo solar de fora, prova é que a semente é essencialmente solar. A alma da planta é filha da luz solar, e por isto pode responder ao convite da sua luminosa mãe.
Se a alma humana não fosse intrinsecamente crística não poderia cristificar-se.
Jesus sabia que toda alma é essencialmente crística; por isto disse: "Desses tais é o reino dos céus. "