Filosofia cósmica do evangelho
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"MEU JUGO É SUAVE E MEU PESO É LEVE"
"Vinde a mim todos vós que sofreis e andais sobrecarregados, e eu vos aliviarei; porque o meu jugo é suave e meu peso é leve – e achareis descanso para as vossas almas. " Atingem estas palavras as ínfimas raízes e as supremas culminâncias do Cristianismo. Nelas se cristaliza a mais pura filosofia cósmica do Evangelho. "Vinde a mim, todos vós que sofreis e andais sobrecarregados!". . .
E quem não seria do número desses sofredores sobrecarregados? Não é necessário ser discípulo do Buda, advogado máximo do sofrimento universal, para concordar em que a vida terrestre está dilacerada de dores de todo o gênero. Nem é mister maldizer, com Schopenhauer, rei dos pessimistas, a vida humana por causa das suas sombras. Há outra solução – e aqui a temos: Vinde a mim – a Cristo, o grande sofredor e o grande vencedor – para encontrardes alívio na dor e descanso para a alma.
Mas, como podem todos os homens ir ter com o Cristo? Se esse Cristo se retirou da terra há quase dois milênios? Onde está ele? Na Palestina, em Belém, Nazaré, Jerusalém? Não, lá não está ele, nem mesmo o seu corpo, senão apenas o túmulo vazio, mas não o Cristo vivo que promete alívio e descanso no meio dos sofrimentos.
No entanto, esse convite que ele fez à humanidade de todos os tempos e países supõe a possibilidade de irem todos, todos sem exceção, ter com o Cristo, como seus discípulos daquele tempo, como Maria e Marta de Betânia, como Maria de Magdala, como Zaqueu de Jericó, como Nicodemos de Jerusalém, como o bom ladrão no alto do Calvário, como Saulo de Tarso. . .
É evidente, pois, que esse convite e essa promessa supõem a universalidade e onipresença do Cristo. Confirmam as palavras de despedida do Mestre: "Eu estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos"; ou estas: "Onde quer que dois ou três estiverem reunidos em meu nome, lá estou eu no meio deles"; ou ainda estas: "Eu estou em vós e vós estais em mim. " Não é o Jesus humano que nos convida, o Jesus individual, localizado num determinado ponto; não, mas é o Cristo universal, onipresente, eterno, que está conosco e nos quer aliviar. É o divino Lógos, o Verbo, a Vida, a Luz "que ilumina a todo homem que vem a este mundo" e que dá àqueles que a recebem "o poder de se tornarem filhos de Deus".
Uma só coisa é necessária para que o homem tenha o seu encontro com esse Cristo aliviador e redentor: o ingresso dentro de si mesmo, o contato direto com o elemento divino dentro do homem, a alma, o descobrimento do Cristo interno, do Emanuel, do "Deus em nós". "Não sabeis, porventura, que sois templo do Espírito Santo e que o espírito de Deus habita em vós?" Se é verdade, como disse o Mestre, que "o reino de Deus está dentro de nós";
se é verdade o que disse um dos seus grandes discípulos, que "a alma humana é cristã por sua própria natureza" – então é claro que cada um de nós pode, em qualquer lugar e a qualquer tempo, encontrar-se com o Cristo e dele receber alívio em seus sofrimentos e descanso para a sua alma.
E, quando o homem se encontra com esse Cristo eterno e interno, que acontecerá? Libertar-se-á de todo sofrimento? Jogará fora a sua cruz?
Sacudirá o jugo da vida?
Não, nada disto acontecerá, durante a nossa vida terrestre. Por ora, o efeito do encontro com o Cristo será outro. O homem continuará a carregar a cruz do Cristo, mas fará a surpreendente descoberta que essa cruz é uma cruz suave;
o peso da vida terrestre continua, mas o homem cristificado descobrirá que esse peso se tornou leve e é precisamente nessa suavidade e nessa leveza que o homem encontrará alívio e descanso. O alívio e descanso não consistem em que não haja mais sofrimento, cruz, jugo, peso, sacrifício, mas consiste no fato estranho de se ter tornado leve, suave, fácil, tudo isto que, anteriormente, lhe era pesado, amargo, difícil.
Basta que o sujeito mude – e todos os objetos aparecem mudados.
Basta que o homem entre nessa maravilhosa e etérea "leveza" que sempre acompanha a espiritualidade – e o mundo inteiro lhe é leve, luminoso, sorridente. Pois, o homem não enxerga as coisas como elas são, mas assim como ele é. Se eu sou pesado, amargo, inquieto, todas as pessoas e coisas que me rodeiam parecem pesadas, amargas, inquietas; mas, se eu me tornar leve, suave, tranquilo, todas as pessoas e coisas do meu mundo serão leves, suaves e tranquilas. O egoísmo é pesado e faz tudo pesado – o amor é leve e faz tudo leve.
É esta a divina alquimia praticada pelos filhos de Deus, pelos verdadeiros iniciados no reino dos céus: transmudar todos os objetos externos pela potência do sujeito interno, espiritualizar o mundo material, iluminar as trevas, estender arco-íris de sorrisos sobre dilúvios de lágrimas, trazer esperanças em pleno desespero, suscitar vida em velhos cemitérios, transformar negros ataúdes mortuários em alvejantes berços de vida nova. . .
Tentavam os alquimistas antigos transmudar um elemento material em outro elemento material, sobretudo ferro em ouro – mas o homem cristificado conhece outra alquimia, muito mais sublime: transmuda o mundo material em espiritualidade, torna suave o que era amargo, e leve o que era pesado, transforma ódio em amor, morte em vida, tristeza em alegria, inferno em céu. . .
Há uma ética pré-mística – e há uma ética pós-mística. Aquela é simplesmente intelectual e volitiva – esta é racional e espiritual. Aquela faz o bem, pesadamente, por dever – esta faz o bem, levemente, por querer. Aquela age sob a dolorosa compulsão da lei – esta age sob o jubiloso impulso do amor.
Aquela é amarga medicina que o homem ético ingere forçadamente – esta é deliciosa iguaria que o homem espiritual toma com espontânea liberdade.
A ética pré-mística arrasta-se vagarosamente sob o peso da cruz – a ética pósmística voa, célere e jubilosa, realizando com amor e entusiasmo todas as coisas.
O que se faz pesadamente, por dever, não tem garantia de solidez e perpetuidade – o que se faz levemente, por querer, tem absoluta garantia de solidez e perpetuidade, porque o amor e a felicidade interna são infalível garantia de continuidade. Só o que nasce duma profunda felicidade é que tem garantia de eternidade.
Muitos humanos viajores abandonam o Egito da escravidão antiga e anseiam pela Canaã da nova liberdade, a "gloriosa liberdade dos filhos de Deus". Mas, quando verificam que entre a escravidão e a liberdade medeia um deserto intenso da disciplina espiritual – quiçá 40 longos anos, uma vida inteira – desanimam logo à entrada do grande ermo. Alongam os olhos para além, e adivinham vagamente, a uma distância enorme, as maravilhas da Terra de Promissão – volvem os olhos para trás, para a propínqua terra da escravidão antiga, percebem ainda o cheiro das panelas de carne com cebola – e voltam atrás. Outros vão até ao Mar Vermelho, rubro como sangue: outros vão até ao sopé do Sinai – mas o peso das coisas materiais que conhecem prevalece sobre a leveza das coisas espirituais que apenas vislumbram ao longe. . .
É perigosa prática a de certos diretores espirituais que tentam consolar, ou antes engodar, um peregrino terrestre com a descrição das delícias celestes que, um dia, possuirá. Um dia – mas quando? Daqui a 10 anos? A 20, 50, anos, só depois da morte? E onde possuirá ele essas delícias celestes? Onde está o céu? Não é um lugar incerto e problemático?
E o pobre viajor do deserto da disciplina espiritual, da vida ética, prefere as coisas certas e concretas do Egito às coisas incertas e vagas de Canaã. . .
Prefere a farta escravidão à austera liberdade. . . Poucos, pouquíssimos têm a sobre-humana coragem de sacrificar os bens palpáveis da vida presente pelos bens impalpáveis da vida futura. Quem apenas crê nessa vida futura e nunca a experimentou e viveu direta e imediatamente, acabará por sucumbir à prepotência dos gozos materiais.
Onde está o erro dessa "direção espiritual"?
Está no fato de se pintar aos humanos viajores terrestres vida eterna como algo futuro, longínquo – e não como algo presente e propínquo. A vida eterna deve começar agora e aqui mesmo, em pleno deserto da vida terrestre, e fazer dela um "deserto vivente" como diz Walt Disney, em sua película "The Living Desert". A vida eterna não é um presente de berço nem de esquife – é uma conquista da vida entre esses dois polos extremos. Não é o nascer nem o morrer que me pode fazer entrar na vida eterna, mas é o próprio viver. Vive-se eternamente vivendo intensamente, plenamente, integralmente.
Este mesmo deserto árido e monótono da disciplina espiritual é que pode e deve ser transformado num "deserto vivo". Terra da Promissão vem de dentro de mim mesmo, e não de fora. Não é um prêmio externo que, daqui a meio século, me seja conferido pelo bom comportamento de hoje, não! A vida eterna é uma gloriosa realização interna, dentro de mim mesmo, a plena e definitiva maturação do meu Eu espiritual.
Que é a vida eterna? O Mestre de Nazaré a define nestes termos: "A vida eterna é esta: conhecerem-te (os homens), ó Pai, como o único Deus verdadeiro, e o Cristo, teu Enviado. " Ora, se a vida eterna é o conhecimento intuitivo de Deus em si mesmo e na sua manifestação máxima no mundo, porque não poderia eu agora mesmo e aqui em pleno deserto, ter esse conhecimento de Deus? O deserto não é empecilho, é antes auxílio para esse conhecimento. Mais alto fala Deus no silêncio do ermo do que no ruído do Egito. Onde está Deus lá está a vida eterna, a glória, a grandeza, a beatitude;
ora Deus está integralmente aqui onde eu estou, em pleno deserto; logo Deus e a vida eterna com todas as suas glórias e grandezas estão aqui mesmo, e não há necessidade alguma para esperar encontra-los, daqui a meio século, em alguma região distante.
Se esta vida de disciplina espiritual ainda me parece um deserto árido e monótono, é unicamente porque eu ainda não descobri a Deus em mim.
Deus está presente a mim – mais eu ainda estou ausente de Deus. No dia em que eu me tornar presente ao Deus sempre-presente – quer dizer, quando descobrir a Deus pela vivência íntima – saberei com absoluta certeza e clareza que não há deserto lá onde está Deus com toda a sua plenitude, vida e amor.
O descobrimento de Deus no deserto acabará definitivamente com o deserto, porque onde Deus está não há deserto. Deus não é o Deus do vácuo e da pobreza – Deus é o Deus da plenitude e da riqueza.
O problema não está em atravessar o deserto e encontrar em Canaã – o problema está em descobrir Canaã dentro deste mesmo deserto, e não ter já necessidade de alongar os olhos para longínquos horizontes além. Quem descobriu o seu divino "Além-de-dentro" não necessita de andar em busca de algum divino "Além-de-fora".
Quem descobriu o seu Cristo interno transformou o deserto em oásis, o ermo em exuberância, a aridez em fecundidade, a indigência em opulência, a vacuidade em plenitude, a tristeza em alegria. . .
E, embora continue a carregar o jugo e o peso do Cristo, nada sente da amargura e do fardo com que outros, não iniciados, gemem sob a sua cruz. . .
Em pleno sofrimento vive uma vida de alívio e descanso – esse homem cristificado. . . "Vinde a mim, todos. . . "