Sermão da Montanha: 154
Versão para cópia
"CONTEMPLAI OS LÍRIOS DO CAMPO COMO CRESCEM. . . "
Do meio da trepidante lufa-lufa dos esfalfantes cuidados do homem egoísta e sempre inquieto pelo dia de amanhã, chama o divino Mestre a atenção de seus discípulos para a serena quietude e beleza da natureza em derredor.
E sua profunda filosofia espiritual atinge as excelsitudes duma fascinante poesia mística. "Contemplai as aves do céu! Não semeiam nem ceifam nem recolhem em celeiros – vosso Pai dos céus é que lhes dá de comer. . . Quem de vós pode, com todos os seus cuidados, prolongar a sua vida por um palmo sequer?
Contemplai os lírios do campo como crescem! Não trabalham nem fiam, e, no entanto, digo-vos eu que nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu jamais como um deles. Se, pois, Deus veste assim a erva do campo, quanto mais a vós, homens de pouca fé. Buscai, pois, em primeiro lugar, o reino de Deus e sua justiça – e todas as outras coisas vos serão dadas de acréscimo!" Existe uma profunda afinidade entre o homem espiritual e a natureza.
Entre o subconsciente deste e o superconsciente daquele.
A natureza está em perfeita harmonia com o Creador, embora essa harmonia seja automática, instintiva, por falta de um ego consciente. Ora, o que a natureza possui desde o início, por obra e mercê de Deus, isto pode e deve o homem conseguir por iniciativa própria, estabelecendo entre si e Deus uma paz e harmonia consciente ou superconsciente.
Para que, pois, todos esses cuidados supérfluos, engendrados pelo ego consciente do intelecto, da personalidade?
Quando o ego consciente se opôs ao Eu superconsciente – que é o Deus oniconsciente no homem – a natureza subconsciente declarou guerra ao homem. E até hoje o homem profano está entre dois fogos, hostilizando o mundo divino acima dele e o mundo natural abaixo dele. Nem fará as pazes com este enquanto não fizer o tratado de paz com aquele.
Mas o homem espiritual, em harmonia com o Deus do mundo, entra na grande harmonia com o mundo de Deus. E então contemplará ele as aves do céu e os lírios do campo, arautos de Deus e veículos duma grande paz divina.
Enquanto o homem hostiliza a Deus é ele hostilizado pela natureza, que lhe nega até o necessário para a vida, e o homem tem de lutar a fim de ganhar o seu "pão, no suor do seu rosto", porque a terra se lhe cobriu de "espinhos e abrolhos". Quando, porém, o homem fizer as pazes definitivas com o Deus do mundo, então o mundo de Deus fará as pazes com o homem e lhe oferecerá, gratuitamente, tudo de que ele necessitar para uma vida dignamente humana. "A vida é luta renhida, Viver é lutar. . . " Estas palavras do poeta são do homem ainda profano, que, de fato, tem de lutar duramente para poder viver, porque a sua vida está em permanente conflito com as fontes da subsistência, e, além disto, o seu ego persona deseja possuir o supérfluo, em vez de se contentar com o necessário e suficiente;
porque não crê nos tesouros do reino de Deus, procura acumular enormes quantidades dos pseudotesouros deste mundo. "Nem Salomão se vestiu jamais como um deles. . . " Estava o Nazareno sentado à beira dum caminho, onde floriam numerosos lírios vermelhos como púrpura, muito comuns na Palestina, e o divino poeta cósmico, apontando para esse grupo de filhas gentis da Flora, fez ver a seus ouvintes que a inteligência humana, com toda a sua ciência e técnica, é incapaz de produzir um tecido tão perfeito e delicado como a inteligência divina produz, todos os dias, em grande quantidade, nos domínios da natureza, onde impera o espírito do Creador.
A pequena inteligência humana produz certos artefatos que, quando vistos à distância, parecem, sofrivelmente belos; mas, quando examinados pela objetiva dum microscópio, se revelam grosseira obra de fancaria, sem arte nem delicadeza. Na natureza, porém, acontece precisamente o contrário: quanto mais poderoso for o microscópio, tanto mais estupenda se revela a perfeição de um tecido orgânico; qualquer célula de planta, qualquer asa de mosquito, qualquer teia de aranha é uma obra de arte perfeitíssima nos seus menores detalhes que nenhuma inteligência humana jamais conseguirá produzir algo semelhante.
É que na natureza subconsciente opera diretamente a grande Inteligência Cósmica da Divindade, ao passo que no consciente humano opera apenas a pequena inteligência telúrica.
A natureza, reflexo direto do espírito divino, não revela vestígio de cuidados, de afobação, de nervosismo; não visa determinados resultados, mas procura realizar com a máxima perfeição cada uma das suas obras, sem se interessar pelas consequências, sem esperar louvores nem recear censuras. Em nossas selvas tropicais desabrocham, cada dia, milhões e miríades deflores, prodígios de formas e cores – e morrem pouco depois, para serem substituídas por outras maravilhas, sempre novas e louçãs, através de milhões de séculos e milênios.
Quem é que as vê? Quem as admira? Quem as aplaude?
Ninguém!
As maravilhas da natureza não nascem para serem elogiadas; não são belas para serem vistas – mas por causa da própria beleza. Toda a sua razão de ser é intrínseca, não tem finalidade extrínseca.
Se os lírios das nossas várzeas e as orquídeas das nossas vitrinas pudessem ouvir certas banalidades estéticas que algum admirador humano profira diante deles, sentir-se-iam ofendidos e revoltados. . .
Como se eles fossem belos para serem admirados!
Como se eles se revestissem de louçanias por algum motivo externo, diferente dessa própria louçania!
Quando o homem produz alguma obra de arte, ou uma peça de mobília, essa obra é, em geral, sofrivelmente acabada nas faces visíveis ao observador, mas na face invisível – como num armário encostado na parede – há sarrafos brutos, porque o móvel é destinado a ser visto. . .
As filhas da natureza, porém, ignoram semelhante camuflagem e hipocrisia;
são integralmente perfeitas e belas, pela frente e por detrás, à direita e à esquerda, em cima e embaixo, por fora e por dentro, no visível e no invisível, no conjunto harmônico de formas e cores e em cada um dos seus mais pequeninos pormenores, em cada célula, molécula e átomo. . .
Quando o homem ultrapassa a zona da sua inteligência egoísta e interesseira e entra no universo do seu espírito cósmico e desinteressado, então realiza ele, conscientemente, o que a natureza fez inconscientemente.
Não necessita de rótulos externos e elogios de terceiros quem traz dentro de si mesmo a suprema apologia dos seus atos.
Não espera louvores nem teme censuras quem de elogios e vitupérios não tem mister. . .
O testemunho da consciência pura e desinteressada é suficiente para o homem crístico; que realiza, com amor e entusiasmo, as tarefas que tem de realizar, sem esperar por resultados palpáveis.
Contemplai as aves do céu. . .
Contemplai os lírios do campo. . .
Buscai, em primeiro lugar, o reino de Deus. . .
Estranhas parecem a muitos as palavras "e todas as outras coisas vos serão dadas de acréscimo".
Essas "outras coisas" são as coisas necessárias para a vida material.
O homem profano tem de dar caça incessante a essas "outras coisas", lutar por elas, dia e noite – por quê?
Porque não buscou ainda, devidamente, o reino de Deus e sua verdade.
Vigora, entre o homem profano e a natureza, uma espécie de "magnetismo de repulsão"; mas, entre o homem espiritual e a natureza, há um "magnetismo de atração". Quanto mais o homem profano se esforça por se apoderar das coisas do mundo objetivo, tanto mais essas coisas fogem dele, repelidas por um pólo invisível nele existente; não adianta redobrar de esforços, porque, com esse redobramento, redobra também o magnetismo repulsivo, e o homem ambicioso tem de aumentar as suas lutas numa progressão geométrica, para arrancar à natureza rebelde mais algum dos cobiçados farrapos. O remédio está em mudar o "prefixo", em desistir da desenfreada lufa-lufa das coisas externas e devotar-se totalmente à realização das coisas internas, que o divino Mestre chama "o reino de Deus e sua justiça" – e o homem verá, com jubilosa surpresa, que, depois de mudado o "prefixo" de atitude interesseira para a atitude desinteressada, todas aquelas coisas que antes fugiam começam a correr atrás dele. E que o misterioso teotropismo de todas as coisas adivinha no homem espiritual um "irmão mais velho" e um guia seguro para o centro comum, origem e fim de todas as creaturas, e querem com ele chegar a Deus.
A antipatia de ontem se transformou na simpatia de hoje.
Esse homem não necessita mais de lutar pelas coisas necessárias, porque a natureza, amiga e aliada, lhe abre o tesouro das suas forças secretas e lhe fornece, espontânea e jubilosamente, todas as coisas de que ele tem mister, a fim de poder dedicar o melhor do seu tempo e das suas energias à causa magna do reino de Deus e sua justiça.
E, pela primeira vez, verifica o homem que o Evangelho de Jesus Cristo não é apenas um caminho seguro para o reino de Deus que não é deste mundo mas também uma norma segura para a obtenção de todas as outras coisas necessárias para uma vida dignamente humana aqui na terra.