Sermão da Montanha: 154
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"Não resistais ao maligno!". . .
Nenhuma igreja, nenhum Estado cristão aceitou, até hoje, essa doutrina do divino Mestre. Todos praticam violência, por sinal que todas as sociedades, civis e eclesiásticas, se guiam, até hoje, pela lei do talião, estabelecida por Moisés, "olho por olho, dente por dente". Aliás, parece mesmo que uma sociedade organizada não pode guiar-se pelo espírito do Evangelho do Cristo, porque qualquer sociedade organizada é baseada sobre o egoísmo, que aprova à violência; parece que só um indivíduo pode ser realmente crístico, não-violentista. A sociedade tem determinados estatutos, leis, parágrafos jurídicos, que implicam sanção, isto é, violência, punição aos infratores dos estatutos jurídicos da sociedade. Sendo que toda a sociedade é produto da inteligência e a inteligência é, essencialmente, egoísta, não pode haver uma sociedade não-egoísta, não-violentista. Se Mahatma Gandhi conseguiu libertar a Índia com ahimsa (não-violência) foi unicamente porque, ao redor dele, havia numerosos indivíduos firmemente alicerçados na mesma verdade, como concebeu o próprio Presidente Nehru, e não porque a sociedade como tal se guiasse pelo princípio altruísta da ahimsa. Toda e qualquer sociedade, como sociedade, pratica necessariamente himsa (violência), sob pena de se destruir a si mesma, não fazendo valer as suas leis; só um indivíduo pode praticar ahimsa, não pagando mal com mal, mas pagando o mal com o bem, amando aos que o odeiam. "Não resistir ao maligno" é, pois, uma ordem que visa diretamente o indivíduo em vias de cristificação. Uma sociedade, sendo fundamentalmente egoísta, nunca pode ser crística, embora possa dizer-se cristã, isto é, egoísta envernizada de Cristianismo.
Nenhuma sociedade organizada pode abrir mão dos seus "direitos", sob pena de cometer suicídio, ela só existe em virtude dos seus "direitos"; o direito, porém, é uma forma de egoísmo, e egoísmo gera violência. Só se a sociedade abdicasse dos seus "direitos", tudo endireitaria; mas, enquanto ela faz valer os seus "direitos", tudo está torto.
O contrário do "direito" é a "justiça", que é praticamente idêntica ao amor. A "justiça", no sentido bíblico, é invariavelmente a "justeza", o perfeito "ajustamento", a harmonia entre o indivíduo e o Universal, entre o homem e Deus, entre a creatura finita e o Creador Infinito. Essa justiça, porém, é o perfeito amor, como aparece no "primeiro e maior de todos os mandamentos", enunciado por Jesus.
No frontispício do Fórum da cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, se acham gravadas estas palavras do jurista-filósofo Cícero: "Summum jus – Summa injuria" (o supremo direito é a suprema injustiça). Quem reclama todos os seus direitos pessoais, age em nome de seu ego, que é necessariamente egoísta; mas quem pratica a justiça, age em nome da Constituição Cósmica do Universo, age em nome da própria alma do Universo, que é Deus; age, em nome do amor cósmico, que é a voz do divino Eu no homem.
Quem apela para seus "direitos" age em nome do ego, que é violentista.
Quem apela para a "justiça" age em nome do Eu, que não é violentista. "Não resistir ao maligno" é, pois, um apelo para o divino Eu no homem, e não para seu humano ego.
Há, na legislação mosaica, uma matemática estranha: supõe que uma violência se neutralize com outra violência. Se alguém me arranca um olho ou quebra um dente, e eu lhe arrancar também um olho e quebrar um dente, estamos quites; porque cobrei do meu devedor uma divida em aberto. Na realidade, porém, não estamos quites, nem eu nem ele, porque um negativo dele mais um negativo meu dão dois negativos; quer dizer que nós dois, meu ofensor e eu, ofensor dele, criamos dois males no mundo; e, como a segunda ofensa exige uma terceira, da parte dele, e essa reclama uma quarta ofensa, da minha parte, e assim por diante, numa indefinida "reação em cadeia" – é claro que nós dois, o ofensor de lá e o ofensor de cá, vamos piorando o mundo cada vez mais, enchendo-o de negativos e mais negativos.
Contra essa falsa matemática de Moisés opõe Jesus a verdadeira matemática, absolutamente lógica e racional, afirmando que o negativo (mal) só se neutraliza pelo positivo (bem), e que o único modo de melhorar o mundo e a humanidade é pelo processo de:
1) não resistir ao mal;
2) de opor o bem ao mal. O meu positivo oposto ao negativo do meu ofensor neutraliza esse negativo, e o resultado é zero; mas, se eu opuser ao negativo do ofensor não apenas um positivo (um bem), porém, muitos – digamos 10 – neste caso não somente neutralizei o negativo (mal) dele, mas ainda há um superávit de positivos, isto é, enriqueci a humanidade de bens positivos.
Mahatma Gandhi – precisamente por ser mahatma, "grande alma" – compreendeu e praticava admiravelmente essa matemática espiritual do Evangelho do Cristo, dando à não-resistência o nome sânscrito de ahimsa e à política benevolência para com o ofensor o nome de satyagraha (apego à verdade), ou seja amor, justiça cósmica.
Naturalmente, para que alguém possa praticar essa não-violência e essa benevolência, tem de passar por uma profunda experiência mística sobre a sua verdadeira natureza, e não se identificar com seu ego físico-mental-emocional.