Sermão da Montanha: 154
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"QUEM QUISER CONSTRUIR UMA TORRE. . . EMPREENDER UMA GUERRA – RENUNCIE A TUDO!"
As alegorias da construção da torre e da empresa bélica focalizam como talvez nenhuma outra, a sapiência cósmica do Nazareno, sapiência que se acha em flagrante conflito com a tradicional sagacidade da inteligência humana.
Diz o Mestre que o homem que deseja construir uma torre elevada – nós diríamos um arranha-céu – deve, antes de tudo, calcular criteriosamente se possui os recursos necessários para ultimar a obra, para que não seja obrigado a deixar o trabalho a meio caminho, com grande prejuízo próprio e zombaria dos outros.
Diz ainda que um rei, em vésperas de declarar guerra a outro rei, deve ponderar judiciosamente se com 10. 000 soldados pode derrotar seu adversário que dispõe de 20. 000, do contrário, fará melhor em desistir do empreendimento para que, a meio caminho das operações bélicas, não se veja obrigado a solicitar convênios de armistício ou paz, com grande humilhação e prejuízo.
Até aqui, as duas alegorias nada parecem ter de extraordinário; temos até a impressão de ouvir falar um homem do nosso século interessado na construção de edifícios, ou um beligerante profano dotado de certo tino estratégico e senso diplomático. E, com isto, nos sentimos quase reconciliados com o Nazareno, considerando-o como um dos "nossos" – quando, de improviso, ele passa do símbolo para o simbolizado, recorrendo a uma conclusão diametralmente oposta aos nossos cálculos e à nossa expectativa: "Assim, vos digo eu, não pode ninguém ser discípulo meu quem não renuncie a tudo quanto possui".
Segundo a nossa sagacidade humana teríamos esperado algo totalmente diverso; teríamos esperado que o Mestre recomendasse ao construtor da torr " – digamos, em linguagem moderna, do arranha-céu – que aumentasse os seus recursos para poder terminar a obra começada; e que fizesse ver ao rei beligerante que duplicasse ou triplicasse o número de seus soldados para derrotar seu inimigo. E, no plano material, é claro, teria sido estaa solução. O simbolizado, porém, não se acha nesse plano material, e por isso Jesus não recomendou nenhum desses dois expedientes. Em vez disto, passa a uma conclusão diametralmente oposta às nossas expectativas: insiste em que o homem, para conseguir os recursos necessários, abra mão de tudo quanto possui! Quer dizer que a fraqueza está no possuir – e a força no despossuir-se.
Os objetos materiais a que o homem está apegado representam a medida da sua impotência – ao passo que a espontânea renúncia a esses objetos é a bitola da sua potência, porque esse voluntário desapego das quantidades materiais significa qualidade espiritual. Ora, sendo a quantidade sinônimo de fraqueza, e a qualidade homônimo de força, é claro que o apego a objetos materiais é fraqueza e derrota – e a renúncia espontânea aos mesmos é força e garantia de vitória.
A filosofia qualitativa do Mestre, como se vê, é exatamente o contrário da nossa política quantitativa: e o verdadeiro Cristianismo está na razão direta daquela e na razão inversa desta.
O "ter" é dos profanos – o "ser" é dos iniciados.
Quanto mais cresce o "ser" do homem, mais decresce o seu desejo de "ter".
Não é, certamente, a simples ausência material desses objetos que dá força ao homem; não é o simples fato de alguém ser Diógenes ou um mendigo pelo desfavor das circunstâncias – mas é o fato da espontaneidade do desapego, porque esse ato voluntário é filho de uma exuberante plenitude espiritual, e essa plenitude é que é garantia de vitória, ou melhor, ela mesma é a grande vitória.
A vida espiritual é uma construção altíssima, uma intensa verticalização rumo ao Infinito, obra gigantesca que necessita de um alicerce sólido para não expor a futuros riscos a grande torre.
A vida espiritual é uma guerra sem tréguas contra poderosos adversários como ilustra tão maravilhosamente o drama místico da Bhagavad Gita: o príncipe Arjuna tem de lutar contra os usurpadores do seu trono espiritual, os sentidos e o intelecto.
Os recursos para essa grande empresa aumentam na proporção direta em que o homem der mais importância ao que ele é internamente e menos importância ao que ele tem externamente. O "ser alguém" é, geralmente, incompatível com o "ter algo"; por isso deve o homem diminuir aquilo que tem na razão direta daquilo que ele é.
Só alguém que fosse firmemente estabelecido e consolidado no seu eterno "ser" poderia, sem prejuízo, voltar ao "ter" temporário – mas onde estão esses homens cósmicos, univérsicos, plenamente cristificados, totalmente realizados?
A imensa maioria dos homens do nosso século mesmo quase dois milênios após a vinda do Cristo – não podem ser e ter ao mesmo tempo; só lhes resta a alternativa entre o ser e o ter: ou ter sem ser – ou ser sem ter.
Mahatma Gandhi foi convidado pelos homens do "ter" a derrotar a potência material do Império Britânico com outra potência material – isto é, derrotar um "ter" com outro "ter"; mas ele se recusou preferindo derrotar o "ter" material do militarismo inglês com o "ser" espiritual que ele tinha em Deus. E Gandhi o fez, de encontro a todas as expectativas dos que só viam força na política do "ter", e fraqueza na filosofia do "ser".
É que "a loucura de Deus é mais sábia que os homens, e a fraqueza de Deus é mais forte que os homens. " (São Paulo) "Bem-aventurados os mansos, porque eles possuirão a terra!" (Jesus) Mansos são os que confiam no "ser" espiritual e desconfiam do "ter" material.
Aparentemente esses mansos são constantemente derrotados pelos violentos;
na realidade, porém, eles são sempre vitoriosos, aqui e por toda a parte, embora os cegos e os míopes nada enxerguem dessa vitória, que se acha numa outra dimensão, inacessível ao alcance dos sentidos e do intelecto.
Internamente, os mansos são sempre vitoriosos, porque possuem o reino dos céus; mas muitas vezes são vitoriosos também externamente, possuindo não só o céu de dentro, senão também a terra de fora. Não há, certamente, nenhum Alexandre Magno, Aníbal, Júlio César, Napoleão, Hitler ou Mussolini que tão genuinamente possua "a terra", isto é, as simpatias, o amor e a admiração dos melhores dentre os homens, aqui na terra, como os possuem, através dos séculos e milênios, Jesus, Francisco de Assis, Mahatma Gandhi e todos os que preferiram a mansidão à violência, o amor ao ódio.
Esses, sim, construíram a sua torre espiritual pelo desapego e derrotaram seus inimigos pelo amor.