Sermão da Montanha: 154
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"FOI DITO AOS ANTIGOS – EU, PORÉM, VOS DIGO"
"Não penseis que vim abolir a lei e os profetas; não, não os vim abolir, mas levar à perfeição". Com estas palavras elucida o Mestre a sua missão de continuador da revelação divina. Recipientes mais humanos e menos divinos que Jesus, veículos ainda contaminados pelas imperfeições humanas receberam revelações de Deus; mas a puríssima revelação de Deus se tornou parcialmente impura pelo contato com o recipiente ou veículo não perfeitamente puro – e a revelação puríssima de Deus apareceu impura, devido à impureza do recipiente; porquanto "o recebido está no recipiente segundo a capacidade do recipiente".
Suponhamos que o recebido (a revelação divina) seja 100% pura, mas o recipiente humano apenas 50% puro; neste caso, a revelação divina 100%
pura aparecerá entre os homens apenas 50% pura, porque vem mesclada com os outros 50% da impureza humana.
O Antigo Testamento está cheio desses "recebimentos impuros". A lei do talião "olho por olho, dente por dente", a ordem de apedrejar as adúlteras, a maldição e carnificina de crianças inocentes que aparece no final do Salmo 137, e alhures – nada disto foi revelado ou ordenado por Deus na forma em que aparece nas páginas da Bíblia; se assim fosse, Jesus não teria absolvido a mulher adúltera em vez de mandar apedrejá-la, segundo exigia a lei de Moisés, nem teria mandado que amássemos nossos inimigos, em vez de os odiarmos como mandava a lei antiga.
A humanidade e sua receptividade espiritual não são algo estático e inerte, mas sim um processo em contínua evolução. O que, milênios atrás, só podia ser compreendido e praticado imperfeitamente, pode hoje em dia ser compreendido e praticado com maior perfeição.
Em Jesus encontrou a Divindade o seu recipiente e veículo mais perfeito até hoje conhecido; através de Jesus se revelou o eterno "Lógos" (Verbo), que no princípio estava com Deus e era Deus, do modo mais puro que a humanidade conhece. A pura humanidade de Jesus não contaminou a pura revelação de Deus; em Jesus encontrou o eterno Cristo a sua manifestação mais completa e fiel.
Neste sentido diz o Nazareno: "Eu não vim abolir, mas sim levar à perfeição, a lei e os profetas".
Infelizmente, andam por aí umas traduções inexatas que dizem "cumprir" em vez de "completar", ou "levar à perfeição". Tanto no original grego como na tradução latina da Vulgata está "completar" (em grego plerosai, em latim adimplere). Se Jesus tivesse apenas vindo para cumprir a lei antiga, e não para lhe dar perfeição ulterior, não teriam sentido as palavras "foi dito aos antigos;
eu, porém, vos digo"; seria ele um dócil discípulo de Moisés, mas não um mestre de perfeição superior.
O que Jesus acrescenta à lei antiga é a atitude interior, ao passo que a lei antiga se contenta com atos exteriores. A lei de Moisés opera no plano jurídico, horizontal, em que operam as nossas leis civis de hoje. Nenhuma autoridade judiciária condena ou absolve um réu em virtude das suas boas ou más intenções internas, mas unicamente em virtude dos seus atos externos. "De intimis non curat praetor", diziam os juris-consultos romanos, o magistrado não trata das coisas íntimas. A alçada do magistrado humano é o foro externo – mas para Deus é muito mais importante o foro interno, O pecado não está, propriamente, no ato externo, físico, mas sim na atitude interna, moral. Quando uma fera mata um homem, ninguém a culpa como eticamente responsável por esse homicídio, porque houve apenas ato, e não atitude.
Afirma Jesus que homicida não é somente aquele que, de fato, mata um ser humano, mas também aquele que nutre ódio em seu coração; adúltero é também aquele que, sem cometer adultério exterior, alimenta em seu coração desejos libidinosos e por isto lança olho cobiçoso a uma mulher.
Atos são efeitos ou sintomas de uma atitude, que é causa ou raiz. O verdadeiro médico não está, precipuamente, interessado em curar os sintomas de uma doença, mas a própria raiz do mal.
O Cristianismo do Cristo não tem por fim impedir que o homem evite apenas atos maus, ou pratique atos bons, mas sim que crie atitude má. Ser bom é muito mais importante do que fazer bem, porque do ser nasce o fazer, como da raiz brota o tronco e nascem os frutos.
Pode alguém fazer o bem sem ser bom, mas ninguém pode ser realmente bom e não fazer o bem.
A verdadeira natureza do homem é a sua atitude, sub ou superconsciente, e não são apenas os seus atos conscientes. Estes são efeitos e consequências daquela. O homem é muito mais a sua atitude permanente do que os seus atos intermitentes. Os atos manifestam a atitude.
Os atos, considerados em si mesmos, são eticamente neutros, incolores, nem bons nem maus; quem lhes confere bondade ou maldade ética é a atitude ou a intenção do homem.
Os atos externos podem ser comparados a zeros "000. 000", ao passo que a atitude interna equivale a um valor positivo, como por exemplo: "1"; em si mesmos, os zeros não têm valor algum, mas, quando unidos ao "1", são valorizados por este valor positivo, porque suas vacuidades são participantes da plenitude do valor intrínseco do "1".
Se Jesus tivesse abolido a lei antiga, que girava sobretudo em torno de atos, teria declarado inúteis os atos externos. Se tivesse apenas cumprido a lei, isto é, executado ao pé da letra aquilo que a lei antiga preceituava, teria declarado suficientes os atos externos. O fato, porém, é que ele não abole a lei dos atos, nem declara suficientes os atos da lei, mas exige que os atos externos, bons, sejam filhos de uma atitude interna, boa. Destarte, completou ele a lei e os profetas, substruturando os atos bons com atitudes boas.
Se tivesse abolido a lei antiga, teria sido revolucionário, demolidor; se tivesse apenas cumprido a lei antiga, seria simples tradicionalista conservador. Mas, como ao mesmo tempo conservou o que havia de bom na lei antiga e lhe acrescentou um novo elemento bom, é ele um verdadeiro evolucionista no terreno espiritual-moral. Sobre a base do passado e do presente, ergue o Mestre o edifício do futuro.
Não basta que pratiquemos atos externamente bons, é necessário que sejamos internamente bons.