Sermão da Montanha: 154

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CAPÍTULO 32
Ilustração tribal

"ESTREITA É A PORTA E APERTADO O CAMINHO QUE CONDUZEM À VIDA ETERNA"


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Palavras equivalentes a estas aparecem inúmeras vezes, e com grande insistência na doutrina de Jesus, como aliás de todos os grandes mestres espirituais da humanidade. Estreita é a porta e apertado o caminho que conduzem à vida eterna – ao passo que larga é a porta e espaçoso o caminho que levam à morte eterna. Difícil é a salvação – fácil a perdição do homem.

A vida eterna, isto é, a imortalidade do nosso Eu, é o que há de mais largo e espaçoso em si mesmo, porque é o próprio Infinito e Eterno – mas o processo de realizarmos em nós, individualmente, esse estado é tão árduo que poucos o conseguem, pelo menos na existência terrestre.

De infinita alegria e felicidade é a meta – de grandes lutas e sofrimentos é o método.

Donde vem essa dificuldade?

É porque se trata da transição de um estado da nossa vida já antigo, conhecido e fácil, que é a experiência do nosso ego físico-mental – para outro estado, novo, quase totalmente desconhecido, e por isso difícil, ao menos no seu inicio.

Pode a continuação ser fácil, mas toda a iniciação é difícil. Um violinista virtuose, um "iniciado" nessa arte, não encontra dificuldades em tocar com perfeição a mais difícil das músicas – mas um violinista principiante, um "iniciando", tem de concentrar o máximo da sua atenção e do seu esforço mental para acertar as notas. O que para aquele é gozoso, para este é ainda doloroso. Amar os inimigos é fácil para o Cristo, porém dificílimo para qualquer discípulo do Cristo não cristificado. "Discípulo" e "disciplina" vêm da palavra latina "discere", que quer dizer "aprender". O que é fácil e gozoso para o Mestre é difícil e doloroso para o aprendiz.

Tudo que se refere às atividades do nosso ego personal – no mundo dos sentidos, da mente e das emoções – é fácil para nós, porque é rotina de longa data, que corre sobre trilhos previamente alinhados, foi praticado durante anos e decênios por nós, individualmente, e por muitos milênios pela humanidade considerada como espécie coletiva. Todo homem normal acha fácil e gozoso comer, beber, dormir, fruir prazeres sexuais; é fácil e deleitável adquirir e possuir bens materiais, conservá-los e aumentá-los cada vez mais; essa incessante caça à matéria morta ou à carne viva é o alfa e ômega da imensa maioria dos homens que conhecemos. É fácil e fascinante ouvir elogios, ser estimado, amado, aplaudido como um super-homem, talento ou gênio, porque tudo isto acaricia nosso velho ego físico, mental e emocional. Nesta zona não se requer "disciplina", isto é, arte de "discere", de aprender, porque todas estas coisas se desenrolam em nós com automática facilidade.

Entretanto, é difícil e doloroso abrir mão das nossas posses materiais, dos nossos prazeres sensuais, dos elogios e da estima de nossos semelhantes, porque estas coisas se referem, não ao nosso Eu espiritual – que é, para a maior parte dos homens, uma grande incógnita, talvez um objeto de crença, mas, para pouquíssimos experiência própria – mas ao pequeno ego. Aqui se requer "disciplina", a arte de aprender, de ser aprendiz ou discípulo. É psicologicamente claro que o homem não pode gostar de algo que ignora e que não pode ter facilidade de algo que não praticou; faltam os trilhos alinhados e falta também o volante da máquina que suavize os movimentos. É "porta estreita e caminho apertado".

Os grandes mestres espirituais conheciam de experiência própria, de prática diuturna, essa zona maravilhosa, e, em face da sua fascinante grandeza e beleza, perdiam o interesse pelas coisas primitivas do mundo externo, que, para os ignorantes e inexperientes, forma o cobiçado alvo da lufa-lufa cotidiana. Eles são os sapientes e universitários do espírito – nós, os insipientes e analfabetos da grande realidade. Os verdadeiros "realistas" são esses grandes iniciados no mundo da suprema e única Realidade – nós, os "irrealistas" ou "pseudo-realistas". Todo homem fascinado pelo mundo objetivo é irrealista, embora, lá na sua profunda ignorância, ele se tenha em conta de realista e considere o homem espiritual como irrealista e sonhador de miragem.

Um homem boçal, habituado a se divertir em tavernas infectas e clubes de ínfima categoria, não compreenderia o "mau gosto" dos que se deliciassem numa sociedade de artistas ou filósofos; não possui antena receptiva para tão altas vibrações.


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Entre a experiência do nosso velho ego e a experiência do nosso novo Eu (embora antiquíssimo em si) pode o homem assumir uma de duas atitudes, diametralmente opostas uma à outra: pode assumir a atitude de crer ou a atitude de não crer naquilo que ainda ignora e desconhece.

A atitude de crer é algo intermediário entre a simples experiência físico-mental do velho ego e a experiência espiritual do novo Eu; é algo equidistante desta e daquele pólo extremo. A experiência do ego baseia-se nos sentidos e no intelecto (tanto mental como volitivo) – ao passo que a experiência do Eu nasce da razão espiritual, a alma, o espírito de Deus no homem. A inteligência tem a tendência irresistível de investigar o mundo externo dos objetos, podendo até invadir as zonas extratelúricas, lançando satélites e planetas para os espaços siderais, ou devassar fisicamente esses espaços. A razão espiritual não está interessada nessa investigação do mundo externo das quantidades, mas vai em demanda do mundo interno da qualidade, porque, na sua profunda sabedoria, ela sabe que as quantidades são derivadas e ilusórias, ao passo que a qualidade é original e verdadeira.

Ora, entre esta sabedoria e aquela ignorância, entre o não saber e o saber, está o crer, o misterioso mundo da fé, no sentido teológico, que consiste num ato de boa vontade, da aceitação de algo de cuja realidade não se tem ainda experiência direta. Fé, na linguagem de Jesus, é idêntica à experiência, isto é, um contato direto com a Realidade, mediante a intuição da razão espiritual, ou revelação divina.

O nosso crer, a fé teológica, é, sobretudo, um ato volitivo, uma atitude da nossa vontade. Crer é querer. O crer ultrapassou o inteligir mental, mas ainda não atingiu o compreender racional, que é o saber (ou saborear) espiritual. Quando o homem compreende racionalmente, sabe ele como o mundo sabe, porque lhe tomou o sabor pela experiência imediata. O verdadeiro sapiente ou santo é aquele que saboreia o mundo espiritual, e por isto é o único que realmente sabe do sabor do mundo de Deus.

Mas essa transição do crer volitivo para o saber espiritual exige uma disciplina intensa e diuturna, porque há entre o crer e o saber um abismo imenso ou uma montanha altíssima a superar. É propriamente aqui a "porta estreita" e o "caminho apertado". A transição do não crer para o crer é fácil quando comparada com a transição do crer para o saber. Pode o homem profano, o descrente, passar a ser um crente, mas apesar disto continuar a ser um profano. O descrente é um profano de má vontade, o crente é um profano de boa vontade – mas ambos são profanos, porque nenhum deles sabe experiêncialmente o que é aquilo em que ele crê ou de que descrê. A profanidade desponta para além de todas as trevas das descrenças e de todas as penumbras das crenças, porque ela é o dia radioso do saber integral, direto, imediato, da própria Realidade, que é o Deus eterno e infinito.

Crer é algo penúltimo – saber é último.

É necessário crer – mas é insuficiente crer.

Ninguém pode saber sem que primeiro creia. Ninguém pode dar o último passo sem passar pelo penúltimo.

Se é difícil para o homem inteligente crer – dificílimo é para o homem crente saber.

O simples entender ou inteligir mental é a vida ideal do ego; é nessa zona da ciência intelectual que o homem profano vive e se diverte habitualmente, e nessa zona pode a personalidade luciférica celebrar os seus maiores triunfos, pode chegar mesmo ao mais intenso satanismo anti-espiritual, se quiser.

Esse simples inteligir mental é perfeitamente compatível com o não crer, e, quando unilateral, leva mesmo à descrença total.

Com o despontar da crença, do crer volitivo, começa uma espécie de agonia para o orgulhoso inteligir mental, porque este se vê obrigado a aceitar algo que ele não pode analisar cientificamente, o que é humilhante para o intelecto.

Mas essa agonia não termina em morte total do ego.

Essa morte total só se dá com a transição do crer para o saber.

O sapiente morreu tanto para a inteligência como para a crença. Deixou de ser um inteligente e deixou de ser um crente. A sua sapiência experiêncial da suprema Realidade devorou todas as irrealidades e semirrealidades inferiores, do plano de inteligir e do crer.

Esse homem é um grande liberto, um verdadeiro redento um liberto, redimido da velha escravidão do mundo dos objetos em que se movem os inteligentes e os crentes. Esse homem deixou de ser profano, e se tornou iniciado, o que não quer dizer que seja um homem plenamente realizado. Iniciado é aquele que fez um início, isto é, que abandonou os seus ziguezagues oscilantes e incertos e pôs o pé no princípio de uma linha reta que o levará rumo ao seu destino final.

Muitos são os profanos.

Poucos os iniciados.

Pouquíssimos os realizados.

Aqui no planeta Terra temos notícia de um único homem plenamente, realizado, liberto e redento da ilusão dos objetos, e por isto mesmo Redentor, Filho de Deus e Filho do Homem.


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Por que é tão difícil passar do inteligir para o crer e do crer para o saber?

Porque o inteligir ou entender mental é terreno batido, conhecido e firme – ao passo que o crer é terreno misterioso, incerto – e saber é um mundo totalmente ignoto para a maior parte dos homens, mesmo os crentes. Ora, a lei da conservação exige que pisemos terreno conhecido e garantido; do contrário, corremos perigo de deixarmos de existir. Não sacrificar o certo pelo incerto – é imperativo categórico da biologia em todos os setores da vida.

Se não houvesse, nas profundezas da natureza humana, algo que nos garantisse a existência para além das fronteiras do inteligir, não deveria o homem cruzar essa perigosa fronteira mental.

Para o animal, até o inteligir, se dele fosse capaz, representaria um perigo, porque a ele só o sentir é que lhe dá segurança vital de existência. O inteligir seria, para o animal, uma espécie de suicídio – assim como o crer é um suicídio para o homem simplesmente inteligente – e o mais completo suicídio, ou egocídio, é a transição do crer para o saber. Quem quiser, a todo o transe, conservar essa sua vida de crente não pode entrar na vida do sapiente – assim como um feto humano que se recusasse a "morrer" para a vida intra-uterina não poderia viver a sua vida própria fora das entranhas maternas.

O profano não é ainda concebido.

O crente é concebido, porém não nascido; apenas nascituro.

O sapiente é um nascido, um pleninato.

A fé, o crer, é uma ponte misteriosa entre um mundo conhecido e um mundo desconhecido; é uma visão longínqua da suprema e única Realidade; é a voz da nossa origem, o eco do Infinito dentro do nosso finito.

O heliotropismo da planta, que a leva a voltar-se sempre ao sol, mesmo quando este se acha oculto por detrás das nuvens, ou não emergiu ainda do horizonte, esse heliotropismo (como a própria palavra indica) é a voz do sol dentro da planta; pois a planta é filha do sol; ela é luz solar em estado potencial. O heliotropismo é o eco solar dentro da vida da planta, que anseia pelo sol porque veio do sol e vive do sol. Para a planta heliotrópica, o sol é ao mesmo tempo, transcendente (atual) e imanente (potencial). A planta, por assim dizer, crê no Sol, e por isto pode crescer, porque o seu crescimento é uma progressiva lucificação, um processo solar dentro da filha do sol.

Ora, sendo o homem essencialmente divino – embora a consciência da sua divindade se ache, por ora, em estado potencial de latência – pode a voz de Deus acordar nele o eco ou a reminiscência da sua origem divina. Quando o homem escuta em si essa voz de Deus, que é a voz do seu verdadeiro Eu, então ele crê, tem fé. E esse crer é o primeiro passo para o saber.


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Que falta ao crer para culminar em saber?

Falta o mais apertado de todos os caminhos, falta a mais estreita de todas as portas – falta que o homem passe pelo "fundo da agulha", despojando-se de tudo que ele tem e ficando só com aquilo que ele é. "Quem quiser ser meu discípulo renuncie a tudo que tem. " Esse desnudo SER, livre de todas as impurezas do TER, é que é o passo mortífero que leva à vida eterna.

Todo homem que passa por essa morte mística entra na vida eterna.

Todo homem que se recusa a passar por essa morte mística cai vítima damorte eterna. . .



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