Sermão da Montanha: 154

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CAPÍTULO 9
Ilustração tribal

"BEM-AVENTURADOS OS PACIFICADORES"


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A palavra latina pacificare, da qual é derivada pacificus, é composta de dois radicais (e o mesmo acontece em grego): pax e facere, isto é, "paz" e "fazer".

Pacificador (em latim: pacificus) é, pois, aquele que faz a paz, é um "fazedor de paz", um homem que possui em si a força creadora de estabelecer ou restabelecer um estado ou uma atitude permanente de paz no meio de qualquer campo de batalha.

A tradução "pacíficos", em vez de "pacificadores", que se encontra em muitas versões portuguesas, não corresponde ao sentido do original grego eirenopoio, nem ao latim pacifici, porque ambos significam um processo ativo e dinâmico, e não apenas um estado passivo de paz.

Quem é, pois, verdadeiro pacificador?

Não é, em primeiro lugar, aquele que restabelece a paz entre pessoas ou grupos litigantes, mas sim aquele que estabelece e estabiliza a paz dentro de si mesmo. Aliás, ninguém pode ser verdadeiro pacificador de outros se não for pacificador de si mesmo. Só um autopacificador é que pode ser um alopacificador. A pior das discórdias, a mais trágica das guerras é o conflito que o homem traz dentro de si mesmo, o conflito entre o ego físico-mental da sua humana personalidade e o Eu espiritual da sua divina individualidade. Se não houvesse conflito interior, entre o seu Lúcifer e o seu Lógos, não haveria conflitos exteriores na família, na sociedade, nas nações, entre povos. Todos os conflitos externos são filhos de algum conflito interno não devidamente pacificado. Por isso, é absurdo querer abolir as guerras ou revoluções de fora, as discórdias domésticas no lar ou no campo de batalha, enquanto o homem não abolir primeiro o conflito dentro da sua própria pessoa.

O grande tratado de paz tem de ser assinado no foro interno do Eu individual antes de poder ser ratificado no foro externo das relações sociais. Nunca haverá Nações Unidas, nunca haverá sociedade ou família unida enquanto não houver indivíduo unido. Pode, quando muito, haver um precário armistício (que quer dizer "repouso de armas"), mas não uma paz sólida e duradoura enquanto o individuo estiver em guerra consigo mesmo. Que é um armistício se não uma trégua, maior ou menor, entre duas guerras? Paz social, segura e estável, supõe paz individual, firme e sólida.


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* "Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz" – disse o Mestre, em vésperas da sua morte – não a dou assim como o mundo a dá; dou-vos a minha paz para que a minha alegria esteja em vós, e seja perfeita a vossa alegria, e ninguém mais vos tire a vossa alegria.

É este o grande tratado de paz, no santuário da alma. Não é um armistício precário de cuja estabilidade se deva temer a cada momento, mas é uma paz firme e indestrutível, plena de alegria e felicidade, porque alicerçada sobre a verdade, a "verdade libertadora".

Essa paz segura e duradoura, porém, só pode existir no homem que ultrapassou todos os erros e todas as ilusões do velho ego e se identificou com a verdade do novo Eu, o homem que descobriu em si o Cristo e o fez triunfar sobre sua vida.

Esta bem-aventurança é, pois, a apoteose da auto-realização porque o homem que realiza o seu elemento divino, o seu Cristo interno, entra num mundo de firmeza e paz, que se revela constantemente em forma de alegria e felicidade e se concretiza em benevolência e vontade de servir e de dar. O homem que encontrou Deus pela experiência mística é, naturalmente, bom e benévolo com todos os homens e com os seres infra-humanos. A felicidade interna tem a irresistível tendência de transbordar em benevolência externa e numa vontade de servir e dar espontânea e jubilosamente. Quando o homem é mau e desabrido com os outros é porque não tem paz interior e sente a necessidade de descarregar o excesso da sua infelicidade – "nervosismo", na linguagem eufemística de cada dia – em alguém ou em alguma coisa, e os objetos mais próximos servem de para-raios para essa tensão do homem infeliz.

Propriamente, deveria esse homem ser áspero consigo mesmo, o principal culpado; mas, como o egoísmo não lhe permite semelhante sinceridade, são os inocentes ou os menos culpados – não raro, até coisas e animais domésticos – alvo dessa irritação do homem intimamente desarmonizado consigo mesmo.

Quando o homem tolera a si mesmo, graças a uma profunda paz de consciência, todas as coisas e pessoas do mundo são toleráveis; mas, quando o homem, de consciência insatisfeita, não se tolera a si mesmo, nada lhe é tolerável.

O remédio não está em mudar os objetos, mas em corrigir o sujeito. Isso, porém, supõe uma sinceridade muito difícil e rara.


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A verdadeira paz é um carisma divino, uma graça, uma dádiva de Deus, que é dada a todo homem que se tornar receptivo para receber esse tesouro.

A verdadeira paz não pode ser manufaturada pelo ego humano, porque esse ego é o autor de todas as discórdias que existem sobre a face da terra. Só quando esse pequeno ego humano se integrar no grande Eu divino é que pode surgir uma paz duradoura.

A paz de que fala o divino Mestre e que ele prometeu a seus discípulos não é algo inerte e passivo, como a não-resistência duma ovelha em face do lobo. O amor é uma "violência" espiritual, disse Gandhi, que derrota todos aqueles que recorrem à violência material do ódio.

Verdade é que o creador da verdadeira paz prefere morrer a matar; mas isto é apenas uma consequência natural da sua atitude; não é a essência da paz. A verdadeira paz é algo essencialmente ativo e dinâmico; uma exuberante plenitude vital, e não uma agonizante vacuidade: é uma jubilosa afirmação, e não uma titubeante negação.

Quem tem firme consciência de possuir a plenitude do ser pode facilmente renunciar à abundância do ter. Quem é alguém na sua profunda qualidade vertical, necessita de bem pouco, no plano horizontal do algo, onde impera o ter. O seu ser e o seu ter estão em razão inversa, como as duas conchas duma balança, como o zênite e o nadir. Quanto maior é o ser de uma pessoa, menor é o seu desejo de ter; e, como toda a falta de paz nasce do desejo do ter, e ter cada vez mais, é lógico que o homem que reduziu ao mínimo o seu desejo de ter, não tem motivo para perder a paz.

A paz é, pois, um atributo do ser, é algo qualitativo, algo que tem afinidade com o EU SOU do homem. O homem que tem plena consciência do seu divino EU SOU não tem motivo para brigar ou declarar guerra a alguém por causa dos teres, que desunem os homens profanos. Mesmo que os outros o tratem com injustiça por causa dos teres, o homem espiritual sabe que todo esse mundo quantitativo do ter é pura ilusão: ninguém pode ter algo que ele não é; só o nosso ser que é realmente nosso.

Por isto, em vez de brigar por causa da capa que alguém lhe roubou, esse milionário do ser oferece, tranquilamente, ao ladrão, também a túnica, porque nem a capa nem a túnica fazem parte do seu verdadeiro ser. E, destarte, ele não sofre perda alguma real; perde dois zeros em vez de um zero, mas a perda de dois zeros (capa e túnica) não é perda maior que a perda de um zero (só a capa). O profano, precisamente por ser profano, isto é, analfabeto do real, corre loucamente atrás do zero da capa que alguém lhe roubou, mas o iniciado, em vez de reclamar o zero da capa, cede ao amante desse zero mais o zero da túnica e não sofreu prejuízo algum, porque todos os objetos são desvalores, apenas o sujeito é que é valor.

Por isto, o homem que chegou ao conhecimento de si mesmo é invulnerável;

ninguém o pode prejudicar, ninguém o pode ofender, ninguém o pode empobrecer, ninguém lhe pode infligir perda de espécie alguma, uma vez que ninguém o pode obrigar a perder o que ele é, e aquilo que ele tem não o enriquece nem a sua perda o empobrece.

A paz nasce, portanto, de uma profunda sabedoria, do conhecimento da verdade sobre si mesmo. Quem conhece essa verdade é livre de todo o ódio, tristeza, rancor, senso de perda e frustração.


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Uma pessoa profundamente harmonizada em si mesma irradia harmonia ao redor de si e satura dessa imponderável e benéfica radiação todas as coisas.

As suas auras benéficas envolvem tudo em um halo de serenidade e bemestar, de fascinante leveza e luminosidade, que atuam, imperceptível, porém, seguramente, sobre outras pessoas receptivas.

O homem que estabeleceu a paz de Deus em sua alma é um poderoso fator para restabelecer a paz em outros indivíduos, e, através destes, na sociedade.

Não é necessário que fale muito em paz, que aduza eruditos argumentos pro pace – basta que ele mesmo seja uma fonte abundante e um veemente foco de paz.

O filósofo místico norte-americano Émerson disse, certa vez, a um homem que falava muito em paz, mas não possuía paz dentro de si: "Não posso ouvir o que dizes, porque aquilo que és troveja muito alto".

Quem não é pacificado dentro de si mesmo, não pode ser pacificador fora de si.


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A conquista definitiva e sólida da paz da alma é fruto de uma grande guerra, guerra que o homem declara a si mesmo, isto é, a seu velho ego. "O reino dos céus sofre violência, e os que usam de violência o tomam de assalto. " Isto é linguagem bélica! O homem tem de lutar arduamente para conquistar a paz. É necessário cruzar misteriosa fronteira dentro de nós para descobrirmos o "tesouro oculto" e a "pérola preciosa" do nosso verdadeiro Eu divino.


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Os pacificadores serão chamados "filhos de Deus".

Deus é a paz eterna, infinita, absoluta; não a paz da inércia, fraqueza e vacuidade – mas a paz da dinâmica, da força, da plenitude. Nele não há discórdia, luta, conflito; e quanto mais o homem se aproxima de Deus, pela compreensão e pelo amor, tanto mais a sua vida se assemelha à vida divina pela paz e serenidade. O homem que fez definitivo tratado de paz consigo mesmo irradia uma atmosfera de calma e felicidade que contagia a todos os que forem suficientemente suscetíveis para perceber essas auras pacificantes.

Os primeiros discípulos de Jesus, referem os At, eram "todos um só coração e uma só alma"; viviam em paz e harmonia e tomavam as suas refeições em comum, na alegria e simplicidade do seu coração; nem havia entre eles um só indigente, porque os que possuíam demais davam do seu supérfluo aos que tinham de menos.

Destarte, pela paz individual, estava solucionado o problema da paz social.



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