Triunfo da Vida Sobre a Morte, O

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CAPÍTULO 2
Ilustração tribal

# O SOFRIMENTO COMO FATOR DE INICIAÇÃO


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É experiência geral que entre o entender intelectual do homem profano e o compreender espiritual do iniciado medeia um grande sofrimento. E esse sofrimento serve como que de catalisador, nessa estranha alquimia.

Se o compreender espiritual fosse apenas a soma total dos atos sucessivos do entender intelectual, não haveria necessidade desse sangrento catalisador;

mas não é isto que acontece. Ninguém chega a Deus só pela força do pensamento. O pensamento é, até certo ponto, necessário para que a compreensão espiritual possa desabrochar na alma; mas, em hipótese alguma, deve o pensamento ser considerado como causa dessa compreensão; é apenas condição preliminar, embora necessária, da mesma.

E vai nisto um elemento profundamente trágico: precisamente no momento em que o homem tem sobre Deus os mais grandiosos e belos pensamentos é que ele deve superar todo esse deslumbrante mundo da filosofia e poesia, e até o fascinante mundo da ética e filantropia, que não o podem conduzir até ao trono de Deus. Todos esses mundos, por mais verdadeiro e bons, só conduzem o homem até ao limiar do santuário; nenhum deles consegue transpor a misteriosa fronteira que há entre o entender e sentir, por um lado, e o compreender e amar, por outro. É indispensável que, depois de todo esse gratíssimo entender, querer e sentir, do plano horizontal, haja uma crucifixão, que uma súbita e inesperada vertical cruze e corte cruelmente aquela horizontal. Sem esse cruzamento, ou crucifixão, não há redenção. "Sem efusão de sangue não há redenção. " Sem essa sangrenta sexta-feira, nas alturas do Gólgota, não há domingo de ressurreição no horto das oliveiras.

O reino de Deus e sua glória nascem entre os braços sangrentos da cruz.

E isto é, para o nosso velho ego, o golpe de misericórdia.

Não podemos dizer que fomos nós, pessoalmente, que arquitetamos dentro de nós o reino de Deus, mas que esse reino nos veio como uma graça, um dom gratuito dos céus, imerecidamente – isto é tão humilhante e tão mortífero para o nosso complacente e autossuficiente ego que toda a sua profana bagagem fica abandonada para aquém da fronteira da verdadeira iniciação espiritual.

É necessário que o homem satisfeito consigo mesmo caia num abismo de insatisfação – ia quase dizendo, de desespero de si mesmo. É esta a mais trágica das tragicidades da nossa vida terrestre: temos de trabalhar e lutar, temos de pensar e realizar, temos de estudar e crer – e, depois de tudo isto, devemos saber que nada disto nos pode salvar. E, por fim, de quilha quebrada, de leme partido e mastros desarvorados, temos de enfrentar o grande naufrágio da nossa vida. Temos de submergir no oceano de um completo aniquilamento do nosso velho ego e de tudo quanto ele produziu, possui e estima – e humildemente temos que esperar que as ondas bravias da misericórdia de Deus nos lancem a alguma ilha longínqua e ignota, desnudos de tudo que julgávamos possuir, a fim de podermos ressuscitar e começar vida nova e verdadeira.

Sem esse total naufrágio do homem velho não há redenção para o homem novo. "Não há heróis no campo de ação – escreve Albert Schweitzer – há tãosomente heróis no plano da renúncia e do sofrimento. " Não é possivel que a "nova creatura em Cristo" nasça sem que o "homem velho" morra. Não é possivel que o grão de trigo produza muito fruto sem que ele primeiro caia em terra e morra – morra para a semente, a fim de viver para a planta.

Aqui é que se dividem os caminhos da humanidade. Aqui é que está a grande encruzilhada entre Lúcifer e Lógos, entre Satan e Cristo, entre os que pretendem fabricar por iniciativa própria o reino dos céus e os que, em humilde silêncio, o recebem nas mãos de Deus. As torres de Babel não atingem o céu.

O homem luciférico move céus e terra para evitar essa crucifixão, essa morte do velho ego; quer, sim, entrar no reino dos céus; mas, de forma alguma, pela porta estreita do sofrimento. Tudo – menos o sofrimento! Muitos dos homens profanos que se têm em conta de iniciados e esotéricos – que são os mais profanos dos profanos – professam esse horror ao sofrimento; e por isto inventam os mais engenhosos sistemas e elaboram mirabolantes técnicas de iniciação indolor, espécie de anestesia ou hipnose, para terem um parto espiritual sem dor. Aquele velho Cristianismo do Sermão da Montanha não é do sabor do espiritualista moderno; ele está convencido de que há outra entrada no reino dos céus que não obrigue o homem a passar pelo Getsêmane e pelo Gólgota. Pois, não fez a humanidade tão estupendas invenções e grandes progressos, nesses dois milênios? Não andamos mais em primitivas canoas e carros de boi – mas voamos em aviões a jato; não nos comunicamos mais por meio de vagarosas diligências e estafetas postais – mas estabelecemos permanente e rapidíssimo intercâmbio por meio de telégrafo e telefone, rádio e televisão. E por que continuaríamos a rastejar dolorosamente nos caminhos obsoletos do Sermão da Montanha? Repetiria Jesus essas coisas se vivesse em pleno século vinte, à luz da Era Atômica?

Entretanto, a natureza humana continua a ser a mesma como nos tempos do Nazareno, e enquanto o homem for egoísta, e cada vez mais egoísta, não há nenhuma possibilidade de redenção que não passe pelas trevas do sofrimento.

Não há ressurreição para o "homem novo" enquanto o "homem velho" não for crucificado, morto e sepultado. . .


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Outros, em vez de práticas iniciáticas e liturgias esotéricas, se lançam ao mar imenso das atividades ético-sociais e filantrópicas, fundando sociedades, igrejas, asilos, colégios, criando estupendas organizações para aliviar os sofrimentos da humanidade, e com essas exuberâncias externas se julgam remidos internamente. Podem essas atividades, quando bem intencionadas, preparar a redenção do homem, não o negamos; mas, em hipótese alguma, a podem substituir nem produzir. Pode um homem fazer um bem imenso a seus semelhantes sem ser bom ele mesmo.

Nem a liturgia iniciática nem as atividades filantrópicas podem causar redenção nem podem dispensar o fator intimamente ligado à redenção, que é o sofrimento voluntariamente aceito. Tudo aquilo que o homem faz, como personalidade-ego, é incapaz de produzir a redenção, porque a redenção não pertence ao número dos objetos que o homem faz ou tem, mas é aquilo que o homem é; é a completa transformação e transfiguração do seu íntimo sujeito. A redenção é algo que o homem recebe, depois de se ter tornado receptivo. O sofrimento voluntário, porém, é o último retoque nesse processo de receptividade. É o abrir de uma porta fechada. É a desobstrução de um canal obstruído.

Por quê?

Porque o sofrimento cria um ambiente de desconfiança no ego. Até essa data, o ego afirmava orgulhosamente que ele podia tornar o homem definitivamente feliz. O sofrimento destruiu essa falsa segurança, revelou a fraqueza e insegurança do ego. E o homem ergue as mãos às alturas, estende as suas antenas, em busca de algo mais seguro. É o anseio do elemento divino, do reino de Deus que está dentro do homem em estado latente. É o primeiro brado da alma para despertar dentro de si o "Deus escondido". É o romper da casca do "grão de trigo" e o início da planta que do seu interior vai brotar.

Essas atividades horizontais do ego personal têm por finalidade principal criar no homem um ambiente inflado de confiança e orgulho mental em si mesmo. E, quando esse orgulho mental tiver atingido o seu clímax de glórias e grandezas, sobrevém ao homem o grande naufrágio, o terremoto catastrófico de um total desespero de si mesmo, causado pelo sofrimento arrasador. E quando esse naufrágio e esse terremoto tiverem abalado os últimos alicerces do ego personal, não deixando pedra sobre pedra – então se sente o homem suficientemente aniquilado e esvaziado do seu pequeno eu para poder ser enchido do grande Deus.

A teo-plenificação supõe necessariamente uma ego-evacuação.

Esse total ego-esvaziamento, porém, não se realiza senão por meio de um grande sofrimento.

O momento trágico está no fato de que todas as atividades do ego personal são necessárias – mas nenhuma delas, nem a soma total das mesmas, é suficiente para a redenção do homem. Se não fossem necessárias, o homem se deixaria redimir, passivamente, pela graça de Deus. Se fossem suficientes essas atividades do ego, o homem se redimiria, ativamente, por seu esforço próprio, pessoal. O trágico está nesse estranho paradoxo: necessário – e não suficiente.

Por isto, impedir esse sofrimento ou descompreendê-lo, é o pior serviço que o homem pode prestar a si mesmo, no caminho da sua evolução ascensional.

Se a redenção fosse apenas um processo de continuação de algo já existente e conhecido no homem, bastava que ele intensificasse esse processo – a verdade, porém, é que a redenção é um novo início, algo inédito, virgem, original, um fiat creador de novos mundos – e o velho ego personal do homem é muito pequeno para produzir coisa tão grande.

O sofrimento é o ocaso de pequenez e a alvorada da grandeza.

Querem os escolásticos saber se o Cristo poderia ter remido o mundo sem o sofrimento, e não chegam a um acordo – a nós não nos interessa saber tal coisa: sabemos que, historicamente, a redenção foi feita através do sofrimento e que o Cristo "devia sofrer tudo isto para assim entrar em sua glória. " A inteligência analítica nunca explicará o último porquê desse fato, mas a razão intuitiva adivinha uma grande verdade nesse acontecimento. Todo homem que passou vitoriosamente por um grande sofrimento compreende e aprova integralmente a epopeia do sofrimento de Jesus, porque sabe por experiência íntima que há no sofrimento algo de purificante e libertador, algo de espiritual e divino.

O sofrimento é o pior inimigo do ego, que vê nele uma diminuição da vida, porque nada enxerga para além das fronteiras da personalidade físico-mentalemocional; e, dentro deste âmbito, o ego tem razão; o mal está nessa mesma miopia inseparável do ego. O Eu espiritual em nós tem visão ampla, alcança grandes distâncias, abrange o todo da nossa existência, no tempo e no espaço, e também para além do tempo e do espaço; e por isto pode incorporar o sofrimento como um fator positivo e benéfico dentro do quadro geral da existência humana. E, com isto, adquire o sofrimento a necessária transparência e plasticidade para se integrar no plano total do homem.

O ego humano é o Jesus em nós, mortal, que tem de ser crucificado – para que o Cristo imortal, o Eu divino, possa viver mais abundantemente e entrar em sua glória.

Por isto, qualquer doutrina ou atividade que poupe ao homem essa crucificação é um fator anti-cristão que não redime o homem. Há inúmeras doutrinas espiritualistas, místicas e esotéricas que, sob a bandeira do Cristo, impedem o homem de chegar ao Cristo, porque não querem saber do trecho que vai do Getsêmane ao Gólgota.


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Quando dizemos "sofrimento" ou "crucifixão" não entendemos com esta palavra alguma mortificação arbitrária, como a que certos penitentes, antigos e modernos, infligem a seu corpo; nem entendemos o simples fato material de alguém suportar o inevitável; mas entendemos a mais árdua de todas as crucifixões, que consiste na completa e irrevogável identificação do homem com os dois grandes mandamentos da vida humana, o mandamento vertical da mística divina e o mandamento horizontal da ética humana. Essas duas linhas, do ser do agir, quando se encontram em ângulo reto, formam uma cruz, e no simbolizado desse símbolo é que está a redenção.

Amar a Deus de todo o coração, com toda a alma, com toda a mente e com todas as forças, e amar o próximo como a si mesmo – é esta a única crucifixão redentora, e é, no princípio, o maior dos sofrimentos, embora se converta, mais tarde, numa entrada na glória. A cruz do Calvário, ainda com o pé preso na terra, se transformará na cruz do Tabor, com as quatro pontas iguais e livremente suspensas no espaço – a cruz da glória e da vida eterna, conhecida em todas as grandes religiões e filosofias do mundo.

Para fazermos o teste e a prova de fogo do amor a Deus, basta que verifiquemos se, de fato, amamos nosso semelhante como a nós mesmos.

Enquanto não possuirmos este amor humano, não nos iludamos sobre a posse do amor divino.

A ética é a única prova da mística.

Quem, de fato, identificou a sua vida individual com a Vida Universal, não pode deixar de sintonizar a sua vida pessoal com a de todas as outras creaturas de Deus. Quem ama a Deus tem de, forçosamente, amar aquilo que Deus ama – e não existe creatura alguma no Universo que não seja alvo do amor de Deus.

Quem descobriu o Deus do mundo em si mesmo descobre-o também em todos os outros seres do Universo. É simples questão de vidência cósmica. A sintonia com a vida do Creador produz necessariamente a sintonia com a vida de todas as creaturas de Deus.







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