Primícias do Reino
Versão para cópiaO OBSIDIADO GERASENO
,
portador das tempestades, é também o mensageiro da fartura, carreador dos ventos perfumados e leves.
Correm suaves ruídos pelos arredores e a penedia triste de Gergesa ou Gerasa fica para trás.
As encostas negras e viciosas, surradas pelas virações marinhas, apresentam-se lúgubres, sem vegetação alguma. Dir-se-ia um solo ingrato onde nada medra, à exceção de espinheiros e cardos silvestres.
No alto, um magote de homens, mulheres e crianças alonga os olhos sobre a face líquida do mar, preciosa concessão do Jordão ao longo do seu abençoado curso, interroga sem palavras.
O barco desliza suavemente, quase em silêncio, com a grande vela enfunada, à semelhança de uma asa móvel sombreando as águas.
Na popa, a figura de Jesus assemelha-se a uma exclamação de dor. Fitando a terra agreste e nua, sente o sofrimento da gente que ali habita.
Programara, desde antes, aquela visita às terras sobre as montanhas de Bazan, na Decápole, uma vez que acalentava a possibilidade de até ali levar a mensagem da Boa-nova.
Proclamar e difundir as primícias do Reino constituía Sua ventura, pois que para isso viera. Viver com o povo, sofrer as aflições do povo, mas, sobretudo, esclarecer e libertar o espírito do povo das grilhetas vigorosas da ignorância e da superstição.
O povo era o seu rebanho. Para esse rebanho viera dar a vida.
Era, todavia, necessário que as ovelhas conhecessem o pastor a fim de poder identificar-Lhe a voz, obedecer-Lhe ao chamado.
Experimentava, porém, ultriz sofrimento porque o povo não O compreendia: o sofrimento que decorre do amor desdenhado.
Gerasa não O recebera, embora o tom festivo com que anunciara a chegada e a oferenda preciosa que doara ao acercar-se dos seus limites.
Não quebrara os liames que atavam o obsidiado à obsessão, como um raio alvinitente penetra o corpo da noite e anuncia a força da sua presença?
Os gerasenos comerciavam com porcos e preferiam os suínos a Ele, o Amigo que desejavam ignorar. . .
Vento sinfônico encrespa as águas, melodias vibram na tristeza que envolve o barco e açoita os cabelos bastos dos homens estremunhados e silenciosos.
Gerasa os sulcara com uma grande dor. . .
Alguém perguntou, na pequena planura do penhasco, fitando o barco a mergulhar na distância:
— Quem era?
— Não sabemos — respondeu outro.
— Por que nos queria falar? Trazia-nos algo?
— Não indagamos, nem mesmo o deixamos falar.
— Que desejaria conosco?
— Não podemos atinar. Talvez tenha sido melhor expulsá-lo de nossos sítios, como fizemos.
— Talvez! . . .
E como se voltassem a contemplar a embarcação, que poderia ser considerada como um ponto final numa lição em meio, uma mulher sugeriu:
— Parecia-se com um Rabi, desses que andam pela Galileia. . .
— Que nos pode oferecer de bom a Galileia? —, revidou, rabioso, um representante da cidade. — O que podemos afirmar são os prejuízos que Ele nos deu.
— E onde se encontra o endemoninhado? —, inquiriu outrem.
— Busquemo-lo! —, exclamou, encolerizado, um jovem. — Façamo-lo confessar. Afinal, ele é portador de Espíritos imundos e com ele podemos ser rigorosos.
— Tenhamos cuidado — advertiu um comerciante de porcos. Os danos do dia são vultosos; perdemos nossas melhores varas e isto vai afetar a economia de nossa cidade. O doente parece recuperado.
Deixemo-lo. . .
O barco era um quase nada no mar.
O dia bordava a terra de luz e a natureza estuava prenhe de festa.
Mil vozes onomatopaicas entoavam um canto de alegria.
Dos penhascos de Gerasa avistava-se o outro lado do mar.
Os gerasenos voltaram à cidade, a dois quilômetros dali, onde se erguia o casario de arquitetura grega, cercado de ricas pastagens a se perderem na borda do deserto.
Jesus e os discípulos retornaram a Cafarnaum.
Tudo fora muito simples, recordava.
A alva ainda não descerrara os mantos pesados do seu rosto de luz, quando ele ouvira rumor de passos, no pavor em que vivia.
Erguera-se de um túmulo vazio, dos muitos existentes nas cavernas esburacadas da rocha, entre os outeiros usados como criptas sepulcrais.
Subitamente sentira a força das fúrias, que o dominavam em hedionda e nefasta subjugação.
Podia formular uma ideia do que fizera, pelas equimoses e hematomas pelo corpo dorido e os membros lassos, o gosto de sangue na boca e o imenso cansaço que o possuía. . .
Quanto havia descido! —, meditava. — Os jogos do prazer nos antros de perdição levaram-no àquele estado. Atormentado por forças subjugadoras, abandonara o lar e os parentes, colocara nos lábios dos pais a taça de fel de amarguras inomináveis, a ponto de fazê-los sucumbir de vergonha e horror nos dédalos dos sofrimentos.
Começara a cair muito cedo até chafurdar entre os porcos e buscar as sombras das sepulturas, onde se refugiavam os endemoninhados, carregando nos pulsos e nos tornozelos pedaços de cordas imundas e um elo de ferro, como os que atavam os animais ferozes. . .
Recordando, agora, as torpezas e sofrimentos, não podia evitar as lágrimas que vertia em abundância.
Vagara pelos bosques próximos, disputando com os animais restos alimentícios; ou, desvairado, passara dias intermináveis em indescritíveis pelejas, na luta contra animais selvagens que o aniquilavam. . .
Concatenando os pensamentos, lembrava-se somente da aragem fresca que o envolvera, e daqueles dois olhos tranquilos e bons que o banharam de amena harmonia.
— Senhor! . . . —, balbuciara, nervoso, enfraquecido, empapado de suor — Que queres que eu faça?
— Torna para tua casa, e conta quão grandes coisas te fez Deus.
— Não tenho ninguém — retrucara. — Os meus me odeiam pelo muito que os fiz sofrer. Deixa-me seguir contigo, que te apiedaste de mim.
— Não, por enquanto, não! Vai primeiro anunciar o que recebeste, para que todos saibam o que pode fazer o Filho do Homem.
Erguera-se de um salto e saíra a correr, seguido de perto pelos proprietários dos porcos que haviam despenhado no abismo.
Ignorava, porém, como as coisas haviam-se passado.
Estava livre. Isto sim: em liberdade! Gritava, explodia de felicidade. E sorria.
Os outros o fitavam a medo e o escutavam sem nele crer, embora a sanidade de que dava mostras.
Legião, assim era chamado tendo-se em vista os espíritos imundos que o dominavam, era temido e detestado.
Foram, porém, inúteis as suas explicações, o atestado eloquente do seu juízo em equilíbrio. E quando Ele se acercou da porta da cidade, receberam-no sem consideração, nem respeito, expulsando-o em seguida.
Nos dias que se seguiram, ele anunciou, por onde esteve, a promessa do Filho do Homem.
Os gerasenos, porém, revoltados por não terem fruído a presença e as dádivas d’Ele, agasalharam no imo, contra o ex-endemoninhado, surdo despeito, que não tardou a explodir em cólera generalizada.
— Desde que Ele te curou — foram peremptórios — e vale tanto para ti, mais do que nós, vai-te para o seu lado, deixa-nos a nós e as nossas terras.
O ódio popular é como furacão sem rota, que traga na sua voragem o que encontra.
— Vai-te! —, gritaram as vozes, — esquece-te de nós.
Uma pedra cortou o ar, bagas de sangue quente tingiram o chão e o pó fez-se lama na terra.
Os olhos do recém curado se injetaram, a boca retorceu-se em estranho rictos e ele exclamou:
— Maldita sejas, Gerasa, que expulsas os filhos e desprezas os Enviados!
Aquela voz trovejou poderosa e a cidade presente à cena de vergonha e dor não mais esqueceria as visões daqueles dias, as expressões dos dois homens aos quais fechava suas portas.
Depois de caminhar pelas terras da Decápole, narrando o que lhe fizera o Galileu, ele demandou às praias do outro lado do mar e perdeu-se na multidão que acompanhava as pregações no lago e nas cidades, nos montes e na orla das estradas, oferecendo suas mãos e seus braços aos aflitos e combalidos que necessitassem de ajuda.
Não mais se afastaria dos sofredores, seus irmãos de infortúnio.
Procurava dar-lhes a fortuna da esperança como ele mesmo a recebera do Rabi.
Seguia-O, deslumbrado e reconhecido pelo que recebera e passou a amar como fora amado, trabalhando, também, pela extensão do Reino de Deus que Ele anunciava.
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