Reportagens de além-túmulo

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Capítulo XII

A cura complexa


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Aquele lar fundamentado em bases sólidas de amor e trabalho, desde algum tempo parecia invadido por tempestades incessantes de dor.

Feliciano Azevedo, na idade madura, era iniciado nos mistérios da lágrima, envolvido em terríveis tormentas de desventura. A filha amorosa, que resumia as esperanças paternas, perdera o equilíbrio mental logo após um curso escolar brilhante, anulando, assim, alegres expectativas familiares. A esposa sensível baixara ao hospital, com a saúde abalada para sempre.

Desarvorado, qual viajante cujo barco vai impelido pelas ondas revoltas, antevendo os momentos do naufrágio cruel, Feliciano agarrava-se à fé em Deus, em supremo desespero do coração. As economias fartas de outro tempo dissiparam-se em poucos meses. Agora, dividia as horas entre o hospital e o manicômio. Os empréstimos asfixiavam-no. Quando a situação assumia aspectos ainda mais graves, eis que surge inesperadamente um amigo, aconselhando:

— Ora, Feliciano, por que não tenta o Espiritismo? É possível que o caso da jovem seja simples obsessão. Os benfeitores do Além, quando podem, costumam ligar-nos o coração ignorante com a Fonte infinita das bênçãos. Experimente…

Feliciano ponderou a advertência amiga e deliberou atender sem delonga. Na noite desse mesmo dia, foi à casa da família Macedo, que mantinha um grupo espiritista muito íntimo.

Recebido com muita simpatia, pela sinceridade de suas expressões, ouviu por intermédio de jovem sensitiva a palavra de prestativo amigo da Espiritualidade, que lhe falou mais ou menos nestes termos:

— Meu irmão, não olvides a coragem para o êxito necessário. A passagem pela Terra pode ser um aprendizado angustioso, mas é parte de nossa marcha para a sabedoria infinita. No curso dos maiores infortúnios, lembra que Deus é Pai bondoso e justo. O caso da tua filhinha procede de tenaz perseguição, do plano invisível. Irmão nosso, perturbado e cego, há lançado amarguras na tua estrada dos tempos que correm. Não desesperes, porém. É razoável que a Justiça trabalhe, enquanto houver necessidade de reparações. Contribuiremos para que se aclarem os horizontes. Esforça-te, pois, conosco, atendendo à Providência Divina.

Aquelas palavras, pronunciadas com imensa ternura, lhe balsamizaram o coração entristecido. Tinha a impressão de que imergia o espírito sequioso em fonte cristalina, ardentemente esperada no deserto da sua angústia. Os amigos presentes incumbiram-se de lhe consolidar as esperanças. O chefe da casa relatou difícil experiência doméstica, em que se valera do socorro espiritista. Cada companheiro trouxe à baila o seu caso pessoal, revelando a excelência do auxílio, oriundo das mãos intangíveis dos desencarnados.

Feliciano exultava. Pela primeira vez, depois de longos e laboriosos tempos de luta, dormiu sossegadamente, empolgado por singulares pensamentos de paz.

Os Macedos, aliando-se à boa vontade de outros irmãos, começaram a prolongada série de reuniões íntimas, destinadas ao esclarecimento do infortunado obsessor, consagrando, neste mister, as suas melhores energias. Três vezes por semana reuniam-se os benfeitores encarnados. O pai e esposo aflito mantinha-se firme na sua fé, presente a todos os trabalhos. O irmão perturbado, mal se pronunciava a prece inicial, incorporava-se prestemente, apossando-se por completo do aparelho mediúnico. Bertoldo, o diretor da reduzida assembleia, falava-lhe com sincera dedicação fraternal e, contudo, o infeliz parecia aferrado a sinistros propósitos.

— Este homem é um criminoso — apontava o Feliciano, com sarcasmo —, em outro tempo destruiu-me o lar, escarnecendo das minhas sagradas aspirações familiares. Companheiro desleal e ingrato, esqueceu a mão amiga que o erguera da miserável condição de servo ínfimo!…

E com lágrimas de ódio continuava, depois de mordentes acusações:

— Malvado!… Monstro! Seguirei no teu encalço, onde quer que te escondas!…

— Mas, meu irmão — replicava o orientador, bondosamente —, quem de nós outros estará sem erros? Todos procedemos de um passado sombrio e delituoso. Na longa jornada, por trás de nossos passos, há rios de lama e sangue, que precisamos purificar com a tolerância recíproca. Comecemos novo dia de fraternidade. Deus, que é Pai e Senhor Supremo do Universo, renova incessantemente as nossas oportunidades de serviço e edificação. Se Deus atende, assim, que razão nos assiste para eternizar a vingança nos caminhos da vida? Esquece o mal, meu amigo. Contempla o nosso Feliciano humilhado, torturado, vencido!… Não te doerá vê-lo assim, de cabelos nevados prematuramente? Que prazer poderás sentir martirizando uma pobre mãe no hospital e uma criança no manicômio? Sejam quais forem as tuas mágoas de existências anteriores, olvida o mal e perdoa…

O diretor amorável dizia essas palavras, de olhos molhados, convencido de que esclarecer não é ordenar, e que doutrinar não significa impor violentamente. Aquele generoso Bertoldo não ignorava a extensão das misérias, nas experiências humanas, sabia conjugar os próprios conhecimentos, ofertando-os ao próximo como ramilhetes de flores luminosas. O perseguidor chorava, entre o ódio e o desespero, e a reunião terminava sempre num mar de emoções reconfortantes e profundos ensinamentos, porque os companheiros ali se uniam, antes de tudo, nos elos cariciosos da humildade e do amor. Ao fim de alguns meses, o infeliz cedia terreno, demonstrando-se transformado à luz do Evangelho do Cristo, não pelas palavras ouvidas, mas pela vibração do sentimento coletivo.

Em breve, a esposa e a filha, convalescentes, regressavam ao ambiente doméstico. A pequena família não podia traduzir o intenso júbilo. Trazidas igualmente aos trabalhos espirituais, mãe e filha pareciam banhadas por ondas reconfortantes de energia nova. O antigo obsessor convertera-se em benfeitor solícito. A tranquilidade agora revelava maravilhoso conteúdo de fé e alegria.

Decorridos seis meses sobre a nova situação, eis que o lar de Feliciano parece envolvido em novas tormentas. A precariedade de recursos financeiros levara o chefe da casa a experimentar diversos labores sem resultados favoráveis. Todos os objetos valiosos foram levados às casas de penhor e, por fim, após difícil experiência numa oficina de acessórios, Feliciano cai no leito, desolado e paralítico. Em vão, recorre a filha a relações prestigiosas, em busca de colocação condigna. Todas as portas se apresentam impenetráveis. Nos concursos a que compareceu, esperançosa, era invariavelmente mal classificada. Diariamente, à noitinha, voltava a casa, desanimada, pernas trôpegas e olhos inchados de chorar. Enquanto isso, a genitora precisava agarrar-se à máquina de costura, para que lhes não faltasse o pão cotidiano.

A pequena família começou a peregrinar de rua em rua, pela carência de dinheiro com que pagar o aluguel da casa.

A esse tempo, Feliciano voltou ao país sombrio do desespero. Os generosos irmãos na fé buscavam-lhe a companhia, semanalmente, reunindo-se em preces, no seu aposento de dor. Por maior que fosse, porém, o carinho fraterno, o enfermo não mais se livrou de angustioso abatimento. Os pensamentos lhe erravam pesadamente da queixa incessante para o desalento sem limites. Por que motivo lhe fora reservado um cálice tão amargo? Não aceitara a fé? Não se esclarecera o obsessor terrível? Assim se mantinha ele mergulhado num mar de inquirições dolorosas.

Após dois anos pesados de infortúnio, valeu-se do momento em que se reuniam os amigos, no quarto estreito, para indagar ao sábio Instrutor espiritual a causa dos longos padecimentos. O benfeitor invisível, procedendo delicadamente, à maneira de alguém que, embora percebendo uma ferida, não lhe acusa a existência, esclareceu com intimidade e doçura.

— Não percas a coragem, meu amigo. A fonte das bênçãos divinas não estanca a distribuição dos benefícios. Resigna-te na dor, como quem lhe conhece as utilidades sublimes. O catre do sofrimento é um barco de salvação, nas tempestades do mundo, para o crente identificado com a própria fé. Usa a provação como termômetro da confiança em Deus e não desanimes!…

O doente estava comovido, mas insatisfeito. Incapaz de perceber a sutileza fraternal do comunicante, voltou a considerar:

— Agradeço as vossas palavras confortadoras, mas não me posso furtar a dúvidas amargosas. Não era o sofrimento de minha família um simples caso de obsessão? Não trabalhamos, meses a fio, a fim de esclarecer o irmão perturbado? Não se tornou ele nosso amigo e colaborador? Todavia, tenho mesmo a impressão de que nossos tormentos se agravaram pesadamente. Minha mulher saiu do hospital para internar-se na miséria mais dura; minha filha regressou do hospício para transformar-se em pedinte sem esperança…

Engasgado de pranto, fez longa pausa e continuou a dizer:

— Como chegar a uma conclusão aceitável? Não estamos curados da obsessão, meu amigo?

O benfeitor espiritual, incorporado na jovem médium, levantou-se e, denunciando a imensa sabedoria que lhe brilhava nalma, acentuou depois de afagar o doente com um gesto de amor:

— Feliciano, é verdade que tens sofrido muito, mas não esqueças que os amigos encarnados e desencarnados te ofereceram andaimes; as dificuldades e padecimentos te proporcionaram pedras; a fé carreou cimento divino para o teu coração, entretanto, a construção é tua. Nunca reclames ante a justiça de Deus, porque, se estás curado da obsessão, ainda não saldaste as próprias dívidas.

Foi então que o enfermo revelou novo brilho no olhar e, enquanto os companheiros choravam de alegria com o profundo ensinamento, Feliciano Azevedo beijou a mão que o sábio mentor lhe oferecia, e baixou humildemente a cabeça.


(.Irmão X)


Humberto de Campos
Francisco Cândido Xavier

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