Sexo e Obsessão

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CAPÍTULO 10
Ilustração tribal

Recomeço difícil e purificador


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A noite avançava com o seu crepe escuro bordado de estrelas lucilantes muito ao longe. O silêncio invadia a cidade, somente interrompido pelas onomatopeias naturais e a movimentação de alguns transeuntes noctívagos.

A Casa Paroquial estava mergulhada em sombras, quebradas apenas por algumas velas acesas diante de ídolos impassíveis em relação aos sofrimentos humanos.

Como podiam, realmente, aquelas estátuas trabalhadas com beleza e quase perfeição entender o drama e a agitação dos homens inquietos e aturdidos no báratro existencial? Fossem representações legítimas daqueles que se houveram dedicado ao Bem e ao culto do dever, quando na Terra, com o único objetivo de estimularem a mente a direcionar-se-lhes, tornava-se exequível. No entanto, o culto àquelas imagens sobrepunha-se à vinculação com as pessoas desencarnadas que pareciam representar, permanecendo inútil.

Mauro encontrava-se alquebrado. Parecia haver envelhecido em poucas horas, após a confissão e o sincero arrependimento que o dominava.

Embora estivesse em atitude de angústia, buscando Deus com o pensamento, sentia-se confrangido e envergonhado sob o trucidar da culpa.

Repassava pela memória os acontecimentos da infância e a figura do genitor se destacava no caleidoscópio das recordações. Apresentava-se hediondo e infernal, debochado e insensível ante a aflição do filho, que submetia à selvageria sem qualquer respeito pelo ser humano ou compaixão pelo rebento da própria carne.

À medida que aprofundava a mente nas evocações perturbadoras mais se afligia, não podendo dominar o caudal de lágrimas que lhe escorriam pelas faces ardentes, quase em febre de horror por si mesmo. Vimos, então, acercarse-lhe um indigitado perseguidor que, se utilizando da angústia que dominava o sacerdote, começou a transmitir-lhe telepaticamente ideias de fuga do corpo físico.


O irmão Anacleto, sempre vigilante, solicitou-nos que nos concentrássemos no chakra cerebral do paciente e, ao fazê-lo, pude captar a indução pertinaz e contínua:

– A solução para tal crime é o suicídio, porta aberta para a liberdade – pensava o sofredor telementalizado pelo ignorado inimigo oculto. Como enfrentar a vergonha, a humilhação, o opróbrio geral? E se a massa humana, sempre sedenta de sangue, em tomando conhecimento da hediondez resolvesse fazer justiça com as próprias mãos? Nunca faltaria quem desse o primeiro grito em favor do linchamento, e logo as feras se atirariam furiosas contra a vítima que seria destroçada sem qualquer piedade. Só o suicídio poderia resolver-lhe o drama perverso.

Fui tomado de espanto ante a habilidade do indigitado inimigo. Ele não se permitia trair, parecendo ser alguém que estivesse interessado na destruição do adversário, inspirando-lhe de tal forma a ideia da morte como se lhe nascesse no íntimo atribulado. Fixando-o, transmitia-lhe a ideia da fuga como solução, fazendo crer tratar-se de uma autorreflexão e nunca de uma autossugestão.

Mediante esse comportamento, fazia o enfermo supor que a atitude desejada era lógica e, portanto, credível de aceitação.

Mauro recordou-se de uma jovem que lhe trouxera, através da confissão, a narrativa do desespero em que se asfixiava ante a gravidez inesperada de que se encontrava objeto. Repudiada pelo amante que lhe abusara da confiança, e sabendo que a família jamais lhe entenderia a situação, tanto quanto receando os preconceitos sociais então vigentes, recorrera-lhe ao auxílio, por não encontrar outro caminho exceto o do autocídio. Ante o próprio conflito, que já o atormentava na ocasião, tentou dissuadi-la do gesto tresloucado sem muita convicção, sentindo-se fracassado, porque, logo depois, na noite imediata, a infeliz recorrera à morte mediante o gás que abrira e deixara-se anestesiar no quarto de banho, onde antes tivera o cuidado de vedar todas as saídas e entradas de oxigênio.


Reflexionando e, ao mesmo tempo, com a mente invadida pelo algoz, concluía, sem poder perceber que estava sendo vítima de uma consciência entenebrecida:

– O suicídio através do gás é repousante, sem dor e sem tormento, facultando ao desditoso adormecer para adentrar-se no país do nada ou no inferno sem retorno.

Essa reflexão sacudiu-o, e ele recordou-se da fé religiosa que abraçava, dando-se conta de que não a tinha em alta consideração, como o demonstravam sua conduta e seu pensamento inseguro.


Estimulando-o à ação devastadora, o inimigo dá-lhe assenhorando-se do pensamento, com o propósito de tomar-lhe o centro dos movimentos e acioná-lo para que executasse o plano covarde de fuga, quando o Mentor, percebendo a aflição da genitora de Mauro, em pranto e em prece, acercou-se- lhe e esclareceu:

– Nesta emergência, vemos apenas uma solução de imediato, que é a querida amiga acercar-se do filho, apresentar-se-lhe, e despertá-lo para a realidade.

De imediato, concitou-nos, a mim, a Dilermando e a dona Martina, que nos concentrássemos firmemente, oferecendo-lhe energias próprias para o cometimento, enquanto sugeria-lhe que focasse o campo mental do filho e chamasse-o nominalmente, várias vezes, com o que ela anuiu, confiante.

– Mauro, meu filho – chamou com energia a mãezinha desencarnadadesperte! Mauro, ninguém morre. Recorde-se, neste momento, de Jesus.

A nova onda mental penetrou o cérebro do aturdido sacerdote, que experimentou um choque vibratório por todo o corpo, percorrendo-o pelo dorso espinal e fazendo-o despertar do letargo doentio.

Ante a força poderosa do pensamento de amor aureolado pelas vibrações defluentes da prece, o adversário desencarnado experimentou a forte reação nervosa do paciente que lhe desconectou o plug fixado à mente que lhe ia cedendo campo ao convite desnaturado.

Só então percebeu-nos a todos que o contemplávamos com expressão de misericórdia e de compaixão.


Experimentando um estado superior alterado de consciência, Mauro pareceu escutar o apelo materno e, inesperadamente, pôde detectá-la à sua frente com os braços distendidos em atitude de quem desejava afagá-lo, tombando de joelhos e exclamando:

– Mamãe, é você ou algum anjo do Senhor que veio em meu socorro?

– Sou a tua mãezinha de sempre, que retorna como anteriormente, a fim de ajudar-te neste instante grave da tua existência. O Senhor deseja a morte do pecado, nunca a do pecador. Não há mal para o qual não exista remédio, nem ação nefanda que possa ser considerada irrecuperável. Para e pensa! O teu é um erro hediondo, mas o amor do Pai é infinito, e pode albergar todos os crimes para diluí-los, ajudando os criminosos a se recuperarem a fim de auxiliarem as vítimas que infelicitaram.

O rapaz estava confuso, num misto de alegria e de sofrimento, convulsionado pelo pranto e ardendo em febre de desespero.


Dando prosseguimento, ela se fez mais enfática:

– Este é o teu momento de redenção, meu filho. Foi longa a marcha degradante que te permitiste, e que agora te exige uma recuperação demorada e de sublimação. Não te recuses ao dever de sorver a taça na qual apenas depositaste fel, vinagre e mirra. É o teu momento de expiar, nunca de fugir para lugar nenhum, porquanto o suicídio somente piorará o quadro das tuas aflições.

Aproveita este breve instante e recompõe-te mentalmente, preparando-te para experimentares as mais cruas dores e rudes humilhações, afinal decorrentes dos teus próprios atos, mas que te oferecerão os meios para ajudares a todos quantos feriste os sentimentos de pureza e de dignidade, conferindo-te meios para a ascensão que te aguarda. Entrega-te a Jesus e n’Ele confia. Nunca desfaleças e crê no divino auxílio. Até breve, meu filho!

Mauro desejou prolongar aquele colóquio quase sublime, mas não teve tempo, porque a figura veneranda começou a desvanecer-se, deixando a suave sensação de paz no coração dilacerado do jovem, enquanto dúlcidas vibrações de paz invadiam o recinto como resposta dos Céus às aflições e preces da Terra.

Não suportando a cena de ternura, o réprobo e perseguidor sandeu retirou-se blasfemando, furibundo.

Mauro deitou-se para melhor introjetar tudo quanto lhe acabara de ocorrer e fixá-lo para sempre na memória e no coração. Um lânguido torpor foilhe tomando todo o corpo e, poucos minutos após, dormia tranquilamente. A mãezinha feliz, continuou a velá-lo, enquanto, convidados pelo distinto Anacleto, retornamos ao Núcleo onde nos hospedávamos.


Nesse comenos, quando seguíamos na direção da Casa de amor e luz, utilizando-me da proverbial bondade do amigo, interroguei-o:

– De quem se tratava a Entidade que induzia Mauro ao suicídio? Isto porque, em nossa convivência naqueles poucos dias não tivera oportunidade de conhecê-la?

Não se fazendo esperar, o amigo generoso esclareceu: "Conforme nos recordamos, Madame X celebrizou-se no período napoleônico pela insensatez e cobiça, utilizando-se da sua mansão-bordel para as extravagâncias, nas quais infelicitou muitas pessoas. O infeliz, que ora a induz ao suicídio, embora se encontre na roupagem carnal de Mauro, é mais um daqueles que foram dilapidados nos sentimentos e trucidados na razão, face ao desbordar de paixões que a infeliz proxeneta de luxo se permitia na sua corte de depravados, na qual misturava favores sexuais com interesses políticos, tornando-se agente de conciliábulos perversos, que mutilaram muitas pessoas. . .


Vítimado, naquele período, pela astúcia de um inimigo junto à política vigente, Madame intermediou a sua queda, conduzindo-o a uma armadilha muito bem urdida, na qual perdeu a existência corporal, além de ter enlameada a memória. " Silenciando rapidamente, concluiu:

– Quando as criaturas derem-se conta da gravidade do crime e das suas consequências, pensarão sempre com muito cuidado antes de assumir ou criar situações perversas e infelicitadoras para as outras, que sempre redundarão em desdita para si mesmas.

Naquele momento chegamos à Instituição, que me chamou a atenção para o número de Espíritos que ali se encontravam em verdadeira azáfama.

Alguns acorriam ao salão doutrinário, onde, logo mais, deveria ser realizada uma conferência por abnegado espiritista desencarnado, que realizara na Terra expressiva tarefa de divulgação dos postulados exarados na Codificação.

O número de encarnados em desdobramento parcial pelo sono, que ali se encontravam, era expressivo, os quais misturavam-se aos libertados do corpo através da morte física. Muitos desencarnados buscavam os setores de socorro aos que deambulavam na roupagem carnal, e os seus familiares vinham em busca de auxílio para os mesmos antes que se comprometessem irreversivelmente. Outros mais, caminhantes do carreiro orgânico, eram enfermos que estiveram no Centro Médico da Entidade durante o dia e, após orientados pelos esculápios, que também lhes falaram das interferências espirituais que geram distúrbios de vária ordem, procuravam atendimento específico. Diversos outros conduziam seus filhos que frequentavam as Escolas da Casa e necessitavam de terapias espirituais, a fim de terem diminuídos os seus sofrimentos, melhorando-lhes a capacidade de entendimento e compreensão das aulas que lhes eram ministradas. Espíritos com os sinais e características dos desgastes orgânicos apresentavam-se ansiosos, necessitados de orientação e apoio, de forma que conseguissem concluir a reencarnação com dignidade e proveito. . . Enfim, toda uma colmeia de ação ordenada prosseguia em incomum movimentação.

Ao lado desses, grupos de desencarnados em sofrimento eram convidados e conduzidos aos diferentes setores de triagem para melhor atendimento, ao tempo em que, perturbadores e viciosos, embora sem dar-se conta, também eram encaminhados aos núcleos onde poderiam ser recebidos e ajudados.

Tudo respirava o oxigênio do amor e da vida, enquanto o silêncio e a noite amortalhavam no sono físico os homens e mulheres recolhidos aos lares.

Não obstante a movimentação enriquecedora, caracterizada pela ação do bem e da caridade, não nos detivemos em qualquer daqueles setores onde se encontravam os necessitados. O irmão Anacleto seguiu diretamente à sala mediúnica, já nossa conhecida, na qual deveria desenvolver-se o estudo para uma ação meritória que teria lugar posteriormente. Assim, acompanhamos o amigo e adentramo-nos pelo recinto dedicado ao intercâmbio com o mundo espiritual, que se encontrava igualmente repleto. Não era uma reunião como as anteriores, que tinham por objeto atender aos desvarios dos desencarnados em comunicações mediúnicas. Ali se encontravam alguns Espíritos nobres acompanhados de assessores, que deveriam discutir uma questão de importância que se iria delinear.

À chegada do Benfeitor todos se rejubilaram. Pude então detectar a superioridade espiritual do mesmo, que se apagara para estar conosco e atender ao apelo de dona Martina, em favor do filho desorientado e enfermo.


Após as saudações e apresentações, conforme sempre também acontece na sociedade terrestre, o recém-chegado expôs:

– Esta reunião tem por objetivo o estudo de um plano delicado, em benefício de um Espírito que, há várias décadas, experimenta o horror na Cidade das paixões servis, que auxiliara a erguer antes de mergulhar no corpo e para onde retornou após a turbulenta desencarnação. Pelas circunstâncias em torno da gravidade do cometimento, todos nos deveremos ungir de sentimentos de compaixão e de misericórdia para com os sicários que com ele convivem, de modo que nos recordemos da imprescindibilidade da oração e da vigilância, tendo em mente que todos somos Espíritos imperfeitos em processo lento de renovação e de crescimento para Deus.


Silenciou por alguns breves segundos, e logo prosseguiu:

– Pela magnitude do labor, deveremos formar um só bloco de pensamento, de forma que nos seja possivel atravessar as barreiras defensivas da comunidade de perversão, para ajudar sem censura, ali estagiando sem contaminarmo-nos, realizando o mister para o qual a visitaremos com os propósitos elevados de bem servir.


Fazendo uma pausa oportuna, a fim de ampliar o campo das explicações, referiu-se:

– A História conta-nos complexos e variados comportamentos atribuídos ao marquês de Sade, de dolorosa e perturbadora memória.


Considerado por uns como sendo grande novelista, por outros é tido como um atormentado portador de distúrbios mentais e emocionais, especialmente no que dizerespeito à conduta sexual, que passou à posteridade como sendo praticante de tormentosas aberrações no campo da sodomia [16] e de outras criadas pelo seu desvario. A grande verdade é que descendia de uma família das mais nobres e distintas da Provença, nascido em Paris, havendo, na juventude, ingressado na cavalaria aos catorze anos, de onde saiu na condição de segundo tenente, fazendo parte do regimento do rei. Logo após, durante a guerra dos Sete Anos, na Alemanha, alcançou o posto de capitão. Em 1763, havendo regressado à França, seu país natal, casou-se com uma das filhas do presidente Montreuil, havendo sido, de alguma forma, enganado, porque amava à outra filha, a mais jovem, que a família encaminhara ao convento, causando ao

capitão um grande desgosto e arruinando-lhe a vida interior. Posteriormente, ele deu início aos tremendos atos de desregramento moral, através de um escândalo inicial que o envolveu com uma jovem, que fora barbaramente maltratada, o que impôs ao marquês o seu encarceramento no castelo de Saumur.

O bondoso e sábio amigo silenciou por um pouco, como se desejasse sintetizar a história tormentosa do infelizmente célebre marquês, logo dando prosseguimento: "Nasceu como Donato Afonso Francisco, herdeiro dos títulos de conde e de marquês. Depois do inditoso acontecimento foi transferido para o cárcere em Lião [17] , ali ficando por breves seis semanas, logo posto em liberdade, o que lhe facultou nova prática hedionda em Marselha, crime esse que lhe valeu a pena de morte pelo Parlamento de Aix, tendo-se em vista a barbaridade com que o mesmo fora praticado. Liberado da condenação, hábil, como era, nas artimanhas de que se utilizava, conseguiu seduzir a cunhada, retirando-a do convento, e fugindo com ela para a Itália. Os bons fados, porém, não lhe foram favoráveis, porque, logo depois, a mulher que parecia amada desencarnou, e ele tentou voltar à França, havendo sido novamente preso, e fugindo após, de forma que pôde dar prosseguimento à sua existência insensata e degenerada.


Foi novamente preso e liberado, para, por fim, ser encarcerado em Paris e encaminhado à Bastilha. Aqueles eram, porém, dias pré-revolucionários, e ele, utilizando-se de maquinações bem elaboradas, que o caracterizavam, improvisou um tubo, através do qual conseguia gritar impropérios e narrar supostas perseguições como maus tratos de que seriam vítimas os encarcerados no velho castelo. Posteriormente, passou a escrever em folhas de papel que atirava pelas grades, narrando supostas atrocidades que sofria com outros prisioneiros, havendo sido considerado, de alguma forma, um inspirador ou estimulador da Revolução de 1789, especialmente havendo contribuído em favor da destruição da hedionda prisão. Anteriormente, no entanto, houvera sido internado no asilo para alienados mentais de Charrenton, de onde foi liberado graças a um decreto da Assembleia Constituinte. " Novamente o nobre Espírito silenciou. Podíamos notar-lhe a emoção, feita de compaixão e de misericórdia, em favor da desnaturada personagem, para logo concluir:

– A esposa abandonou-o, não mais o suportando, embora também a vida desregrada que se permitira, resolvendo-se recolher a um convento, a fim de expiar a conduta reprochável. Sentindo-se livre do cárcere e do matrimônio, o marquês, já idoso, teria levado o restante da existência de maneira moderada, ainda segundo alguns biógrafos, vivendo pelo próprio trabalho, deixando um imenso legado de obras, principalmente comédias que foram representadas em Paris e em Versailles, licenciosas e autobiográficas das práticas que realizara.

Embora expressiva e volumosa a sua literatura não se destaca pela qualidade, mas certamente pela vulgaridade. Desencarnou louco no manicômio de Charrenton, para onde fora levado, após uma longa existência de 74 anos mal aproveitados. Os seus desregramentos deram lugar a uma designação derivada do seu nome para um tipo de perversão sexual, que passou a ser conhecida como sadismo [18] .







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