Sexo e Obsessão

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CAPÍTULO 12
Ilustração tribal

Estranho encontro


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Ignorava completamente como seria a atividade naquele báratro e como poderíamos acercar-nos do marquês de Sade. O Mentor, porém, houvera elaborado um plano que estava levando adiante com muito cuidado e discernimento.

À medida que se sucedia o desfile dos carros alegóricos e os grupos que os secundavam foram diminuindo, lentamente a região foi tomada pelo tumulto dos indivíduos entregues à lascívia em pequenos círculos afins, formando pares ou esquisitas parcerias múltiplas.

Nesse momento, atendendo a um apelo mental do Instrutor, fomos embarafustando-nos pela multidão, rumando para extravagante edifício em que se transformara uma gruta sombria com movimentação agitada e confusa. À entrada postavam-se dois hediondos serviçais trajados de maneira inusual, como se desejando reviver o passado da aristocracia francesa pré-napoleônica, quais lacaios maltrapilhos e imundos, que seguravam cães de aparência feroz, e que, melhormente observados, eram seres humanos que haviam sofrido a zoantropia [20] hipnótica.

De aspectos ferozes, avançavam sob os acicates dos seus condutores contra todos aqueles que se adentravam ou saíam, o que não ocorreu conosco, quando se depararam com os dois mastins que eram levados adiante do grupo pelos jovens silenciosos e circunspectos.

Embora diferíssemos dos transeuntes grotescos e de carantonha asselvajada, não chamávamos muito a atenção face aos mantos pesados que nos caíam da cabeça cobrindo-nos quase literalmente.

Observei que, à medida que permanecíamos no recinto mefítico da estranha cidade, a nossa indumentária desgastava-se, os mantos romperam-se numa apresentação grosseira de trajes usados por beduínos após incessantes travessias do deserto. . .

Embora não falássemos durante o trajeto, pude ouvir informações mentais que procediam do Mentor, esclarecendo que a substância em que os nossos trajes foram trabalhados era própria para aquele ambiente, a fim de assimilar as características locais, de forma que não despertássemos a curiosidade, caso a nossa fosse uma apresentação diferenciada dos demais residentes e visitantes do tremedal.

A furna era iluminada por archotes fumegantes presos às paredes, que ardiam com uma coloração amarelo-avermelhada, de certo modo apavorante pela tonalidade agressiva, e o odor pútrido, misturado ao fumo e a outras emanações, era quase insuportável.

Após avançarmos pelo que seria um corredor estreito e escorregadiço, chegamos a uma ampla sala onde um Espírito de aspecto diabólico, sentado em um arremedo de trono esdrúxulo, banqueteava-se com Entidades lascivas e debochadas em intérminas gargalhadas, enquanto gritos selvagens cortavam o ar, misturando-se a sons estranhos e grotescos que constituíam o espetáculo agradável ao infeliz governante daquela área.

Detivemo-nos a regular distância, a fim de observarmos os acontecimentos e podermos conhecer de perto o infelizmente célebre criador de aberrações, já anteriormente praticadas pelo ser humano, porém por ele ampliadas até ao absurdo durante os seus tormentosos e perversos dias já referidos, quando da sua última existência terrena.

Faunos [21] e representações do deus Pan misturavam-se aos famigerados membros da estranha corte, ao tempo em que mulheres, imitando vestais e sacerdotisas, monstruosas umas e em atitudes torpes outras, entregavam-se a inimagináveis movimentos de lascívia grotesca como se o único objetivo existencial fosse o infindável intercurso da sensualidade depravada.

Vez que outra, gemidos e exclamações lancinantes explodiam no recinto, provocando gargalhadas e sustos no grupo estranho, que não cessava de retorcer-se ao som desconcertante de guitarras e tambores eletrizantes.

Podia-se também perceber expressões de exaustão em muitos rostos, enquanto não poucos apresentavam sinais inconfundíveis de tédio, que os induzia a mais excruciantes comportamentos aterradores. Um Inferno de falsos prazeres, que se convertiam em insuportável sofrimento disfarçado com o riso da loucura e a falta de discernimento de qualquer tipo de valores e de aspirações.

Nenhuma imaginação exaltada seria capaz de urdir algo semelhante, demonstrando o poder da mente em desalinho, quando perde os parâmetros do equilíbrio e as diretrizes da sensatez.

Os mastins, de quando em quando, asfixiados pela psicosfera pastosa e quase irrespirável, reagiam agitando-se, logo sendo controlados pelos seus amestradores.


A um sinal, quase imperceptível do Mentor, acercamo-nos do trono ridículo, e num vaivém do grupo grotesco em sua volta, que nos permitiu maior proximidade com o Chefe, dirigiu-se diretamente ao suserano, informando:

– Tenho, para o senhor marquês, uma solicitação firmada por certa personagem de nome Rosa Keller, sua conhecida. . .


Ao escutar o nome, que lhe ressoou na câmara acústica da alma, o indigitado, como se fulminado por um raio, levantou-se, e gritou histérico:

– Quem é você e que vem fazer aqui?


Ato contínuo, blasfemando, chamou os guardas, aos quais deu ordens expressas:

– Como entraram aqui esses estranhos? Prendam-nos.


Sem demonstrar qualquer receio, o irmão Anacleto prosseguiu:

– Desde que não lhe interessa o requerimento de que somos portadores, pode tomar a atitude que lhe convier, e ficará na ignorância do seu conteúdo.

– Arrancarei as informações através de torturas violentas – vociferou.

– Se é assim que pensa, o prejuízo será apenas seu – ripostou, sereno e seguro o Mentor. – A verdade é que Rosa Keller foi encontrada e é portadora de acusações muito graves, que pretende encaminhar ao Soberano das Trevas.


Novas ordens desconexas foram dadas, enquanto dizia:

– Ouçamos, então, o que os atrevidos têm a dizer – blasonou.

O ambiente modificou-se de maneira imediata. Os ruídos cessaram e a movimentação confusa parou ante a determinação do mandatário.


O venerando Guia, com voz pausada e muito sereno, esclareceu:

– Rosa Keller esteve por muito tempo prisioneira no castelo de Y, após a morte, de onde foi retirada pela misericórdia de Deus, não há muito. Desde aqueles dias algo distantes, quando foi execrada, que se entregou a aberrações que culminaram enlouquecendo-a. Abençoada pela desencarnação, foi recolhida por execrandos comparsas que a aprisionaram, desvitalizando-a através de vampirização contínua e de escabrosidades inimagináveis. . .

– Perco meu tempo com essa lenga-lenga – pôs-se a gritar entre blasfêmias e vitupérios. – Trata-se de religiosos melífluos [22] , que se adentraram nos meus domínios sem o meu consentimento. Isso não ficará assim. Justiçarei todos os responsáveis pela invasão, assim como aos atrevidos que se me acercam.

O rosto, com as marcas da obscenidade, e o corpo, monstruoso e flácido, sacudiam as enxúndias, quando ele se agitava, ameaçador.

– Religiosos, sim, o somos, não melífluos, porque somos portadores de lucidez e coragem em nome de Jesus Cristo, a quem temos o prazer de servir.

Ao ser pronunciado o nome do Mestre galileu, e o fora propositalmente, gargalhadas e ditos escabrosos estouraram na gruta imunda, enquanto o marquês, visivelmente descontrolado, ameaçava e socava o ar.


O diálogo prosseguiu algo excitante. O Mentor voltou à carga, esclarecendo:

– Como Rosa, que se encontra sob a proteção de nossa Instituição espiritual, demonstrou interesse em manter um novo encontro com o senhor marquês, pois que, ambos têm necessidade de um diálogo esclarecedor, aqui estamos atendendo-lhe a vontade.

– É muita petulância da venal e de sua parte – ripostou áspero – pretender um encontro comigo, que governo grande área desta cidade. A troco de quê, ela e o senhor pretendem e esperam conseguir esse benefício de minha parte? Qual o meu lucro? Recordo-me da infame, que foi responsável por minha primeira prisão, caluniadora e louca, que sempre foi. . .

– Não posso ajuizar – elucidou o interlocutor – porquanto sou apenas o portador do requerimento, cuja resposta aguardo.

– E onde seria esse encontro? – interrogou com aspecto feroz – Por que não veio até mim, aos meus domínios, conforme vocês o fizeram?

– Porque se encontra em tratamento de recuperação psíquica e perispiritual – esclareceu o irmão Anacleto. – Como o senhor marquês bem o sabe, a permanência em regiões como esta, por muito tempo, produz danos tão profundos nos tecidos sutis da alma, que a recomposição se faz dolorosa e demorada. Como aqui são realizadas operações, que alteram o comportamento e a estrutura profunda e sutil do perispírito, sob o seu comando, há de entender que o caso da nossa amiga não é muito diferente, exigindo diversos cuidados, que não podem ser negligenciados.

– E você acredita – reagiu feroz – que eu a irei visitar? Qual o meu interesse em encontrá-la, desde que ela é responsável pelo primeiro golpe que o destino desferiu-me?

– Confesso ignorar – concluiu o Amigo espiritual.

– A nossa tarefa aqui está concluída, porquanto a finalidade foi apresentada, dependendo do senhor marquês qualquer decisão.


Erguendo o corpanzil bestializado e atordoante, o suserano indagou, zombeteiro:

– E se eu não os deixar sair deste recinto?

– Penso que seria pior para o governante – redarguiu o visitante – porque iniciaríamos um trabalho de conversão em massa dos seus súditos, que se encontram saturados de loucura, entediados dos vis entretenimentos e sequiosos de paz, já que vivem exaustos e necessitados de amor e de renovação.

Ademais, podemos apelar para a proteção divina que nunca nos é escassa, desde que aqui estamos por vontade própria e não por afinidade de propósitos ou de interesses morais.

O marquês não esperava resposta tão lúcida e lógica, vendo-se obrigado a recuar, buscando parlamentar.

– Como passaram pelos meus vigilantes? – interrogou, irritado.

– Somente eles podem informá-lo – respondeu, sereno, o Benfeitor. – Atravessamos todas as barreiras, assistindo ao desfile e, logo após, viemos a entrevista não programada, por sabermos que a nímia deferência do nobre marquês saberia distinguir quem somos em relação àqueles que habitam estes sítios por espontânea vontade, não ignorando que, nas Leis Soberanas, não vigem a violência nem a injustiça.

Desse modo, não titubeamos em passar pelas fronteiras do seu reino e apresentarmo-nos à sua magnanimidade.

– Magnânimo, eu? – estrugiu ruidosa gargalhada, no que foi acompanhado pela malta que o assessorava.

– Por que não? – insistiu o paciente amigo – Não obstante o comportamento do senhor marquês durante largo período da sua vida, na etapa final, mesmo durante a revolução, opôs-se à pena de morte, o que lhe custou mais um encarceramento, propugnou pelo trabalho honrado e aguardou a desencarnação, mantendo os seus hábitos, porém de sentimentos alterados. . .

– Como conhece a minha vida? – voltou à carga.

– Além da vasta literatura a seu respeito – esclareceu tranquilo – também possuímos outras fontes de informações, que se encontram escritas no psiquismo do senhor marquês.

Ele sorriu, algo confortado, para logo assumir a postura dominadora e cínica.

– Então, sou célebre na Terra? – indagou, fingindo-se surpreso.

– É claro que sim, conforme a sua contribuição literária e as suas experiências – retrucou o amigo dos infortunados. – Tristemente célebre, para utilizar-me de franqueza. . .

– Por que tristemente? – interrogou, frisando a palavra.

– Em razão da sua herança – explicou o bondoso interlocutor – em se considerando os valores preciosos de que o amigo era portador e poderia havêlos legado à Humanidade para dignificá-la e fazê-la crescer, em lugar do que fez.


Ante a verdade, embora enunciada de maneira gentil, a mole espiritual ali presente agitou-se e impropérios irromperam de todos os lados, sem alterar a serenidade do visitante, que prosseguiu:

– A razão, porém, da nossa visita, já foi explicitada. Aqui não nos encontramos para comentários a respeito do que nada temos a ver, especialmente no que se refere à vida e conduta do nosso marquês, mas para atender à solicitação de Rosa.

Com habilidade psicológica, o Mentor retornou ao tema central da visita, não se permitindo devanear ou sair da questão essencial.

Os jovens Espíritos seguravam os mastins com vigor, face à agitação que reinava na sala opressora.

– Para que os cães? – inquiriu, contrariado.

– Para qualquer emergência. Nunca sabemos o que pode acontecer em uma visita desta natureza. Desta forma, são tomadas medidas acautelatórias, a fim de serem evitadas surpresas indesejáveis.


Houve um silêncio de breves segundos que pareceram mais tempo, indefinido tempo. Logo após, o marquês de Sade perguntou:

– Onde deveremos encontrar-nos, e quando?

– Amanhã pela madrugada, na conhecida Instituição de caridade espírita, já visitada anteriormente pelo senhor marquês, que na sua periferia instalou uma sede satélite desta suserania [23] .

– Está muito bem informado – ironizou.

– Não poderia ser de outra forma, senhor. O Mestre sempre nos recomendou vigilância e oração.

– Não me interessa o que Ele disse ou propôs. Lá estarei, às duas horas da manhã. Agora, podem ir-se.

A ordem foi apresentada com azedume e decepção. Talvez desejasse intentar o impedimento da saída do grupo, o que não se atreveu a fazer.

Observei, porém, que a Mentora e o médium Ricardo concentraram-se psiquicamente no reizete [24] , que lhes captou a onda vibratória, reagindo quanto possivel. Certamente, o psiquismo do instrumento mediúnico, carregado de energia específica, porque ainda encarnado, alcançou o marquês, estabelecendo um tipo de imantação, que talvez viesse a ser utilizado oportunamente.

Sob a determinação do marquês, que destacou dois servidores para nos acompanharem até à saída da furna, foi-nos possivel retornar ao exterior da comunidade infeliz, sem qualquer incidente ou anotação que mereça análise.

Utilizando-nos do mesmo recurso para voltar ao centro de atividades, logo nos encontramos na 1nstituição que nos hospedava, quando, então, profundamente sensibilizado, o Mentor agradeceu a proteção dos Céus utilizando-se do veículo da oração: Jesus Amigo!

Profundamente sensibilizados retornamos ao ninho generoso onde nos acolhemos, agradecendo-Te as ricas bênçãos com que nos amparaste, auxiliandonos na primeira etapa do labor com que nos honras em relação ao amanhã ditoso.

Somos incapazes de expressar os sentimentos de afeto e gratidão, as palavras de que nos utilizamos, por absoluta pobreza de nossa parte, ainda caracterizados mais por necessidades que sempre Te apresentamos, do que por louvor que não sabemos ainda tributar.

Tu, porém, que nos penetras com a misericórdia que verte de nosso Pai, sabes, melhor do que nós próprios, o quanto de amor existe no âmago dos nossos seres e como temos dificuldade em expressá-lo.

Recebe, pois, deste modo, a nossa profunda reverência e emoção, que transformamos em tesouro de luz, para dizer-Te muito obrigado, Senhor, pela felicidade de nos encontrarmos seguindo pela Tua senda, aquela que palmilhaste com amor e traçaste com segurança para os nossos Espíritos deficientes.

Esperando servir-Te sempre, nas pessoas dos nossos irmãos da retaguarda, entregamo-nos às Tuas disposições para o que consideres de melhor para realizarmos.

Abençoa-nos, portanto, por hoje, por amanhã e para sempre!

Quando terminou, tínhamos úmidos os olhos de vívida emoção.

Realmente, a tarefa que se iniciava, assinalada por incertezas, encerrava o seu primeiro passo com perspectivas mui felizes para o futuro.

À medida que a madrugada avançava, anunciando o dia cujo rosto começava a bordar de luz as sombras garças, deixamo-nos inebriar pela beleza da paisagem, e entregamo-nos às reflexões em torno do amor de Nosso Pai e Sua Sabedoria.







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