Sexo e Obsessão
Versão para cópia
Decisões felizes
A minha mente esfervilhava de interrogações, que o momento não me permitia elucidar. Tantas eram as surpresas e as expectativas, que não me podia manter na tranquilidade necessária, a fim de que as reflexões pudessem fluir harmônicas.
A visita à cidade pervertida transcorrera em tanta paz, que me parecia surpreendente, face à finalidade de que se constituía. Por outro lado, o contato com o marquês deixara-me diversas questões necessitadas de esclarecimentos, isso porque, colhido de surpresa pela visita de um grupo expressivo, não detectado pelos seus asseclas nem pelos demais vigilantes que se encarregam de guardar as defesas e entradas da estranha urbe, o que não deixara de produzir-lhe estranheza, mal-estar e insegurança.
Outrossim, a informação em torno da senhorita Keller chocara-o sobremaneira, desarmando-o e mostrando-lhe a fragilidade em que se refugiava. Compreendia, sim, a sabedoria do nosso condutor espiritual, que tomara as providências preventivas hábeis, evitando qualquer inesperado cometimento por parte dos dirigentes da infeliz comunidade, inclusive conduzindo os cães que amedrontavam as estranhas personagens que, ao defrontá-los, não ocultavam o receio que se lhes estampava nas faces macilentas e deformadas.
O domingo estuava de Sol. O Astro-Rei espraiava-se dominador, dourando a Natureza em festa. Após desfazer-se o grupo, permanecemos, somente nós, Dilermando e o Benfeitor, enquanto os demais amigos e a nobre Senhora seguiram no rumo dos compromissos que lhes diziam respeito.
Depois de algum breve repouso, o irmão Anacleto convidou-nos a rumar à Igreja, onde o senhor Bispo estaria celebrando o sacrifício da Missa, para logo atender à entrevista concertada com a professora Eutímia e o seu esposo, logo após o ato litúrgico.
Encontramos a catedral abarrotada de fiéis, os mais diferentes. Alguns ali se encontravam, sem qualquer vinculação com o culto religioso que estava tendo lugar. Tratava-se, para eles, de um convencionalismo sem sentido, porém, de muito agrado social, em razão dos encontros pessoais e das conveniências deles resultantes; para outros, era um motivo para exibição de roupas, adereços e joias; para alguns poucos, no entanto, era o momento de comungar com Deus, de sentir-Lhe mais direto o contato, de experimentar paz e dialogar com a consciência.
Chegamos no momento em que Sua Eminência lia recente homilia papal, distribuída a todas as igrejas do mundo, advertindo os fiéis quanto ao comportamento aberrante, às extravagâncias do século, aos tormentos e facilidades da luxúria.
Admirei-me, constatando que providências espirituais estavam sendo tomadas nos diversos segmentos religiosos para que a avalanche do despudor e da licenciosidade que tomava conta da sociedade fosse detida, preservando-se os valores do matrimônio, da família, dos grupos sociais, dos princípios morais e cristãos, sacudidos pelo vendaval das paixões mais primitivas e perversas.
Sua Eminência enfatizava cada frase, apresentando pontes evangélicas com os ensinamentos de Jesus, e advertindo os ouvintes a respeito da responsabilidade dos pais e dos educadores na formação da consciência humana desde os seus primórdios, na infância e na juventude.
O que enunciava e propunha era perfeitamente compatível com o labor que estava sendo realizado em nossa esfera espiritual de ação. O objetivo era o mesmo: libertar a criatura humana da servidão dos desejos nefastos e asselvajados. Cada qual, no seu campo de trabalho, laborava em favor da sociedade feliz pela qual todos anelamos.
Terminada a leitura muito bem apresentada, tomou do Evangelho de São Mateus, no Capítulo VI, versículo trinta e três, e leu, comovido: Mas buscai primeiro o reino de Deus e Sua justiça, e tudo mais vos será acrescentado.
Tratava-se de comentários do Mestre em decorrência do Sermão das Bem-aventuranças, essa fonte inexaurível de onde a criatura pode retirar o pão nutriente da coragem para o enfrentamento das vicissitudes, mantendo-se otimista e feliz.
Depois de reflexionar por breve momento, ergueu a voz expressiva e exortou os ouvintes à mudança de comportamento, em relação a Deus, a si mesmos e à convivência com o seu próximo.
Procurou estabelecer paralelos entre o que se pode, mas não é lícito realizar, e aquilo que se deve, porém, não é oportuno fazer. Essa tomada de consciência, leva o indivíduo relutante entre os valores do mundo e os de Deus, a eleger primeiro aqueles que conduzem ao reino dos Céus, porque de sabor eterno, enquanto que, os outros, mesmo quando aparentemente importantes, têm o valor que lhes é atribuído, não merecendo mais do que a consideração relativa de que se revestem.
Procurou evidenciar a necessidade da renúncia ao secundário – o mundo físico – ante o primordial – o mundo espiritual –, assim optando pelas questões superiores do Espírito imortal na sua busca de plenitude. Concluiu, informando que aqueles que sabem escolher, sempre logram receber além do que foi buscado, recebendo, por acréscimo de misericórdia, muito mais, tudo quanto lhes é acrescentado.
Concluído o sermão ante a emoção de alguns sinceros ouvintes, que procuraram introjetar os ensinamentos, ao tempo em que se harmonizavam interiormente, o Bispo deu prosseguimento ao ato litúrgico, logo encerrando-o, e recolhendo-se à sacristia.
Terminadas as saudações de alguns fiéis, à medida que a Igreja se esvaziava e à movimentação sucedia a tranquilidade, o casal assinalado para a entrevista aguardou o momento oportuno, sem ocultar a ansiedade e a angústia de que se via possuído.
Foi o senhor Bispo quem tomou a iniciativa de convidar os esposos a que se acercassem da imensa mesa que se encontrava no centro da sala, propondo-os sentar-se, e dando início à conversação anelada.
Não havia ninguém mais, além deles. Foi o esposo de D. Eutímia, o Sr.
Renato, quem deu início à narrativa, explicando que a consorte, depois de muito abalada com o acontecimento que relataria logo mais, confidenciou-lhe o ocorrido, convencionando-se que ninguém melhor do que a autoridade eclesiástica para orientar o comportamento desejável naquele momento grave e diante do acontecimento de alta relevância.
Bom ouvinte, acostumado às confissões auriculares, o Bispo tinha o cenho carregado, demonstrando preocupação compreensível enquanto preservava a atenção alerta.
A senhora, algo constrangida, narrou ao prelado o fato sem exagero nem omissão, e o consequente choque de que se sentiu acometida, havendo expulsado o sacerdote das dependências escolares. Não negava a surpresa que a acometera, ante o ato que considerava aberrante e criminoso, considerandose ainda a gravidade de ser praticado por um religioso que pervertia uma criança. Elucidou, igualmente, que não presenciara qualquer cena de sexo explícito, mas implícito, face às circunstâncias e caracteres com que se apresentava o padre envolvido pelos desejos lúbricos em relação ao infante, havendo agradecido a Deus poder haver interrompido o que seria um ato ominoso.
Após um momento de silêncio, a dama aludiu ao sonho de que fora objeto, acreditando tratar-se de uma resposta divina às suas orações, após o qual sentira-se muito calma e confiante no futuro, apoiando-se na certeza de que agira corretamente, ao salvar a criança das garras do explorador impiedoso.
O sacerdote concordou plenamente com ela.
Sem ocultar o seu sofrimento, disse-lhe que o padre Mauro houvera-o buscado, macerado por sincero arrependimento, tentando reparar, através da confissão, o crime que, não fosse a intervenção providencial da diretora, poderia haver praticado. . . Ele reconhecia a culpa, e não sabia explicar porque fora vítima de tão penoso processo de loucura. Visivelmente perturbado, viera buscar-lhe o auxílio, que lhe seria concedido, e suplicar pelos meios próprios para a reparação de tão degradante tentação.
Com muito tato psicológico, evitou comentar as aberrações confessadas pelo seu discípulo, não divulgando desnecessariamente o mal, que sempre redunda em nefastas consequências quando ocorre ampliação dos comentários em torno do mesmo.
Aludiu às providências que seriam tomadas, inicialmente encaminhando o jovem a uma clínica psiquiátrica, mantida pela Igreja para casos de tal natureza que, embora não fossem frequentes, aconteciam, em razão da fragilidade moral das estruturas humanas nas suas personalidades doentias ou atormentadas. Após o tratamento, que considerava indispensável, o sacerdote receberia a punição canônica, conforme a gravidade do delito prevista no Direito, e o mal não mais se repetiria.
– Para evitar-se desnecessário escândalo – propôs com cautela – evitaremos comentar o infeliz incidente e explicaremos que, por motivo de saúde, o padre Mauro está viajando a tratamento fora da cidade, assim interrompendo as suas aulas de catecismo e as outras que ministra na Escola.
Fez-se um silêncio pesado, no qual todos demonstravam sofrimento e angústia. O Bispo, compreensivelmente comovido, agradeceu ao casal pela sua excelente cooperação, confirmou as providências que já estavam em andamento, e abençoou-os, dispensando-os, a fim de que pudessem retornar ao lar em clima de paz. De sua parte, desejava evitar que fosse percebido o seu constrangimento e decepção, pois que o jovem sacerdote era-lhe muito estimado e, de alguma forma, credor da sua confiança até o momento em que narrara o drama que o acometia. Reconhecia que o sexo constituía um terrível aguilhão cravado na alma de todos os seres, especialmente os humanos, nem sempre fácil de ser arrancado, senão através da oração, de sacrifícios e renúncias, abnegação e fé na Divina Providência. Ele mesmo tivera que vencer inúmeras etapas do processo de superação dos impulsos, de modo a manter-se em paz, aquietando as ansiedades do corpo e do coração. Através do amor ao seu rebanho, dos serviços religiosos a que se afervorara, conseguiu, com a bênção do tempo e os exercícios espirituais, tranquilizar-se, não tombando em perturbação nem crime decorrente do seu uso.
D. Eutímia e o esposo saíram reconfortados, especialmente por haverem tomado as melhores atitudes que o caso requeria, e por saberem das medidas preventivas e outras ocorrências da mesma natureza, também punitivas em relação ao infrator, sem negar-lhe a oportunidade da regeneração.
Eram comportamentos sábios, aqueles que estavam em curso, já que não se pode destruir o infrator a pretexto de aniquilar o delito, nem inutilizar o criminoso, antes, porém, auxiliá-lo a libertar-se do crime e redimir-se perante a sociedade.
Embora a excepcional gravidade do ato execrável do jovem padre, o Bispo optou por não evidenciar o mal, nem dar-lhe notoriedade, que em nada auxiliaria a sociedade, e possivelmente mais a perturbaria. Assim, delineou um programa operacional específico, e pôs-se a agir, sem comunicar a outras autoridades eclesiásticas ou ao poder civil, para os corretivos necessários conforme estabelecidos pelo Código Penal, com a intenção de proporcionar ao infeliz equivocado a reabilitação, mediante a qual poderia auxiliar ainda a sociedade no futuro. Naturalmente, receou que o drama tomasse novo curso no porvir, o que não é raro de acontecer. No entanto, preferiu correr o risco, confiante no sincero esforço do paciente e no tratamento a que se permitira submeter. Ele próprio buscaria a melhor clínica para o seu sacerdote e dar-lheia assistência pessoal, a fim de que o enfermo não enveredasse pela loucura ou viesse a cometer o hediondo crime do suicídio, tal a gravidade da situação em que se encontrava.
Eram reflexões bem urdidas, porque, não fosse a ajuda divina, e Mauro ter-se-ia suicidado, às vésperas, ou mesmo antes, conforme fora a esse crime induzido pelos seus inimigos espirituais. . .
Ficariam para o dia seguinte as providências que deveriam ter o seu curso normal.