Sexo e Obsessão
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Visita oportuna
Quando retornávamos do palácio episcopal na direção da nossa sede de atividades, utilizando-me de alguns minutos que me pareceram oportunos, não tive relutância em interrogar o generoso Guia espiritual a respeito dos labores em andamento.
Sempre interessado em esclarecer e orientar, o Amigo sensato ouviume as indagações, e respondeu-as com a sua proverbial gentileza.
– Por qual motivo – inquiri, curioso – a visita à cidade perversa parecera ocorrer de forma tão fácil, tendo-se em vista as precauções tomadas, que poderiam ter sido evitadas?
– Diante do Mal – respondeu-me, afável – nunca devemos descurar dos cuidados hábeis que se tornam necessários, tendo-se em vista os recursos de que se utilizam aqueles que se conduzem equivocadamente. Destituídos de sentimentos de dignidade e de correção moral, os partidários da desordem não temem investir na violência, nem urdir planos astuciosos de forma a enredarem suas vítimas em potencial, que lhes tombam nas malhas da crueldade. Assim, as providências tomadas tinham por objetivo situações de surpresa ou enfrentamentos mais difíceis. Porque a circunstância houvesse transcorrido de maneira favorável, evitou-se a utilização dos mastins, bem como dos jovens acostumados a embates específicos com os legionários da hediondez e do crime. Ademais, a presença da venerável Mentora acarretara muitas bênçãos para o grupo de ação, envolvendo-o em vibrações defensivas especiais, que não chamavam a atenção dos vigilantes das entradas de acesso. Na etapa final, conforme recordamos, o marquês, aturdido e sem conhecimento do que se passara, responsabilizou-se pelo nosso afastamento da região sem qualquer empeço.
– Que tem a ver o marquês – voltei à carga, interrogando – na problemática de Mauro, junto a quem estamos trabalhando?
Atencioso, esclareceu:
– Havendo vivido os dias pré e napoleônicos, o marquês foi, igualmente, frequentador da mansão de Madame X. Naquele lupanar de luxo eram permitidas e estimuladas práticas sexuais aberrantes, então na moda, havendo um comprometimento da mesma senhora com o infeliz autor e inspirador de inomináveis anomalias. A sociedade, quando vazia de sentimentos, sempre dispõe de tempo para elaborar propostas indecentes e inusuais no seu comportamento. Os espaços abertos entre as guerras que o Corso mantinha em regime de continuidade, facultava aos seus exaustos oficiais a busca de experiências desafiadoras e estimulantes para os nervos cansados e os ideais combalidos. Dessa maneira, a residência da extravagante senhora era palco para os desatinos mais absurdos que o comércio da luxúria e da corrupção pode oferecer aos seus aficionados.
– Equivale dizer – volvi à indagação – que Madame privou de relacionamentos com o marquês de Sade?
– Sem lugar a dúvidas – ripostou, seguro. – A célebre caftina fizera-se centro de interesse da maioria dos desvairados que residiam em Paris e alguns que moravam no estrangeiro, visitando-a com frequência. Sua Mansão, de triste memória, nas cercanias da Capital da França, era frequentada por numeroso cortejo de insensatos de ambos os sexos, que ali davam vazão aos seus desejos doentios ou extravagâncias emocionais. Desfilavam, durante os seus bailes de máscaras, personalidades da aristocracia, da Política, da Religião, da intimidade do imperador, saturadas de prazeres que a vida insensata lhes impunha. Nessas oportunidades, muitos convidados apresentavam-se vestidos de animais, em dias especiais para a exorbitância, e, ante o ensurdecer de músicas atordoantes, entregavam-se às perturbações que lhes impunham a imaginação doentia.
Noutras vezes, animais em fase de cio eram colocados em improvisada arena para a relação sexual imposta pelo instinto, enquanto os espectadores, estimulados e enlouquecidos, tentavam repetir as cenas, que acompanhavam, mediante comportamentos escabrosos, até a exaustão, tombando, desfalecidos ou embriagados, e desligando-se do corpo lasso em torpor, sob a ação de sequazes desencarnados com os quais se homiziavam em regiões espirituais odientas.
Silenciou por um pouco, diminuindo a gravidade da narração, pelo seu conteúdo de estupefação e, medindo as palavras, voltou a explicitar:
– Por sugestão do marquês de Sade, Madame X transformou o porão da herdade em pequenas celas, utilizando alguns cômodos que se lhes assemelhavam, onde eram praticadas verdadeiras atrocidades sadomasoquistas. Diversos pacientes ali experimentaram o horror em tal escala de alucinação, que alguns não conseguiram sobreviver, falecendo nos hediondos catres transformados em câmaras medievais de aflições, enquanto outros, enlouquecendo, eram encaminhados aos lares ou aos manicômios, não mais recuperando a saúde mental. Infelizmente, descendo a escalas mais vis, muitos alucinados se entregavam a atos abomináveis com animais amestrados que, no seu primarismo feria-os, dilacerava-os, constituindo essas monstruosidades razões para comentários nos diversos grupos sociais que tinham conhecimento da sua ocorrência e anuíam na grande maioria. É certo que Madame, mais de uma vez, esteve a braços com a polícia do Estado, conseguindo liberar-se com facilidade, graças aos seus protetores que lhe frequentavam o lôbrego bordel. A inexorabilidade orgânica, o seu processo de envelhecimento e de desgaste, a decadência do império napoleônico contribuíram para alterações profundas nos hábitos dominantes na época, e a residência da mulher famigerada, que caiu em desgraça, foi tomada, e ela, abandonada pelos seus amigos, também infelizes e desatinados, terminou os dias na obscuridade e na solidão.
Podia perceber quanto a narração lhe constituíra um verdadeiro fardo, porque o Benfeitor apresentava-se ligeiramente pálido. Nada obstante, concluiu:
– O marquês, que teria mudado de comportamento na velhice, conforme alguns dos seus biógrafos, o que para nós carece de fundamento, prosseguiu mais moderado na sua loucura até que foi arrebatado pela morte e conduzido para a cidade perversa, de onde procedera, ali dando curso às suas alucinações e recebendo, logo depois, Madame X. . .
Houve um silêncio quase constrangedor.
Dilermando, o amigo gentil, que se mantinha calado, demonstrando compaixão e surpresa ante a narração, por sua vez, timidamente indagou:
– Esta é a primeira reencarnação de Madame, após as experiências recém narradas?
Pacientemente, o Mentor explicou:
– Em verdade, esta é a terceira tentativa concedida ao infeliz Espírito, a fim de recuperar-se e aprender a respeitar as Soberanas Leis da Vida. Duas vezes retornou com a organização fisiológica feminina, na França, assinalado por terríveis marcas perispirituais que lhe deformavam a instrumentalidade física, havendo sido vítima de estupros e crueldades provocados por famigerados mendigos e ciganos das áreas onde foi acolhido pela misericórdia de Deus. Desencarnou em estado lamentável, porém com menos culpa, retornando, à mesma região espiritual que o acolhera anteriormente. Mais tarde, no Brasil, com expressiva legião de Espíritos franceses transladados para as terras do Cruzeiro do Sul, o que vem ocorrendo com certa periodicidade, esteve mergulhado na organização masculina, vivendo tormentos inauditos, algumas vezes superados, outras não, para recomeçar, na atualidade, novamente na mesma polaridade, porém vinculado à Religião dominante, a que se dedicara irregularmente em passado não muito distante.
Os vícios, que se encontram arraigados no imo, levaram-no aos desaires de que tem sido vítima.
– E a mãezinha – voltou a indagar o amigo discreto – desde quando, se é possivel informar-nos, labora em favor da sua libertação?
– Desde os dias de S. Francisco de Assis. . . Quando, em posição de destaque na 1tália, ele ouviu falar sobre o santo da Úmbria, desejou, sinceramente, segui-lo. Protelando a decisão, quando se resolveu por integrar a ordem franciscana, o Poverello já havia deixado o corpo. Embora o fervor que dominava muitos dos seus seguidores, a ausência física do discípulo amado de Jesus facultou que alguns exaltados e menos equipados para o ministério introduzissem a vaidade, o poder temporal, a coleta de recursos monetários para a Ordem, e a decadência se anunciou. . . Nesse comenos, o nosso amigo logo derrapou vítimado pela ambição-e esqueceu dos projetos iniciais, assim contribuindo em favor da derrocada dos elevados propósitos da Obra que nascera no coração do amor e se alongara no mundo pelas palavras de fé e pelos atos de caridade. . . Desde ali, portanto, sua mãezinha, profundamente vinculada a Jesus e à Irmã Clara, vem lutando em favor da sua libertação, travando agora a batalha final a que se entrega com total dedicação, e para a qual fomos convidados. . .
Extasiei-me ante a explicação, por poder aquilatar a força e a tenacidade do amor que não mede esforços, não tem limites, não desiste, vencendo todos os óbices para alcançar a meta da felicidade que se impõe.
Da forma como me chocaram as informações do bordel de luxo e a consequente desgraça de Madame X, dando-me conta que hoje se multiplicam inumeráveis deles na Terra, cujos proprietários e divulgadores são exresidentes da cidade perversa, onde haurem constante inspiração, e ali são levados durante o sono fisiológico em desdobramentos espirituais, a repugnância e dor eram agora substituídos pela ternura e alegria ante a força perseverante do amor de mãe, que se atirava no rumo do abismo para resgatar o filho desvairado que Deus lhe emprestara através das reencarnações. O êxito, que não conseguira através da educação, quando no corpo físico, dos exemplos luminosos de carinho e de renúncia, permanecia buscando agora, em outra dimensão através de tentativas incessantes, na condição de anjo protetor que não se cansa de ajudar.
Ali estava o mais belo argumento prático contra o tradicional dogma do Inferno para os maus e do Céu para os bons. Aquela mãe, que vivia o céu interior, não se permitia plenitude enquanto não arrancasse o filho amado do seu inferno de paixões internas, a fim de rumarem ambos de mãos dadas para o Paraíso, onde o trabalho e a misericórdia são o cotidiano de todos.
Chegamos à querida Instituição, sempre movimentada. Surpreendiame por verificar que não havia horário em que não estivessem em movimentação trabalhadores de várias procedências espirituais e necessitados de ambos os planos da Vida, buscando a austera Entidade, que a todos albergava com carinho, misericórdia e iluminação de consciências, que parecia ser-lhe a meta maior, a fim de proporcionar a libertação da ignorância a todos aqueles que a buscavam.
Em realidade, não é outra a finalidade do Espiritismo, despertando o Espírito para as suas responsabilidades e cumprimento dos deveres, conscientizando-o do significado da sua existência, quando no corpo, da sua realidade, quando desencarnado, a fim de avançar sem impedimento no Grande Rumo. . .
A noite descia calma, compensando a ardência do dia e envolvendo a Natureza nos seus tecidos escuros, veludosos que se adornavam de estrelas faiscantes. Pairava no ar a expectativa dos próximos acontecimentos, que aguardávamos entre preces e esperanças de êxito.
O vaivém de Entidades desencarnadas era surpreendente, caracterizando o esforço de abnegados Mensageiros da Luz que não descansam, sempre afeiçoados à ação da caridade e do Bem inefável.
Encontrava-me à porta da sala de atividades mediúnicas, onde se processavam também atendimentos espirituais cirúrgicos no perispírito de inúmeros sofredores do Mais Além, assim como de portadores de transtornos obsessivos profundos.
O irmão Anacleto dialogava com alguns Mentores em torno das questões pertinentes aos deveres a que se entregavam. Pude perceber o respeito de que desfrutava o amoroso Guia, sempre sábio nas suas decisões, e profundo conhecedor do espírito humano, o que lhe facilitava o labor a que se afeiçoava.
Nesse ínterim, fomos surpreendidos com a visita do nobre Espírito Dr.
Bezerra de Menezes que chegou, provocando expressiva alegria. Podia-se perceber quanto a veneranda Entidade é amada por todos, em razão da significativa folha de serviços prestados à Humanidade.
À paz que reinava entre nós associou-se o inefável júbilo pela presença do amado Mentor.
Todos nos acercamos, formando um círculo à sua volta, e ele, sem ocultar, também, a mesma satisfação, pareceu justificar-se lamentando não haver informado antes do seu plano de passar pela Instituição, a fim de participar do labor que estava programado em relação ao marquês de Sade.
– Tratando-se de uma questão palpitante – elucidou com modéstia – qual a dos distúrbios na área do sexo, todos estamos muito interessados em aprender e conseguir soluções, socorrendo aqueles que se extraviaram, perdendo-se no labirinto das paixões mais primevas, de maneira que se possam levantar do charco pestilencial em que se encontram, aspirando o oxigênio abençoado do planalto da fé libertadora.
Depois de pequena pausa, prosseguiu:
– O sexo, na Terra, ainda é instrumento de alucinação, quando deveria ser abençoado mecanismo de vida, construindo corpos que se transformam em oficinas de iluminação e escolas de sublimação para os Espíritos em processo de crescimento na direção de Deus. Graças ao fascínio que se deriva do prazer imediato, não poucos indivíduos encarceram-se no gozo, distantes da responsabilidade e do dever para com o seu parceiro, ou as consequências que sucedem ao ato sexual, quais a fecundação, o aprisionamento na afetividade atormentada, abrindo espaços para as ações criminosas do aborto delituoso e da separação dilaceradora dos sentimentos. No seu aspecto mais grosseiro imana o indivíduo às paixões asselvajadas, fixando-o nas faixas primárias do instinto, sem que a razão ou o discernimento possa contribuir em favor da plenitude, antes sacrificando aquele que se lhe entrega irracionalmente. "Havendo sido cientificado pela benfeitora madre Clara de Jesus a respeito do encontro terapêutico programado para esta noite, não me pude furtar ao desejo de participar do mesmo, aprendendo sempre mais e penetrando no âmago da palpitante questão que será abordada. " Sentindo-se inteiramente à vontade, facultou que o nosso Instrutor solicitas-se-lhe a cooperação em torno de uma breve dissertação a respeito da problemática do sexo e da obsessão, a fim de que, não somente nós, que nos encontrávamos vinculados ao projeto em desdobramento, mas também outros Benfeitores espirituais e amigos presentes, nos beneficiássemos com a sua palavra sábia e a sua proverbial experiência.
Isso posto, e porque todos anuíssemos em um misto de felicidade e gratidão, o Mentor paternal sorriu, generoso, e convidou-nos a sentar, colocando-se próximo de delicado móvel que se transformaria em improvisada tribuna, assim dispondo-se a entretecer as considerações solicitadas.
Todos estávamos comovidos e atentos. Podia-se ouvir o pulsar de cada coração em clima de festa.
Dúlcidas vibrações bailavam na atmosfera sutil da sala de intercâmbio com o Mundo Maior.
Expectantes, portanto, aguardamos.