Sexo e Obsessão

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CAPÍTULO 16
Ilustração tribal

O reencontro


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Nesse comenos, acercou-se de madre Clara um dos vigilantes da Instituição trazendo valiosa informação. A veneranda Entidade comunicou ao irmão Anacleto que os convidados acercavam-se do local. Escutamos sons de fanfarras estridentes e vozerio agitado, misturado a tropel singular. Atendendo a invitação mental do Benfeitor acompanhamo-lo à porta de entrada e fui tomado por peculiar surpresa ante o espetáculo que defrontei.

Estranho cortejo, imitando bizarro desfile de carnaval, acompanhava o marquês de Sade, postado em um carro alegórico de confecção igualmente vulgar, puxado por animais que faziam recordar figuras mitológicas do panteão greco-romano. Tochas inflamadas de tonalidade amarelo-avermelhada iluminavam a madrugada escura, enquanto fumo de odor desagradável empestava o ar.

Os áulicos do antigo nobre retorciam-se em dança asquerosa, enquanto os Espíritos frívolos, que faziam parte da comitiva, aplaudiam-no estentoricamente. Outros, que se compraziam na vadiagem, e que foram atraídos pela exótica exibição, formavam verdadeira multidão de pândegos, que gargalhavam e desfrutavam da vulgaridade como se houvessem encontrado novo espetáculo para o prazer doentio.

Parecendo antigo paxá [27] , que se fazia acompanhar de escravos, que ostentavam imensos leques de plumas imundas, acolitando-o, desceu do carro horrendo, assumindo a postura de personalidade de alto coturno, ao mesmo tempo ridícula, e encaminhou-se à porta de acesso, onde foi recebido pelo abnegado Instrutor. Os vigilantes da Instituição abriram alas para que passassem o convidado e parte da sua comitiva, adentrando-se no salão de conferências onde foram acomodados, pelo menos aqueles que pareciam ser os mais representativos do grupo.

Percebi que a psicosfera dantes reinante, suave e carregada de vibrações de dulçurosa paz, foi-se alterando sensivelmente ante o exsudar das energias pestíferas de que se faziam portadores os recém-chegados, tornandose mais pesada. Simultaneamente, não acostumados a esse clima psíquico renovador, alguns deles demonstravam mal-estar, dificuldade respiratória e inquietação, decorrentes dos fluidos absorvidos, que lhes funcionavam como recurso terapêutico desintoxicante dos vapores venenosos a que se adaptaram.

Tornou-se visível o desagrado que se estampava naquelas faces congestionadas e assinaladas pelo desespero mal disfarçado da imensa angústia que os vítimava.

O marquês de Sade foi recebido com gentileza e humanidade, mas sem qualquer distinção de que se acreditava merecedor, sendo tratado com respeito fraternal.

Enquanto parte da massa era acomodada na sala de expressiva proporção, o marquês e mais alguns poucos sequazes foram conduzidos ao setor de atividades mediúnicas, reservado para labores especiais em nossa esfera de ação. À medida que ele se adentrava pela intimidade do recinto, foram desaparecendo-lhe a arrogância e a autossuficiência, estampando-se no rosto, agora contraído, o enfado, o desagrado, um quase arrependimento por haver aceito o desafio.

Sem preâmbulos de apresentações inecessárias, o convidado sentou-se em lugar que lhe foi indicado e os seus áulicos permaneceram a regular distância, não escondendo a curiosidade que bailava nas suas faces. O irmão Anacleto, sem mais delongas, explicou ao visitante que ali se encontrava alguém que se lhe vinculava desde há muito tempo, e que necessitava de apoio para libertar-se da desdita em que mergulhara, fazia mais de dois séculos. Tratava-se da rapariga Rosa Keller, que ele conhecera em plena juventude.

De imediato, a paciente foi trazida e colocada sobre uma cama que se encontrava no centro do semicírculo. Ressonando, estertorava com seguidas convulsões que a desnaturavam, apresentando um aspecto deplorável.


O marquês contemplou-a, algo surpreso, e desabafou:

– Essa infeliz foi responsável por muitos dissabores que me acometeram após haver-me relacionado com ela. Por sua causa fui levado ao cárcere e nunca a perdoei. Com ela começou o meu período de humilhações, que soube superar, mantendo-me inatingido pelos meus inimigos e perseguidores.

– Sem dúvida – redarguiu, o Mentor – com a pobre Rosa, o senhor marquês exteriorizou os tormentos que o afligiam e o celebrizaram nos seus espetáculos de perturbação sexual. Mas não foi a pobre vítima quem se fez responsável pelas consequências da crueldade praticada para com ela, quando abusou da sua inocência e a levou a um estado de quase morte, tais as escabrosidades e vilezas praticadas. Foi o estado lamentável em que o senhor marquês a deixou, que despertou o interesse da polícia para punir esse comportamento hediondo, o que redundou no seu primeiro encarceramento. . .

Ele quis protestar, porém, sentiu-se inibido pela primeira vez. O clima psíquico reinante no ambiente diminuía-lhe a capacidade de comunicação, especialmente à que se encontrava acostumado na furna em que reinava.

– A partir daquele momento – prosseguiu o Mentor – desprezada e perseguida por todos quantos lhe conheciam a desdita, Rosa passou de mão em mão, cada uma caracterizada por maior hediondez, até que tombou desvairada na mais áspera degradação humana, em um hospício, sendo seviciada por outros doentes que lhe compartiam a desventura. . . E desde quando desencarnou, vem sendo arrastada por Espíritos cruéis para sítios de horror onde tem permanecido, evocando aquele que a infelicitou e desejando desforçar-se. Passaram-se dois séculos de dor e de sombra, de falta de esperança e de alegria, até que, mais recentemente, luziu-lhe bendita oportunidade, que agora está sendo convertida em recuperação. Para que haja, no entanto, o reequilíbrio, faz-se necessário percorrer um longo caminho, que ora se inicia.


O amigo fez uma pausa, e logo deu prosseguimento:

– Não nos referimos apenas a Rosa Keller, mas a todos quantos foram vítimas dos desvarios do senhor marquês, cuja memória na Terra está associada às páginas de Justine, de Juliette e de outras personagens moralmente enfermas, e que hoje se alastram pelo mundo como espetáculos de primitivismo, de barbarismo. Gostaria de apresentar ao nosso convidado uma sua antiga amiga, Madame X.

Mauro, adormecido, foi conduzido igualmente por padioleiros vigilantes e colocado em outro leito ao lado de Rosa Keller.


O marquês olhou-o, e revidou, surpreso, interrogando:

– Sei que minha querida amiga se encontra nessa estranha forma de sacerdote explorador da infância, mas que tenho eu com o problema?

– Realmente – elucidou o irmão Anacleto. – O caro marquês tem muito a ver com as suas atitudes atuais, porque ela tem sido sua hóspede durante muitas bacanais na cidade perversa, onde cada vez mais se nutre de miasmas doentios e escravizadores. Nesta conjuntura, porém, a sua existência deverá redefinir rumos para o futuro, porquanto está a um passo da loucura ou do suicídio, tais os desmandos que se tem permitido sob sua inspiração.

Convenhamos que o império da sensualidade e da morbidez, por mais longo se manifeste, é sempre de duração efêmera, não podendo prolongar-se indefinidamente sem consumir aqueles que o vitalizam.

– Não tenho nada a ver com isso – ripostou, alterado, o marquês. – Houvesse previsto que, afinal, não existe nada contra mim, que não seja o repetir dos mesmos argumentos insossos com que sempre sou acusado, e não teria perdido o meu tempo em aceitar esta entrevista-farsa. Não ignoro, é claro, os artifícios de que se utilizam os puritanos e frustrados do sexo, para desmantelarem a nossa Organização, o que sempre vem redundando em inutilidade, já que somos poderosos e contamos com o apoio dos homens reencarnados na Terra e outros que se encontram fora do corpo. O sexo é o objetivo único da existência execrável que a Vida nos concede. Fruí-lo até à destruição de si mesmo é a única finalidade de que dispõe o ser humano. Sei, por experiência pessoal, que a vida não passa de uma neblina que a nossa mente vitaliza ou desorganiza. Tudo quanto operamos pelo pensamento tornase realidade, merecendo, portanto, somente existir o que nos agrada e nos compensa emocionalmente. Sei que um dia me extinguirei, como o fumo que desaparece tão logo termina a fonte de combustão. Por isso, reinarei nos meus domínios, propiciando a todos quantos pensam e gozam como eu, o prazer infinito e variado que a imaginação pode conceber. . .

– Lamentável quimera – elucidou o Benfeitor – na qual o amigo não acredita. Os longos anos de exorbitância e de despudor laceraram-lhe a alma, cujos tecidos sutis estão pejados de energias tóxicas, que se vão transformando em tédio com irrupção de violência cada vez mais selvagem, sem atender o insaciável desejo de mais gozo. Tudo chega a um ponto de saturação, até o mal que cada qual se faz a si mesmo e ao seu próximo, transformando-se em flagelo íntimo, que não mais proporciona o prazer mórbido por ocasionar danos e sofrimentos nos demais. É o que vem ocorrendo com o senhor marquês. . . Soalhe, também, a hora da exaustão. A sua imaginação não mais pode conceber nada que não haja sido experiênciado. A decantada liberação sexual entre os seres humanos, sob a sua e outras odientas inspirações, que chegou à Terra por inúmeros ex-residentes da cidade perversa, e após o impacto novidadeiro vem perdendo adoradores, enquanto alguns ambiciosos, incapazes de progredir mediante processos de honradez e de valor, apelam para as cavilosas manifestações da promiscuidade e das aberrações, fazendo que logo mais esteja totalmente ultrapassada. O ser humano aspira, queira-o ou não, a ideais mais elevados e a patamares diferentes de experiências emocionais, nos quais as sensações são transformadas em emoções em torno do bom, do belo, do libertador. Toda canga pesa demasiado até tornar-se um fardo insuportável. . . É o que vem sucedendo com o senhor marquês. Podemos identificar a sua necessidade de renovação, captamos as suas aspirações pela liberdade e os anelos íntimos por novas experiências. . .


Calou-se, por um pouco, e logo deu prosseguimento:

– Enquanto alguns iniciantes encontram-se deslumbrados pelos prazeres exóticos e pelas aberrações da loucura, desejando vivê-los até a exaustão, na viagem sem sentido do corpo, que pretendem prolongar fora das vísceras orgânicas, aqueles que se têm entregado à luxúria e ao despautério encontram-se lassos e já desinteressados do jogo ilusório dos sentidos, experimentando a falta do sentimento do amor. Sem o amor, a vida não tem qualquer objetivo, nenhum significado, porque toda sensação desaparece após ser atendida, enquanto que as aspirações do afeto, do sentimento da beleza, do conhecimento profundo, da autorrealização, da plenitude, cada vez mais motivam, porque têm caráter e sabor de infinito. Não pense, porém, o senhor marquês, que estamos desejando violentar-lhe a forma de viver, pela qual optou espontaneamente e a que se vem entregando desde há expressivo tempo. . . O nosso é o interesse de libertar Rosa Keller e Madame X, bem como algumas das vítimas da insidiosa enfermidade que as afeta e que, certamente, com o seu auxílio, será erradicada, beneficiando-o também.

O marquês estrugiu ruidosa gargalhada, esfogueando o semblante deformado, num aspecto mais de máscara que de face, com anomalias decorrentes das construções mentais, que o apresentava com características de algum fauno mitológico estranho e aberrante.

A um sinal quase imperceptível do irmão Anacleto, Dilermando, que se encontrava vigilante, aproximou-se de Mauro e começou a aplicar-lhe passes dispersivos, a princípio sobre os chakras coronário e cerebral, como se estivesse dissolvendo energias condensadas naquelas áreas, para logo prolongar os movimentos na direção longitudinal do corpo adormecido.

Lentamente o perispírito do sacerdote assumiu a forma feminina, e Madame despertou recuperando a lucidez com relativa facilidade. Logo após, percorreu os olhos pelo ambiente e identificou o marquês de Sade, que não sopitou a surpresa do reencontro, sorrindo jovialmente e algo estimulado, provocando na Entidade inesperado constrangimento, quase um receio que não se esforçou por ocultar.

A psicosfera ambiente, apesar de saturada de energias superiores, foise tornando mais densa, à medida que as Entidades convidadas começaram a exteriorizar os anelos do seu psiquismo atormentado.

Não dominando a surpresa, o marquês de Sade acercou-se de Madame X e desejou cingi-la em um abraço afetuoso, no que foi discretamente repelido, causando-lhe singular desagrado.

O irmão Anacleto utilizou-se da ocorrência para informar que, naquele momento, seriam estabelecidas diretrizes novas para o futuro, tendo em vista que o império da desordem e da desestruturação de algumas vidas deveria ceder lugar a cometimentos diferentes, ensejando a edificação da felicidade para todos quantos se encontravam envolvidos na urdidura da insensatez.

Com segurança e entonação de voz especial, propôs que se iniciassem as atividades espirituais através de uma oração, que solicitou ao nobre Dr.

Bezerra de Menezes proferir. Sem qualquer delonga, o Mensageiro da Luz exorou, sensibilizado, a todos tocando-nos igualmente: Jesus, Psicoterapeuta por Excelência: Asfixiados no paul das emanações morbíficas decorrentes da inferioridade moral que ainda nos caracteriza, erguemos o nosso apelo à Tua magnanimidade, a fim de que nos arranques do lodaçal em que nos retemos.

Cansados do vaivém da loucura que tem ressurgido nas diversas experiências reencarnatórias, predispomo-nos a recomeçar com disposição nova, por sentirmos chegado o momento da libertação dos condicionamentos infelizes que nos temos permitido ao longo dos séculos de perturbação e primarismo.

Tens-nos distendido mãos generosas e seguras, tentando elevar-nos, enquanto teimamos na permanência da acomodação infeliz, sem aspirações de plenitude.

Utiliza-Te deste momento de reflexão e alça-nos às regiões luminíferas da Espiritualidade onde possamos haurir energias vitalizadoras, que nos emularão ao crescimento interior longe da perturbação e da desordem.

Não é a primeira vez que recorremos ao Teu auxílio, que tem estado aguardando pelas nossas decisões, no entanto é o momento especial em que nos dispomos realmente à mudança e buscamos o Teu magnetismo, a fim de encontrarmos a saúde espiritual que nos vem faltando.

Todos quantos aqui nos encontramos somos os novos filhos do Calvário, despertando para avançar no rumo dos altos Cimos.

Alonga-Te até nós, e sem considerar os nossos pesados delitos, ensejanos a recuperação indispensável para o recomeço feliz dos tentames iluminativos.

Jesus, Benfeitor Incessante, aguardamos que venhas até nós, que nos encontramos em expectativa de paz e de renovação.

Quando silenciou, iluminado interiormente por peregrina claridade irradiante, percebemos que flocos diminutos igualmente luminosos caíam do alto e tocando-nos a todos assinalavam-nos com pontos refulgentes que nos produziam inefável bem-estar.

O marquês de Sade, que não estava acostumado a algo dessa natureza, observou a ocorrência entre espantado e receoso, não podendo, porém, ocultar o prazer decorrente da sensação que lhe causava o desconhecido benefício.


Enquanto madre Clara de Jesus envolvia Rosa Keller em energias saturadas de harmonia, a enferma, com as deformações que lhe assinalavam o perispírito, recobrou totalmente a lucidez, e reconhecendo o seu algoz, pareceu tresvariar, gritando desordenadamente:

– Que faz aqui esse monstro? Novamente irá torturar-me? Não lhe bastam os longuíssimos dias da minha desgraça? Ainda tenho as carnes dilaceradas pela sua loucura assassina. Socorra-me, alguém, por piedade!

– Acalme-se, minha filha – disse-lhe, madre Clara de Jesus, aplicandolhe energias dulcificantes. – O senhor marquês não mais pode afligir a ninguém.

A partir deste momento, também ele se encontra em tratamento, dando o primeiro passo para rumar noutra direção.

– Deve ser loucura – interveio o convidado especial, imprimindo na voz ironia e desdém. – Eu aqui me encontro voluntariamente e sem nenhuma disposição para mudar de atitude ou iniciar qualquer tratamento, pois me reconheço saudável e bem disposto no que faço, conforme me sinto e no que aspiro.


Acercando-se-lhe, o irmão Anacleto esclareceu-o:

– Sabemos como o caro amigo se encontra e sente-se. Nada obstante, aqueles que têm sido suas vítimas anelam pela libertação, estão cansados das sevícias e dos maus tratos, especialmente a nossa amiga Rosa, que após libertar-se da prisão no Castelo de Y, vem recebendo tratamento adequado para o reencontro com a felicidade.


Enquanto isso, a vítima do sicário continuava gritando aparvalhada:

– Não me deixem voltar para aquele inferno. Eu tenho direito à paz. Sei que sucumbi mil vezes a todos os tipos de torpeza moral, mas não possuía discernimento nem capacidade para lutar contra a desgraça que me devorava por dentro.

– Sabemos disso, minha filha – prosseguiu a gentil Mentora – ademais você se encontrava hipnotizada desde quando deambulava pelo mundo nos trajes desgastados da perversão moral a que se entregou. Agora surge uma diferente madrugada, em que você lentamente irá recuperar-se. Não tema, nem se deixe sofrer, porque o Mestre do amor ouviu o seu grito rogando socorro e atendeu-a. Ninguém se encontra perdido indefinidamente. O poder maléfico exercido contra você não possui mais qualquer força que a submeta aos caprichos que vicejavam até há pouco. Confie e ore neste momento decisivo da sua vida.

– Ele desgraçou-me e a muitas vidas – acusou a infortunada – e submeteu-nos a sofrimentos insuportáveis nas furnas em que nos reteve por longos, infinitos anos, que não sei contar. . . Ali, no Castelo a crueldade não tem limites. . .

– Todos o sabemos, minha filha, e por isso aqui estamos reunidos, a fim de decidirmos como seguirão as suas existências a partir deste momento.


Nominalmente acusado, o marquês esbravejou:

– Sempre foi uma louca, a desgraçada, por cuja causa eu sofri penalidade injusta. Por isso mesmo, após a sua morte vergonhosa, arrebatei-a para os meus domínios, no Castelo que eu próprio ergui, onde a explorei a expensas dos meus interesses como é compreensível. Foi ela quem me seduziu, ou melhor dizendo, quem me perturbou a juventude, atraindo-me, vulgar e perversa, aos seus encantamentos sensuais. Açulado nos meus instintos, dilacerei-a, esfogueado pelos desejos que irromperam dominando-me todo o corpo e a mente. Odeio-a e lamento não haver feito muito mais, a fim de submetê-la, exemplo típico da ralé e do lixo social. Ela pensava certamente que me conquistaria, quando lhe emprestaria meu nome e meus títulos. Pobre insana!

E prorrompeu em estrídula gargalhada, que tinha mais o aspecto de loucura que mesmo de alegria ou de satisfação.


– Ele mente – gritou, Rosa – porque eu não fui a primeira, nem mesmo a causadora do seu primeiro encarceramento. Por acaso, ele se esqueceu de Jeanne Testard, das blasfêmias contra Deus, Jesus, Maria e os atos religiosos, bem como do abuso praticado contra ela que se recusava a atendê-lo? O seu primeiro encarceramento foi resultado desse hediondo e nefasto crime, não por minha causa. Comigo, pobre tecelã, em Arcueil, tudo começou com o seu estranho psicodrama sexual, que terminou na minha flagelação sob ameaça de morte. Se eu não houvesse fugido pela janela aberta e contado a todos quantos encontrei e se estarreciam com o meu estado, o infame ficaria impune. . . Nem desejo referir-me à sua vida incestuosa com a própria irmã. . . No entanto, graças à sua posição social, ele sempre conseguiu a liberdade, evitando a pena de morte, mesmo após condenado mais de uma vez, enquanto suas vítimas ficamos desgraçadas para sempre, na Terra e mesmo depois da morte. . . Nesse momento, Madame X totalmente desperta e lúcida, interveio:

– Também estou cansada de tanta desgraça. Necessito ser livre para crescer e ser feliz. Não mais suporto a pressão que me submete, nem a insaciabilidade que me queima interiormente, buscando novos e sórdidos comportamentos. O cansaço asfixia-me e o horror de mim mesma toma proporções com as quais já não posso conviver. Aspiro por novos comportamentos, necessito libertar-me da luxúria, da sensualidade perversa que me destrói. E demasiadamente alto o preço de cada comportamento desditoso, infelicitando vidas infantis que estertoram no meu regaço, enquanto a perversão me consome sem cessar. . .

– E que tenho eu com isso? – interrogou o marquês – Serei também responsável pela sua Casa de perdição nos arredores de Paris, onde se praticavam aberrações que me faziam- corar? Quando a visitei por primeira vez já era um antro de prostituição da mais baixa qualidade. Poderia mesmo afirmar que ali aprimorei alguns dos meus métodos, tal a excelência do que ocorria em excesso de depravação e criminalidade. . . Introduzi o uso de comportamentos sexuais com animais na parte inferior da Maison, porque os seus frequentadores eram menos que os próprios quadrúpedes ou com eles se assemelhavam. Já me encontrava bastante debilitado em forças, naquele período, porém suficientemente lúcido para aquilatar em torno dos resultados dos favores que podia fruir e proporcionar aos demais.

– Não me escuso à responsabilidade nem a nego – respondeu Madame.

– No entanto, estou cansada de luta intérmina e inglória. O domínio que a sua mente exerce sobre mim, levando-me sempre de retorno à cidade, é o que desejo romper, para poder avançar com menos dificuldade e menor pressão emocional. Liberte-me, por favor, da sua hipnose destruidora!

Madame estava sinceramente comovida, e no apelo que lhe partia do imo exteriorizavam-se as energias que lhe foram ministradas nos dias precedentes, fortalecendo-a para aquele encontro singular.


O rosto do marquês congestionou-se e ele parecia pronto para uma explosão sem precedentes. Iracundo e cínico, deblaterou:

– Que tribunal ridículo é este? Estive, na Terra, muitas vezes, diante de juízes e acusadores, de severos justiceiros e de cínicos membros do puritanismo social, que se apresentavam como portadores da verdade, da dignidade e do respeito humano. Esses mesmos hipócritas promoviam as guerras, em algumas das quais estive defendendo-os e à França, enquanto eles se escondiam para fugirem às batalhas. No entanto, não trepidavam em punirme com a sua falsidade, porquanto não poucos se permitiam realizar às ocultas os prazeres que criei, condenando-me em mecanismos de autopunição, que não tinham coragem de infligir-se. Nada mudou, inclusive entre os mortos. E são os senhores os representantes da verdade, da honradez, da felicidade humana que me querem umpingir culpas, que não as tenho, pensando em mudar-me o destino? Estão profundamente enganados, porque também eu conheço alguns dos mecanismos das Leis que regem o Universo. Eu somente me permiti fazer o que achei melhor para mim mesmo e para todos aqueles que, à minha semelhança, desejavam uma vida de prazer e não tinham coragem de realizá-la.

Eu apenas direcionei-os para o que sempre desejaram. Gênio, que sempre fui, soube cercar-me de amigos e cooperadores que me compartiam as experiências e se extasiavam com as mesmas. Por isso, a justiça, sempre corrupta, não conseguiu vencer-me.

–- Ninguém deseja violentar o sofrido amigo. . . interferiu o irmão Anacleto.


Interrompendo o venerável Guia, o marquês interrogou:

– Como se atreve dizer que sou um sofrido amigo? Nem sou sofrido e muito menos seu amigo. Eu sou um dos senhores da cidade do prazer, sem dúvida, sem amigos, porque sou poderoso e estes não têm amigos e sim áulicos, bajuladores. . . Não me venha, pois, com pieguismos cristãos, de que me libertei quando ainda jovem, embora a Religião da época me tenha absolvido e me sepultado com as suas bênçãos que, como vê, não adiantaram nada. . .


Mantendo-se inalterado, o Benfeitor prosseguiu, calmo e seguro:

– O nosso sofrido amigo está também cansado da farsa que se vem permitindo, porque, na relatividade das ações infelizes, momento sempre chega em que o indivíduo, saturado e aturdido, busca a realização suprema da vida, que é o amor. E o amor é a única resposta para todas as questões perturbadoras da Humanidade.

Nesse momento, escutamos uma doce voz que nos chegava de Esfera Superior e alcançava-nos a acústica da alma, produzindo-nos elevada emotividade.

O venerável Dr. Bezerra de Menezes dirigiu-se à porta de entrada da sala e recebeu nobre Entidade acolitada por mais dois Espíritos elevados, que envolta em diáfana luminosidade, entoava comovedora canção de ninar. Os sofredores, surpreendidos pelo doce enlevo e encantamento dos visitantes, não puderam esconder a emoção que os tomou, enquanto, nós outros, igualmente felicitados pelo inesperado acontecimento, deixamo-nos envolver pela misericórdia de Deus, tomados pela expectativa dos próximos acontecimentos.

Era a primeira vez que participava de uma atividade espiritual de grande porte e acontecia algo semelhante, com fins psicoterapêuticos, ao mesmo tempo de alto significado. Não pude evitar a curiosidade que bailava em minha mente. Quem seria a virtuosa visitante? Qual a finalidade da sua presença?

Não me pude entregar a excogitações dessa natureza, porque, ao adentrar-se no recinto e fazê-lo recender peculiar aroma espiritual, vimo-la acercar-se do marquês de Sade, envolvendo-o em um olhar inesquecível. As vibrações superiores tomavam-nos a todos, produzindo inefável sensação de paz.


O trânsfuga espiritual, reconhecendo a iluminada visitante, atirou-se de joelhos, e gritou em lágrimas que, subitamente banharam-lhe o rosto, exclamando:

– Mamãe! Novamente você vem salvar-me, descendo do paraíso até o inferno em que me encontro?

– Donatien Alphonse – enunciou com inabitual musicalidade na voz – venho em nome do Amor para estar contigo. Ainda não mereço o paraíso nem te encontras no inferno. Estamos ambos na Casa do Pai, em regiões diferentes, a serviço das Suas incomparáveis Leis. Tem bom ânimo e renasce para a vida, mais uma vez, arrancando do teu íntimo o câncer que te vem consumindo há tanto tempo. É chegado o momento de recomeçar. . .







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