Da Manjedoura A Emaús

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CAPÍTULO 10

Em torno da manjedoura

E isto vos será por sinal: Achareis o menino envolto em panos, e deitado numa manjedoura. (Lucas 2:12)
“E ela deu à luz o seu filho primogênito, envolveu-o com faixas e reclinou-o numa manjedoura”, escreveu LUCAS 2:7.
Descrição sóbria, sem minúcias.
O procedimento padrão, no entanto, iniciava-se pelo corte do cordão umbilical. Depois, para evitar infecções, era esfregado sal no abdômen da criança, seguindo-se o banho. Ela recebia faixas que fortemente atavam seus braços e pernas, por seis meses, pois se pensava que deste modo se fortalecia o recém-nascido. Todos os dias, a criança era lavada, seu corpo coberto com óleo de oliva e pulverizado com resina aromática (DUQUESNE, 2005, p. 48).
Havia nas proximidades de Belém pastores que vigiavam por turnos os rebanhos a céu aberto, segundo LUCAS 2:8.
A Palestina é uma terra de contrastes quanto ao relevo e, logo, as variações de temperaturas são consideráveis. A região apresenta duas grandes estações: uma quente e seca e outra fria e úmida, sem expressivas modificações entre a época de Jesus e os dias de hoje.
Outubro a março constitui o período mais chuvoso. O auge do inverno na Judeia se dá entre dezembro e fevereiro. Chuvas contínuas e geadas diminuem a temperatura para próximo de zero grau centígrado.

Da afirmativa de Lucas, deduz-se que Jesus não pode ter nascido entre dezembro e fevereiro, pois havia pastores nos campos montando guarda a seus rebanhos. Em semelhante clima — chuvas e temperatura à beira de zero — não se deixavam animais nos pastos. Os rebanhos eram recolhidos em estábulos do princípio de novembro até março. Nos demais meses, ficavam nos campos, permanecendo, à noite, ao relento, em apriscos — cercados de pedras formados de paredes cobertas de espinhos e pequena entrada estratégica, na qual o pastor se recostava, segurando um cajado com pregos na ponta e uma funda (lançadeira de pedras), para se proteger de salteadores e animais ferozes.
Os pobres, na Antiguidade, não se preocupavam em conservar datas de nascimento. A vida se desenvolvia de forma cíclica, repetitiva. O calendário lunar organizava a agricultura e a criação de animais. Nesse contexto, os solstícios da primavera e do inverno ganhavam grande importância. O do inverno ocorria na segunda quinzena de dezembro, início do período mais agudo do inverno, com longas e frias noites, escassez de alimentos e incerteza quanto à sobrevivência.
Diversas festas pagãs se formaram em torno desse período. Roma comemorava as Saturnálias, em 17 de dezembro, homenageando Saturno, deus da agricultura, que permitia o descanso da terra com a estação fria. Em 274 d.C., o imperador romano Aureliano proclamou o 25 de dezembro como o dies natalis solis invicti — o dia do nascimento do sol invicto, o sol reinando com seu calor no espaço, acima do inverno na Terra.
A festa cristã do Natal foi instituída oficialmente pelo bispo romano Libério, no ano 354. Inspiradas no simbolismo de Cristo como o sol de justiça e luz do mundo, as comunidades cristãs faziam alusão ao calor do amor eterno de Jesus, mais precioso que qualquer outra proteção.
Como aconteceu a outras datas e celebrações, o 25 de dezembro era uma efeméride pagã, de arraigada tradição familiar, ligada ao mito solar, agora adaptada ao Cristianismo.
Nos primeiros séculos, aliás, o nascimento de Jesus era festejado em 6 de janeiro, 25 de março e até em 2 e 19 de abril. Na parte oriental do Império Romano, a comemoração ocorria no dia 6 de janeiro, seja para o nascimento, seja para o batismo de Jesus. No século IV d.C., as igrejas orientais também unificaram o Natal em 25 de dezembro.
Não faltou resistência à festa natalina. Orígenes, por exemplo, em 245, repudiava a celebração, argumentando que não se deveria comparar Jesus aos príncipes humanos. Bispos da Síria e da Armênia acusaram os cristãos romanos de admiradores do sol e idólatras.
Os pastores aparecem no Evangelho como as primeiras testemunhas da chegada do sublime infante. Gente modesta e, o mais relevante, pouco recomendável. É notória, nesse ponto, a lembrança às companhias que de futuro Jesus irá preferir — pessoas estigmatizadas de algum modo.
“Os sadios não têm necessidade de médico e, sim, os doentes” — dirá Ele. (MATEUS 9:12.)
Naqueles tempos, em Israel, eram comuns listas de profissões desprezíveis. Entre elas, estava o ofício de pastor, profissão de ladrões, de acordo com o preconceito em voga.
Joachim Jeremias (2005, p. 406), sobre isso, anotou:
Conforme provava a experiência, na maioria das vezes eram desonestos e gatunos; pastoreavam seus rebanhos em propriedades alheias e, o que ainda é mais grave, extorquiam a renda dos rebanhos. Por esse motivo, foi proibido comprar deles lã, leite ou cabritos.
A vida nômade inspirava desconfiança e deve ter contribuído para a formação desse conceito hostil. O cotidiano desses homens quase não lhes permitia observar os ritos de purificação, tão ao gosto dos escribas e fariseus, pesando sobre eles a pecha de impuros.
O povo dizia que não se deveria retirar de uma cisterna os pagãos e os pastores que lá caíssem.
Davi, porém, na juventude, viveu como pastor nos mesmos campos em que agora outros pastores são escolhidos por uma entidade angélica —
não encontrados ao acaso, escolhidos — para ouvirem mensagem inesquecível (LUCAS 2:10-11):
— “Eis que eu vos anuncio uma grande alegria, que será para todo o povo: Nasceu-vos hoje um Salvador, que é o Cristo-Senhor, na cidade de Davi”.
Salvador era o título dos antigos juízes, e várias vezes empregado como qualificativo de Iahweh, no Antigo Testamento. Muito raramente indicou Jesus. (JOÃO 4:42; Atos 5:31-13:23.)
De súbito, imensa falange de Espíritos angélicos se aproximou, entoando em coro (LUCAS 2:14):
— “Glória a Deus no mais alto dos céus e paz na Terra aos homens que Ele ama!”
Jacques Duquesne (2005, p.
49) observou argutamente o contraste intencional de Lucas: magnificência e glória, de um lado, anunciando a Boa-Nova; do outro lado, anonimato e simplicidade, recebendo-a.
O hino entoado estabeleceu na paz o grande dom da vida terrestre.
César Augusto havia imposto o programa Pax in terris.4 Roma justificava seu imperialismo, com as guerras de dominação, na necessidade de instaurar a lei da paz aos vencidos, promovendo ordem, segurança e civilidade.
Jesus ressaltou (JOÃO 14:27):
— “Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; não vô-la dou como o mundo dá. [...]”
Afastaram-se as nobres entidades, e os pastores se puseram a procurar o menino, deixando seus rebanhos. Tudo eles encontraram semelhante à predição. E contaram a José e a Maria sobre os mensageiros luminosos.
Se Lucas reuniu pastores pobres ao redor do recém-nascido, Mateus deu-lhe a companhia de personagens ilustres, os magos do Oriente, semanas após.

Bruno Maggioni (in GHIBERTI, 1986, p.
10) salientou que essa diferença é menos marcante do que parece:
Os reis magos são pessoas importantes, que acorrem com presentes, é verdade, mas ao mesmo tempo são estrangeiros, classificados pela mentalidade religiosa da época entre os últimos, entre os pagãos, distantes de Deus.
Mateus não afirmou que eram reis nem três, referiu-se a magos, vindos do Oriente, nada mais.
Considerando-se o ritmo das estradas, em caravanas lentas, nas corcovas de camelos, seriam necessários 45 dias de viagem para chegarem a Jerusalém. A tradição católica definiu a chegada dos magos em Belém no dia 6 de janeiro — daí o Dia de Reis.
Diversos estudiosos questionam a historicidade do episódio. Inúmeros defendem que esse acontecimento foi criado para mostrar o real significado do nascimento de Jesus.
Até os presentes ofertados a Jesus estão repletos de simbolismo. O ouro é metáfora da realeza. O incenso é resina amarga, tirada da casca de um arbusto exclusivo da Arábia, e representa a divindade. A mirra, por sua vez, era empregada em sepultamentos, evocando a imortalidade, ou utilizada para ungir reis. No Oriente, não se comparecia diante de reis sem presentes.
Uma evidência a favor da historicidade desse episódio está na ausência de relatos literários semelhantes que pudessem servir de modelo.
Somente a partir do século VI d.C. os magos são qualificados como reis. O termo mago resulta do persa magu, mágos em grego, magus em latim, significando poderoso. Com essa nomenclatura, eram conhecidos os sacerdotes da religião persa (Zoroastrismo).
Talvez fossem persas ou babilônicos. Talvez judeus.
Nabucodonosor, o famoso rei da Babilônia, tomou Jerusalém em 597 a.C. e ordenou a deportação de milhares de judeus. A revolta contra a dominação babilônica originou o cerco a Jerusalém em 587 a.C. Não obstante os conselhos do profeta Jeremias, que sugeria a rendição, ultrapassados dezoito meses de resistência a cidade caiu, e o templo construído por Salomão foi destruído. Seguiu-se outra onda de deportações, bem menos maciça que a anterior.
A dor do exílio favoreceu intenso período de reflexões e atividades intelectuais. Em sua duração se pôde compor, como é visto hoje, o Antigo Testamento.
É dessa fase o início da dispersão dos judeus pelo mundo antigo.
Na Pérsia, pátria onde a Astrologia se desenvolveu, Ciro, rei dos persas, que venceu a Babilônia em 540 a.C., terra-mãe da Astrologia, autorizou os exilados a regressarem a Israel. Muitos, contudo, ficaram. (SPEAKE, 1996a, p. 36.)
Seriam os magos sábios judeus vivendo na Babilônia que haviam estudado Astrologia na célebre escola de Sippar? Isso explicaria ao mesmo tempo os conhecimentos astronômicos e o conhecimento das crenças judaicas, entre elas as profecias quanto à chegada de um rei modificador dos rumos da nação e do planeta. Por centenas de anos se afirmou que os judeus não se interessaram pela Astrologia antes da Idade Média. Todavia, entre os manuscritos do Mar Morto foram descobertos dois horóscopos, com signos e ideias astrológicas, comprovando o manuseio desse conhecimento na Palestina judaica do tempo de Jesus. O reinado de Herodes, por exemplo, era representado por Áries, o carneiro.
Jacó de Edessa, no século VII d.C., anotou antigas tradições que atestavam serem os magos procedentes da Pérsia, acompanhados por mais de mil pessoas, o que é manifesto exagero.
Talvez o número de presentes (ouro, incenso e mirra) possa ter induzido os evangelhos apócrifos a estipularem o número de três magos. Eles também forneceram nomes aos três, ligados à realeza e ao poder: Melchior (hebreu: rei da luz), Baltazar (aramaico: judeus protejam a vida do rei) e Gaspar, único sobre o qual paira alguma evidência histórica, pois consta um príncipe persa chamado Gundoffar (vencedor de tudo), vivendo entre 19 e 65 d.C., cuja tradução do nome levou a Gasta e, após, Gaspar.
Seja como for, transferidos da Itália, no século XII, para a Alemanha, no altar-mor da impressionante Catedral de Colônia5 — uma das obras- primas do estilo gótico — estão guardados três caixões revestidos de ouro, contendo os hipotéticos restos mortais dos três encantadores personagens.
4 N.E.: Paz na Terra.
5 N.E.: Localizada na cidade alemã de Colônia, é uma igreja de estilo gótico, o marco principal da cidade e seu símbolo não oficial.



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Lucas 2:7

E deu à luz a seu filho primogênito, e envolveu-o em panos, e deitou-o numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na estalagem.

lc 2:7
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Lucas 2:8

Ora havia naquela mesma comarca pastores que estavam no campo, e guardavam durante as vigílias da noite o seu rebanho.

lc 2:8
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Mateus 9:12

Jesus, porém, ouvindo, disse-lhes: Não necessitam de médico os sãos, mas sim os doentes.

mt 9:12
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Lucas 2:10

E o anjo lhes disse: Não temais, porque eis aqui vos trago novas de grande alegria, que será para todo o povo:

lc 2:10
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João 4:42

E diziam à mulher: já não é pelo teu dito que nós cremos; porque nós mesmos o temos ouvido, e sabemos que este é verdadeiramente o Cristo, o Salvador do mundo.

jo 4:42
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Lucas 2:14

Glória a Deus nas alturas, paz na terra, boa vontade para com os homens.

lc 2:14
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João 14:27

Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou: não vo-la dou como o mundo a dá. Não se turbe o vosso coração, nem se atemorize.

jo 14:27
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