Da Manjedoura A Emaús

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CAPÍTULO 26

Até o Gólgota

Porque, se ao madeiro verde fazem isto, que se fará ao seco? (Lucas 23:31)
Uma escolta conduzia o cruciarius (o sentenciado à cruz) pelas ruas, flagelando-o à exaustão, a fim de que Ele, minado em suas resistências, não se demorasse na cruz.
Jesus, já supliciado durante o julgamento de Pilatos, não necessitava dessa medida. Estava tão fraco o jovem galileu, que, na metade do percurso entre o Pretório e o Gólgota (de 500 a 700 metros), não conseguia mais carregar o patibulum — a barra horizontal da cruz. A noite de vigília, o interrogatório de Anás e o julgamento no Sinédrio, o Pretório, a corte de Herodes e, depois, a flagelação, o pronunciamento de Pilatos e, por fim, o divertimento dos legionários com o rei dos judeus, haviam-no exaurido.
No momento em que Jesus tombou pela primeira vez com o madeiro, numa subida de difícil acesso, a colina de Acra, uma mulher rompeu o cerco da soldadesca e envolveu o rosto dele na toalha que trazia. Era Verônica, ou Berenice, conforme a indefinição de Atos de Pilatos (apócrifo), a mesma mulher hemorroíssa.
Eusébio de Cesareia (séculos 3–IV) propôs que ela teria retornado à sua terra de origem logo após ser curada do fluxo sanguíneo ininterrupto, onde mandou fundir uma peça em bronze, evocativa do instante em que tocou Jesus e absorveu dele uma virtude.

[...] sobre uma pedra alta, diante das portas de sua casa, alça-se uma estátua de mulher, em bronze, com um joelho dobrado e com as mãos estendidas para a frente como uma suplicante; e em frente a esta, outra do mesmo material, efígie de um homem em pé, belamente vestido com um manto e estendendo sua mão para a mulher; a seus pés, sobre a mesma pedra, brota uma estranha espécie de planta, que sobe até a orla do manto de bronze e que é um antídoto contra todo tipo de enfermidades. (CESAREIA, 2002, p. 160.)
Amélia Rodrigues discorda da versão de Eusébio, declara sua preferência pela versão de Atos de Pilatos, e situa a hemorroíssa naquela manhã em Jerusalém, estendendo a toalha sobre o rosto de Jesus: “Houve uma exclamação de estupor, quando retirou a toalha: nela se estampava o rosto dEle, tingido pelo sangue”. (FRANCO, 1987, p. 140.)
Adiante, Ele caiu outra vez, provocando o clamor de piedosas mulheres. Jesus se voltou para elas e profetizou (LUCAS 23:28-31):
[...] Filhas de Jerusalém, não choreis por mim; chorai, antes, por vós mesmas e por vossos filhos! Pois, eis que virão dias em que se dirá: Felizes as estéreis, as entranhas que não conceberam e os seios que não amamentaram! Então começarão a dizer às montanhas: Caí sobre nós!, e às colinas: Cobri-nos! Porque, se fazem assim com o lenho verde, o que acontecerá com o seco?
Por “Filhas de Jerusalém” pode-se entender uma das associações beneficentes de mulheres da classe alta da Cidade Santa, que se dedicava a aliviar os sofrimentos dos condenados e lamentá-los. (GHIBERTI, 1986, p. 677.)
O patibulum pesava entre 22 e 27 quilos. A maioria dos especialistas propõe que essa barra, durante o trajeto, era colocada sobre os dois ombros e amarrada aos braços e pulsos do cruciarius. (ZUGIBE, 2008, p. 63 e 65.)
Diante das quedas, os soldados imperiais fustigaram Jesus. Então, valeram-se do direito de angaria, facultado às tropas de ocupação. Significa dizer: requisitaram prestação de serviço a um popular. Simão, judeu de família grega, nascido em Cirene, foi convocado a auxiliar Jesus.

Cirene era uma das cinco cidades que constituíam o reino Cirinaica, colonizado pelos gregos, na África do Norte (na atual Líbia), transferido aos ptolomeus após a desencarnação de Alexandre, o Grande. Ptolomeu Sóter, no começo do século III a.C., pela concessão de muitos privilégios, havia atraído milhares de judeus a Cirene. Em 67 a.C., Cirinaica se tornou província romana. Esse núcleo judaico se desenvolveu a ponto de possuir sua própria sinagoga em Jerusalém para os que retornavam de Cirene ou estavam apenas de passagem. (Atos 6:9.)
A comunidade cristã de Roma parecia familiarizada com Simão, pois MARCOS 15:21, que escreve para ela, declina o nome de dois de seus filhos: Alexandre e Rufo. Este último, caso esteja certa a tradição, é o mesmo Rufo que Paulo saúda em sua Carta aos Romanos, chamando-o eleito do Senhor. (ROMANOS 16:13.)
LUCAS 23:26 relata que Simão vinha do campo, quando se deparou com a trágica procissão e tomou conhecimento do julgamento infame. Submisso à ordem recebida, entregou o ombro em auxílio do homem que admirara à distância, até àquela hora.
O cortejo deve ter passado pelas vielas mais movimentadas, margeadas de barracas. Um centurião (o exactor mortis)18 chefiava a comitiva, com sua equipe de quatro legionários, chamada de quaternus,19 peritos em crucificação. À frente, um pregoeiro anunciava, aos gritos, a execução dos três condenados. Numerosa guarda fazia a proteção e coibia tumultos, pois o grupo era seguido por desocupados, vândalos, curiosos e outros que se condoíam.
O fulgor solar, com seu intenso calor, fatigava a todos. A maioria, mesmo assim, comprazia-se na mórbida peregrinação, manifestando desprezo, ironia e ódio gratuito ao manso galileu.
Retrato emocional, psicológico e espiritual de vários dos presentes se pode colher das reminiscências de vivências passadas do Espírito Camilo Cândido Botelho, pseudônimo do escritor português Camilo Castelo Branco, em sua obra Memórias de um suicida:

A velha cidade santa dos judeus — Jerusalém — vivia horas febricitantes nessa manhã ensolarada e quente. Encontrei-me possuído de alegria satânica, indo e vindo pelas ruas regurgitantes de forasteiros, promovendo arruaças, soprando intrigas, derramando boatos inquietadores, incentivando desordens, pois estávamos no grande dia do Calvário e sabia-se que um certo revolucionário, por nome Jesus de Nazaré, fora condenado à morte na cruz pelas autoridades de César, com mais dois outros réus. Corri ao Pretório, sabendo que dali sairia para o patíbulo o sentenciado de quem tanto os judeus maldiziam. Eu era miserável, pobre e mau. Devia favores a muitos judeus de Jerusalém. Comia sobejos de suas mesas. Vestia-me dos trapos que me davam. Diante do Pretório, portanto, ovacionei, frenético, a figura hirsuta e torpe de Barrabás, ao passo que, à suprema tentativa do procônsul para livrar o Carpinteiro nazareno, pedi a execução deste em estertores de demônio enfurecido, pois aprazia-me assistir a tragédias, embebedar-me no sangue alheio, contemplar a desgraça ferindo indefesos e inocentes, aos quais desprezava, considerando-os pusilânimes... E presenciar aquele delicado jovem, tão belo quanto modesto, galgando pacientemente a encosta pedregosa sob a ardência inclemente do Sol, madeiro pesado aos ombros, atingido pelos açoites dos rudes soldados de Roma contrariados ante o dever de se exporem a subida tão árdua em pleno calor do meio-dia, era espetáculo que me saberia bem à maldade do caráter e a que, de qualquer forma, não poderia deixar de assistir!...
E prossegue a narrativa do Além-túmulo:
Eis-me à frente do Pretório, em atitude hostil. Não houve insulto que minha palavra felina deixasse de verberar contra o Nazareno. Feroz na minha pertinácia, acompanhei-o na jornada dolorosa gritando apupos e chalaças soezes; e confesso que só não o agredi a pedradas ou mesmo à força do meu braço assassino, por ser severo o policiamento em torno dele. É que eu me sentia inferior e mesquinho em toda parte onde me levavam as aventuras. Nutria inveja e ódio a tudo o que soubesse ou considerasse superior a mim! Feio, hirsuto,
ignóbil, mutilado, pois faltava-me um braço, degenerado, ambicioso, de meu coração destilava o vírus da maldade. Eu maldizia e perseguia tudo, tudo o que reconhecesse belo e nobre, cônscio da minha impossibilidade de alcançá-lo!
Integrando o cortejo extenso, entrei a desrespeitar com difamações vis e sarcasmos infames a sua mãe sofredora e humilde, anjo condutor de ternuras inenarráveis para os homens degredados nos sofrimentos terrenos [...]. (PEREIRA, 2013, cap. 19, p. 458-460.)
A comitiva chegou, afinal, ao monte de silhueta sinistra.
Conta o Espírito Amélia Rodrigues (FRANCO, 1981, p. 134-135) que Simão de Cirene permaneceu no Calvário. Viu Jesus ser preso à cruz e ouviu os sons metálicos do martelo nos cravos, que por muito tempo ressoariam em seus ouvidos. Presenciou quando as cordas o alçaram ao mastro vertical. Permitiu-se contemplá-lo e meditar até o último hausto do excelso sentenciado.
No profundo pesar com que regressou ao lar, estava, porém, penetrado do Espírito de Jesus. Não tardou a encher sua alma dos ensinos e feitos do Mestre de Nazaré, recolhendo de seus discípulos as narrativas de luz imperecível, sagrando seu coração a Jesus. Apresentou a seus filhos aquele incomparável amor e passou às páginas suaves do Novo Testamento como símbolo de solidariedade.
Ao lado de tantas consciências que se comprometiam naquela manhã, em Jerusalém, criando débitos que gerariam séculos de angústias, Simão formou em seu espírito um tesouro de glória imortal — a honra de ter aliviado o sublime sobrecarregado.
18 N.E.: Indivíduo responsável pela execução da pena de morte ou de outros castigos corporais; carrasco, algoz.
19 N.E.: Quaternião – esquadra de quatro soldados.



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Lucas 23:28

Porém Jesus, voltando-se para elas, disse: Filhas de Jerusalém, não choreis por mim, chorai antes por vós mesmas, e por vossos filhos.

lc 23:28
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Oséias 6:9

Como hordas de salteadores que espreitam alguém, assim é a companhia dos sacerdotes que matam no caminho para Siquém; sim, eles têm praticado abominações.

os 6:9
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Marcos 15:21

E constrangeram um certo Simão Cireneu, pai de Alexandre e de Rufo, que por ali passava, vindo do campo, a que levasse a cruz.

mc 15:21
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Romanos 16:13

Saudai a Rufo, eleito no Senhor, e a sua mãe e minha.

rm 16:13
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Lucas 23:26

E quando o iam levando, tomaram um certo Simão, cireneu, que vinha do campo, e puseram-lhe a cruz às costas, para que a levasse após Jesus.

lc 23:26
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