Capítulo XIII

Pecado e punição


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Jesus havia terminado uma de suas pregações na praça pública, quando percebeu que a multidão se movimentava em alvoroço. Alguns populares mais exaltados prorrompiam em gritos, enquanto uma mulher ofegante, cabelos desgrenhados e faces macilentas, se aproximava dele, com uma súplica de proteção a lhe sair dos olhos tristes. Os muitos judeus ali aglomerados excitavam o ânimo geral, reclamando o apedrejamento da pecadora, na conformidade das antigas tradições.

Solicitado, então, a se constituir juiz dos costumes do povo, o Mestre exclamou com serenidade e desassombro, causando estupefação aos que o ouviram:

— Aquele que estiver sem pecado atire a primeira pedra! (Jo 8:7)

Por toda a assembleia se fez sentir uma surpresa inquietante. As acusações morreram nos lábios mais exaltados. A multidão ensimesmava-se, para compreender a sua própria situação. Enquanto isso, o Mestre pôs-se a escrever no solo despreocupadamente.

Aos poucos, o local ficara quase deserto. Apenas Jesus e alguns discípulos lá se conservavam, tendo ao lado a mulher a ocultar as faces com as mãos.

Em dado instante, o Mestre Divino ergueu a fronte e perguntou à infeliz:

— Mulher, onde estão os teus juízes?

Observando que a pecadora lhe respondia apenas com o olhar reconhecido, onde as lágrimas aljofravam num misto de agradecimento e alegria, Jesus continuou:

— Ninguém te condenou? Também eu não te condeno. Vai, e não peques mais. (Jo 8:11)

A infeliz criatura retirou-se, experimentando uma sensação nova no Espírito. A generosidade do Messias lhe iluminava o coração, em claridades vivas que lhe banhavam a alma toda. Mas, enquanto a pecadora se retirava, presa de intensa alegria, os poucos discípulos que se encontravam junto do Senhor não conseguiam ocultar a estranheza que lhes causara o seu gesto. Por que não condenara ele aquela mulher de vida censurável aos olhos de todos? Não se tratava de uma adúltera? Nesse ínterim, se aproximou e interrogou:

— Mestre, por que não condenastes a meretriz de vida infame?

Jesus fixou no discípulo o olhar calmo e bondoso e redarguiu:

— Quais as razões que aduzes em favor dessa condenação? Sabes o motivo por que essa pobre mulher se prostituiu? Terás sofrido alguma vez a dureza das vicissitudes que ela atravessou em sua vida? Ignoras o vulto das necessidades e das tentações que a fizeram sucumbir a meio do caminho. Não sabes quantas vezes tem sido ela objeto do escárnio dos pais, dos filhos, dos irmãos e das mulheres mais felizes. Não seria justo agravar-lhe os padecimentos infernais da consciência pesarosa e sem rumo.

— Entretanto — exclamou João, defendendo os princípios da lei antiga —, ela pecou e fez jus à punição. Não está escrito que os homens pagarão, ceitil por ceitil, os seus próprios erros? (Mt 5:26)

O Mestre sorriu sem se perturbar e esclareceu:

— Ninguém pode contestar que ela tenha pecado; quem estará irrepreensível na face da Terra? Há sacerdotes da lei, magistrados e filósofos, que prostituíram suas almas por mais baixo preço; contudo, ainda não lhes vi os acusadores. A hipocrisia costuma campear impune, enquanto se atiram pedras ao sofrimento. João, o mundo está cheio de túmulos caiados. Deus, porém, é o Pai de Bondade Infinita que aguarda os filhos pródigos em sua casa. Poder-se-ia desejar para a pecadora humilde tormento maior do que aquele a que ela própria se condenou por tempo indeterminado? Quantas vezes lhe tem faltado pão à boca faminta ou a manifestação de um carinho sincero à alma angustiada? Raras dores no mundo serão idênticas às agonias de suas noites silenciosas e tristes. Esse o seu doloroso inferno, sua aflitiva condenação. É que, em todos os Planos da vida, o instituto da justiça divina funciona, naturalmente, com seus princípios de compensação.

Cada ser traz consigo a fagulha sagrada do Criador e erige, dentro de si, o santuário de sua presença ou a muralha sombria da negação; mas, só a luz e o bem são eternos e, um dia, todos os redutos do mal cairão, para que Deus resplandeça no Espírito de seus filhos. Não é para ensinar outra coisa que está escrito na lei — “Vós sois deuses!” (Jo 10:34) Porventura, não sabes que a herança de um pai se divide entre os filhos em partes iguais? As criaturas transviadas são as que não souberam entrar na posse de seu quinhão divino, permutando-o pela satisfação de seus caprichos no desregramento ou no abuso, na egolatria ou no crime, pagando alto preço pelas suas decisões voluntárias. Examinada a situação por esse prisma, temos de reconhecer no mundo uma vasta escola de regeneração, onde todas as criaturas se reabilitam da traição aos seus próprios deveres. A Terra, portanto, pode ser tida como um grande hospital, onde o pecado é a doença de todos; o Evangelho, no entanto, traz ao homem enfermo o remédio eficaz, para que todas as estradas se transformem em suave caminho de redenção.

É por isso que não condeno o pecador para afastar o pecado e, em todas as situações, prefiro acreditar sempre no bem. Quando observares, João, os seres mais tristes e miseráveis, arrastando-se numa noite pejada de sombra e desolação, lembra-te da semente grosseira que encerra um gérmen divino e que um dia se elevará do seio da terra para o beijo de luz do Sol.

Terminada a explicação do Mestre, o filho de , deixando transparecer na luz do olhar a sua profunda admiração, pôs-se a meditar nos ensinamentos recebidos.




Muito tempo ainda não transcorrera depois desse acontecimento, quando Jesus subiu de Cafarnaum para Jerusalém, acompanhado por alguns de seus discípulos. Celebravam-se festas tradicionais entre os judeus. O Messias chegou num sábado, sob a fiscalização severa dos espíritos rigoristas de sua época. Não foram poucos os paralíticos que o cercaram, ansiosos pelo benefício de sua virtude salvadora. Escandalizando os fanáticos, o Mestre curava e consolava, na sua jornada de gloriosa redenção. Explicando que o sábado fora feito para o homem e não o homem para o sábado, (Mc 2:27) enfrentava sorridente as preocupações dos mais exigentes. Vendo tantos cegos e aleijados aglomerados à passagem, o interpelou:

— Mestre, sendo Deus tão misericordioso, por que pune seus filhos com defeitos e moléstias tão horríveis?…

— Acreditas, Tiago — respondeu Jesus —, que Deus desça de sua sabedoria e de seu amor para punir seus próprios filhos? O Pai tem o seu plano determinado com respeito à criação inteira; mas, dentro desse plano, a cada criatura cabe uma parte na edificação, pela qual terá de responder. Abandonando o trabalho divino, para viver ao sabor dos caprichos próprios, a alma cria para si a situação correspondente, trabalhando para reintegrar-se no plano divino, depois de se haver deixado levar pelas sugestões funestas, contrárias à sua própria paz.

João [o outro filho de Zebedeu] compreendeu que a Palavra do Messias era a confirmação dos ensinamentos que já ouvira de seus lábios, na tarde em que a multidão exigia o apedrejamento da pecadora. []

Afastaram-se, em seguida, do Tanque de Betsaida cujas águas eram tidas, em Jerusalém, na conta de miraculosas e onde o Mestre fizera andar paralíticos, dera vista a cegos e limpara leprosos. Na companhia de e , o Senhor encaminhou-se para o templo, onde um dos paralíticos que ele havia curado relatava o acontecido, cheio de sincera alegria. Jesus aproximou-se dele e, deixando entrever aos seus discípulos que desejava confirmar os ensinamentos sobre pecado e punição, falou-lhe abertamente, como se lê no texto evangélico de João: — “Eis que estás são. Não peques mais, para que te não suceda coisa pior.” (Jo 5:14)




Desde que esses ensinos foram dados, novas ideias de fraternidade povoaram o mundo, com respeito aos transviados, aos criminosos e aos inimigos, atingindo a própria organização política dos Estados.

O Império Romano vulgarizara os mais nefandos processos de regeneração ou de vingança. Escravos ignorantes eram pasto das feras, nos divertimentos públicos, pelas faltas mais insignificantes nas casas dos patrícios. Só de uma vez, trinta mil desses servos, a quem se negava qualquer bem do Espírito, foram crucificados numa festa, próximo aos soberbos aquedutos da Via Ápia. Os açoites humilhantes eram castigo suave.

Entretanto, desde a tarde em que Jesus se encontrou com a pecadora em frente da multidão, um pensamento novo entrou a dominar aos poucos o espírito do mundo. A substância evangélica do ensino inolvidável penetrou o aparelho judiciário de todos os povos. A sociedade começou a compreender suas obrigações e procurou segregar o criminoso, como se isola um doente, buscando auxiliar-lhe a reforma definitiva, por todos os meios ao seu alcance. Os menores delinquentes foram amparados pelas numerosas escolas de regeneração. Todo o sistema da justiça humana evolveu para os princípios da magnanimidade, e os juízes modernos, lavrando suas sentenças, sem nunca haverem manuseado o Novo Testamento, talvez ignorem que procedem assim por ter sido Jesus o grande reformador da criminologia.


(.Irmão X)


Humberto de Campos
Francisco Cândido Xavier

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João 8:7

E, como insistissem, perguntando-lhe, endireitou-se, e disse-lhes: Aquele que dentre vós está sem pecado seja o primeiro que atire pedra contra ela.

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João 8:11

E ela disse: Ninguém, Senhor. E disse-lhe Jesus: Nem eu também te condeno: vai-te, e não peques mais.

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Mateus 5:26

Em verdade te digo que de maneira nenhuma sairás dali enquanto não pagares o último ceitil.

mt 5:26
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João 10:34

Respondeu-lhes Jesus: Não está escrito na vossa lei: Eu disse: Sois deuses?

jo 10:34
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Marcos 2:27

E disse-lhes: O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado.

mc 2:27
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João 5:14

Depois Jesus encontrou-o no templo, e disse-lhe: Eis que já estás são; não peques mais, para que te não suceda alguma coisa pior.

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João 5:1

DEPOIS disto havia uma festa entre os judeus, e Jesus subiu a Jerusalém.

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João 5:2

Ora em Jerusalém há, próximo à porta das ovelhas, um tanque, chamado em hebreu Betesda, o qual tem cinco alpendres.

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João 5:3

Nestes jazia grande multidão de enfermos; cegos, mancos e ressicados, esperando o movimento das águas.

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João 5:4

Porquanto um anjo descia em certo tempo ao tanque, e agitava a água; e o primeiro que ali descia, depois do movimento da água, sarava de qualquer enfermidade que tivesse.

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João 5:5

E estava ali um homem que, havia trinta e oito anos, se achava enfermo.

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João 5:6

E Jesus, vendo este deitado, e sabendo que estava neste estado havia muito tempo, disse-lhe: Queres ficar são?

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João 5:7

O enfermo respondeu-lhe: Senhor, não tenho homem algum que, quando a água é agitada, me meta no tanque; mas, enquanto eu vou, desce outro antes de mim.

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João 5:8

Jesus disse-lhe: Levanta-te, toma tua cama, e anda.

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João 5:9

Logo aquele homem ficou são; e tomou a sua cama, e partiu. E aquele dia era sábado.

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João 5:10

Então os judeus disseram àquele que tinha sido curado: É sábado, não te é lícito levar a cama.

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João 5:11

Ele respondeu-lhes: Aquele que me curou, ele próprio disse: Toma a tua cama, e anda.

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João 5:12

Perguntaram-lhe pois: Quem é o homem que te disse: Toma a tua cama, e anda?

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João 5:13

E o que fora curado não sabia quem era; porque Jesus se havia retirado, em razão de naquele lugar haver grande multidão.

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João 5:15

E aquele homem foi, e anunciou aos judeus que Jesus era o que o curara.

jo 5:15
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João 5:16

E por esta causa os judeus perseguiram a Jesus, e procuravam matá-lo; porque fazia estas coisas no sábado.

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João 8:3

E os escribas e fariseus trouxeram-lhe uma mulher apanhada em adultério;

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João 8:4

E, pondo-a no meio, disseram-lhe: Mestre, esta mulher foi apanhada, no próprio ato, adulterando,

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João 8:5

E na lei nos mandou Moisés que as tais sejam apedrejadas. Tu pois que dizes?

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João 8:6

Isto diziam eles, tentando-o, para que tivessem de que o acusar. Mas Jesus, inclinando-se, escrevia com o dedo na terra.

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João 8:8

E, tornando a inclinar-se, escrevia na terra.

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João 8:9

Quando ouviram isto, saíram um a um, a começar pelos mais velhos até aos últimos; ficou só Jesus e a mulher que estava no meio.

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