Capítulo XIV

A lição a Nicodemos


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Em face dos novos ensinamentos de Jesus, todos os fariseus do templo se tomavam de inexcedíveis cuidados, pelo seu extremado apego aos textos antigos. O Mestre, porém, nunca perdeu ensejo de esclarecer as situações mais difíceis com a luz da verdade que a sua palavra divina trazia ao pensamento do mundo. Grande número de doutores não conseguia ocultar o seu descontentamento, porque, não obstante suas atividades derrotistas, continuavam as ações generosas de Jesus beneficiando os aflitos e os sofredores. Discutiam-se os novos princípios, no grande templo de Jerusalém, nas suas praças públicas e nas sinagogas. Os mais humildes e pobres viam no Messias o emissário de Deus, cujas mãos repartiam em abundância os bens da paz e da consolação. As personalidades importantes temiam-no.

É que o profeta não se deixava seduzir pelas grandes promessas que lhe faziam com referência ao seu futuro material. Jamais temperava a sua palavra de verdade com as conveniências do comodismo da época. Apesar de magnânimo para com todas as faltas alheias, combatia o mal com tão intenso ardor, que para logo se fazia objeto de hostilidade para todas as intenções inconfessáveis. Mormente em Jerusalém que, com o seu cosmopolitismo, era um expressivo retrato do mundo, as ideias do Senhor acendiam as mais apaixonadas discussões. Eram populares que se entregavam à apologia franca da doutrina de Jesus, servos que o sentiam com todo o calor do coração reconhecido, sacerdotes que o combatiam abertamente, convencionalistas que não o toleravam, indivíduos abastados que se insurgiam contra os seus ensinos.

Todavia, sem embargo das dissensões naturais que precedem o estabelecimento definitivo das ideias novas, alguns Espíritos acompanhavam o Messias, tomados de vivo interesse pelos seus elevados princípios. Entre estes, figurava , fariseu notável pelo coração bem formado e pelos dotes da inteligência. Assim, uma noite, ao cabo de grandes preocupações e longos raciocínios, procurou a Jesus, em particular, (Jo 3:1) seduzido pela magnanimidade de suas ações e pela grandeza de sua doutrina salvadora. O Messias estava acompanhado apenas de dois dos seus discípulos e recebeu a visita com a sua bondade costumeira.

Após a saudação habitual e revelando as suas ânsias de conhecimento, depois de fundas meditações, Nicodemos dirigiu-se-lhe respeitoso:

— Mestre, bem sabemos que vindes de Deus, pois somente com a luz da assistência divina poderíeis realizar o que tendes efetuado, mostrando o sinal do Céu em vossas mãos. Tenho empregado a minha existência em interpretar a lei, mas desejava receber a vossa palavra sobre os recursos de que deverei lançar mão para conhecer o Reino de Deus!

O Mestre sorriu bondosamente e esclareceu:

— Primeiro que tudo, Nicodemos, não basta que tenhas vivido a interpretar a lei. Antes de raciocinar sobre as suas disposições, deverias ter-lhe sentido os textos. Mas, em verdade devo dizer-te que ninguém conhecerá o Reino do Céu, sem nascer de novo.

— Como pode um homem nascer de novo, sendo velho? — interrogou o fariseu, altamente surpreendido. Poderá, porventura, regressar ao ventre de sua mãe?

O Messias fixou nele os olhos calmos, consciente da gravidade do assunto em foco, e acrescentou:

— Em verdade, reafirmo-te ser indispensável que o homem nasça e renasça, para conhecer plenamente a luz do Reino!…

— Entretanto, como pode isso ser? — perguntou Nicodemos, perturbado.

— És mestre em Israel e ignoras estas coisas? — inquiriu Jesus, como que surpreendido. — É natural que cada um somente testifique daquilo que saiba; porém, precisamos considerar que tu ensinas. Apesar disso, não aceitas os nossos testemunhos. Se falando eu de coisas terrenas sentes dificuldades em compreendê-las com os teus raciocínios sobre a lei, como poderás aceitar as minhas afirmativas quando eu disser das coisas celestiais? Seria loucura destinar os alimentos apropriados a um velho para o organismo frágil de uma criança.

Extremamente confundido, retirou-se o fariseu, ficando e empenhados em obter do Messias o necessário esclarecimento, acerca daquela lição nova.




Jerusalém quase dormia sob o véu espesso da noite alta. Silêncio profundo se fizera sobre a cidade. Jesus, no entanto, e aqueles dois discípulos continuavam presos à conversação particular que haviam entabulado. Desejavam eles ardentemente penetrar o sentido oculto das palavras do Mestre. Como seria possível aquele renascimento? Não obstante os seus conhecimentos, também partilhavam da perplexidade que levara Nicodemos a se retirar fundamente surpreendido.

— Por que tamanha admiração, em face destas verdades? — perguntou-lhes Jesus, bondosamente. — As árvores não renascem depois de podadas? Com respeito aos homens, o processo é diferente, mas o espírito de renovação é sempre o mesmo. O corpo é uma veste. O homem é seu dono. Toda roupagem material acaba rota, porém, o homem, que é filho de Deus, encontra sempre em seu amor os elementos necessários à mudança do vestuário. A morte do corpo é essa mudança indispensável, porque a alma caminhará sempre, através de outras experiências, até que consiga a imprescindível provisão de luz para a estrada definitiva no Reino de Deus, com toda a perfeição conquistada ao longo dos rudes caminhos.

André sentiu que uma nova compreensão lhe felicitava o espírito simples e perguntou:

— Mestre, já que o corpo é como que a roupa material das almas, por que não somos todos iguais no mundo? Vejo belos jovens, junto de aleijados e paralíticos…

— Acaso não tenho ensinado — disse Jesus — que tem de chorar todo aquele que se transforma em instrumento de escândalo? (Mt 18:7) Cada alma conduz consigo mesma o inferno ou o Céu que edificou no âmago da consciência. Seria justo conceder-se uma segunda veste mais perfeita e mais bela ao Espírito rebelde que estragou a primeira? Que diríamos da sabedoria de Nosso Pai, se facultasse as possibilidades mais preciosas aos que as utilizaram na véspera para o roubo, o assassínio, a destruição? Os que abusaram da túnica da riqueza vestirão depois as dos fâmulos e escravos mais humildes, como as mãos que feriram podem vir a ser cortadas.

— Senhor, compreendo agora o mecanismo do resgate — murmurou Tiago, externando a alegria do seu entendimento. — Mas, observo que, desse modo, o mundo precisará sempre do clima do escândalo e do sofrimento, desde que o devedor, para saldar seu débito, não poderá faze-lo sem que outro lhe tome o lugar com a mesma dívida.

O Mestre apreendeu a amplitude da objeção e esclareceu os discípulos, perguntando:

— Dentro da lei de Moisés, como se verifica o processo da redenção?

Tiago meditou um instante e respondeu:

— Também na lei está escrito que o homem pagará “olho por olho, dente por dente”. (Lv 24:17) (Ex 21:23)

— Também tu, Tiago, estás procedendo como Nicodemos — replicou Jesus com generoso sorriso. — Como todos os homens, aliás, tens raciocinado, mas não tens sentido. Ainda não ponderaste, talvez, que o primeiro da lei é uma determinação de amor. Acima do “não adulterarás”, (Ex 20:14) do “não cobiçarás”, (Ex 20:17) está o “amar a Deus sobre todas as coisas, de todo o coração e de todo o entendimento”. (Dt 6:5) Como poderá alguém amar o Pai, aborrecendo-lhe a obra? Contudo, não estranho a exiguidade de visão espiritual com que examinaste o texto dos profetas. Todas as criaturas hão feito o mesmo. Investigando as revelações do Céu com o egoísmo que lhes é próprio, organizaram a justiça como o edifício mais alto do idealismo humano. E, entretanto, coloco o amor acima da justiça do mundo e tenho ensinado que só ele cobre a multidão dos pecados. (1Pe 4:8) Se nos prendemos à , somos obrigados a reconhecer que onde existe um assassino haverá, mais tarde, um homem que necessita ser assassinado; com a lei do amor, porém, compreendemos que o verdugo e a vítima são dois irmãos, filhos de um mesmo Pai. Basta que ambos sintam isso para que a fraternidade divina afaste os fantasmas do escândalo e do sofrimento.




Ante as elucidações do Mestre, os dois discípulos estavam maravilhados. Aquela lição profunda esclarecia-os para sempre.

Tiago, então, aproximou-se e sugeriu a Jesus que proclamasse aquelas verdades novas na pregação do dia seguinte. O Mestre dirigiu-lhe um olhar de admiração e interrogou:

— Será que não compreendeste? Pois, se um doutor da lei saiu daqui sem que eu lhe pudesse explicar toda a verdade, como queres que proceda de modo contrário, para com a compreensão simplista do espírito popular? Alguém constrói uma casa iniciando pelo teto o trabalho? Além disso, mandarei mais tarde , a fim de esclarecer e dilatar os meus ensinos.

Eminentemente impressionados, André e Tiago calaram as derradeiras interrogações. Aquela palestra particular, entre o Senhor e os discípulos, permaneceria guardada na sombra leve da noite em Jerusalém; mas, a lição a Nicodemos estava dada. A lei da estava proclamada para sempre, no Evangelho do Reino.


(.Irmão X)


Humberto de Campos
Francisco Cândido Xavier


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