Capítulo XXII

A mulher e a ressurreição


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As águas alegres do Tiberíades se aquietavam, lentamente, como tocadas por uma força invisível da Natureza, quando a barca de , conduzindo o Senhor, atingiu docemente a praia.

O velho apóstolo, abandonando os remos, deixava transparecer nos traços fisionômicos as emoções contraditórias de sua alma, enquanto Jesus o observava, adivinhando-lhe os pensamentos mais recônditos.

— Que tens tu, Simão? — perguntou o Mestre, com o seu olhar penetrante e amigo.

Surpreendido com a palavra do Senhor, o velho Cefas deu a perceber, por um gesto, os seus receios e as suas apreensões, como se encontrasse dificuldade em esquecer totalmente a lei antiga, para penetrar os umbrais da ideia nova, no seu caminho largo de amor, de luz e de esperança.

— Mestre — respondeu com timidez —, a lei que nos rege manda lapidar a mulher que perverteu a sua existência. (Dt 22:20)

Conhecendo, por antecipação, o pensamento do pescador e observando os seus escrúpulos em lhe atirar uma leve advertência, Jesus lhe respondeu com brandura:

— Quase sempre, Simão, não é a mulher que se perverte a si mesma: é o homem que lhe destrói a vida.

— Entretanto — tornou o apóstolo, respeitosamente —, os nossos legisladores sempre ordenaram severidade e rispidez para com as decaídas. Observando os nossos costumes, Senhor, é que temo por vós, acolhendo tantas meretrizes e mulheres de má vida, nas pregações do Tiberíades…

— Nada temas por mim, Simão, porque eu venho de meu Pai e não devo ter outra vontade, a não ser a de cumprir os seus desígnios sábios e misericordiosos.

Assim falou o Mestre, cheio de bondade, e, espraiando o olhar compassivo sobre as águas, levemente encrespadas pelo beijo dos ventos do crepúsculo, continuou, num misto de energia e doçura:

— Mas, ouve, Pedro! A lei antiga manda apedrejar a mulher que foi pervertida e desamparada pelos homens; entretanto, também determina que amemos os nossos semelhantes, como a nós mesmos. (Lv 19:18) E o meu ensino é o cumprimento da lei, pelo amor mais sublime sobre a Terra. Poderíamos culpar a fonte, quando um animal lhe polui as águas? De acordo com a lei, devemos amar a uma e a outro, seja pela expressão de sua ignorância, seja pela de seus sofrimentos. E o homem é sempre fraco e a mulher sempre sofredora!…

O velho pescador recebia a exortação com um brilho novo nos olhos, como se fora tocado nas fibras mais íntimas do seu espírito.

— Mestre — retrucou, altamente surpreendido —, vossa palavra é a da revelação divina. Quereis dizer, então, que a mulher é superior ao homem, na sua missão terrestre?

— Uma e outro são iguais perante Deus — esclareceu o Cristo, amorosamente — e as tarefas de ambos se equilibram no caminho da vida, completando-se perfeitamente, para que haja, em todas as ocasiões, o mais santo respeito mútuo. Precisamos considerar, todavia, que a mulher recebeu a sagrada missão da vida. Tendo avançado mais do que o seu companheiro na estrada do sentimento, está, por isso, mais perto de Deus que, muitas vezes, lhe toma o coração por instrumento de suas mensagens, cheias de sabedoria e de misericórdia. Em todas as realizações humanas, há sempre o traço da ternura feminina, levantando obras imperecíveis na edificação dos Espíritos. Na história dos homens, ficam somente os nomes dos políticos, dos filósofos e dos generais; todos eles são filhos da grande heroína que passa, no silêncio, desconhecida de todos, muita vez dilacerada nos seus sentimentos mais íntimos ou exterminada nos sacrifícios mais pungentes. Mas, também Deus, Simão, passa ignorado em todas as realizações do progresso humano e nós sabemos que o ruído é próprio dos homens, enquanto que o silêncio é de Deus, síntese de toda a verdade e de todo o amor.

Por isso, as mulheres mais desventuradas ainda possuem no coração o gérmen divino, para a redenção da humanidade inteira. Seu sentimento de ternura e humildade será, em todos os tempos, o grande roteiro para a iluminação do mundo, porque, sem o tesouro do sentimento, todas as obras da razão humana podem parecer como um castelo de falsos esplendores.

Simão Pedro ouvia o Mestre, tomado de profundo enlevo e santificado fervor admirativo.

— Tendes razão, Senhor! — murmurou, entre humilde e satisfeito.

— Sim, Pedro, temos razão — replicou Jesus, com bondade. — E será ainda à mulher que buscaremos confiar a missão mais sublime na construção evangélica dentro dos corações, no supremo esforço de iluminar o mundo.

O apóstolo do Tiberíades ouvira as derradeiras palavras do Divino Mestre, tomado de surpresa. Conservou-se, no entanto, em silêncio, ante o sorriso doce do Messias.

Muito distante, o último beijo do Sol punha um reflexo dourado no leque móvel das águas que as correntes claras do Jordão enriqueciam. Simão Pedro, fatigado do labor diário, preparou-se para descansar, com sua alma clareada pelas novas revelações da palavra do Senhor, as quais, cheias de luz e esperança divinas, dissipavam as obscuridades da .




Dois dias eram passados sobre o doloroso drama do Calvário, em cuja cruz de inominável martírio se sacrificara o Mestre, pelo bem de todos os homens. Penosa situação de dúvida reinava dentro da pequena comunidade dos discípulos. Quase todos haviam vacilado na hora extrema. O raciocínio frágil do homem lutava por compreender a finalidade daquele sacrifício. Não era Jesus o poderoso Filho de Deus que consolara os tristes, ressuscitara mortos, sarara enfermos de doenças incuráveis? Por que não conjurara a traição de Judas com as suas forças sobrenaturais? Por que se humilhara assim, sangrando de dor, nas ruas de Jerusalém, submetendo-se ao ridículo e à zombaria? Então, o emissário do Pai Celestial deveria ser crucificado entre dois ladrões?!

Enquanto essas questões eram examinadas, de boca em boca, a lembrança do Messias ficava relegada a plano inferior, olvidada a sua exemplificação e a grandeza dos seus ensinamentos. O barco da fé não soçobrara inteiramente, porque ali estavam as lágrimas do coração materno, trespassado de amarguras.

O Messias redivivo, porém, observava a incompreensão de seus discípulos, como o pastor que contempla o seu rebanho desarvorado. Desejava fazer ouvida a sua palavra divina, dentro dos corações atormentados; mas, só a fé ardente e o ardente amor conseguem vencer os abismos de sombra entre a Terra e o Céu. E todos os companheiros se deixavam abater pelas ideias negativas.

Foi então, quando, na manhã do terceiro dia, a ex-pecadora de Magdala se acercou do sepulcro com perfumes e flores. (Jo 20:1) Queria, ainda uma vez, aromatizar aquelas mãos inertes e frias; queria, uma vez mais, contemplar o Mestre adorado, para cobri-lo com o pranto do seu amor purificado e ardoroso. No seu coração estava aquela fé radiosa e pura que o Senhor lhe ensinara e, sobretudo, aquela dedicação divina, com que pudera renunciar a todas as paixões que a seduziam no mundo. Maria Madalena ia ao túmulo com amor e só o amor pode realizar os milagres supremos.

Estupefata, por não encontrar o corpo, já se retirava entristecida, para dar ciência do que verificara aos companheiros, quando uma voz carinhosa e meiga exclamou brandamente aos seus ouvidos:

— Maria!…

Ela se supôs admoestada pelo jardineiro; mas, em breves instantes reconhecia a voz inesquecível do Mestre e lhe contemplava o inolvidável sorriso. Quis atirar-se-lhe aos pés, beijar-lhe as mãos num suave transporte de afetos, como faziam nas pregações do Tiberíades; porém, com um gesto de soberana ternura, Jesus a afastou, esclarecendo:

— Não me toques, pois ainda não fui a meu Pai que está nos Céus!… (Jo 20:17)

Instintivamente, Madalena se ajoelhou e recebeu o olhar do Mestre, num transbordamento de lágrimas de inexcedível ventura. Era a promessa de Jesus que se cumpria. A realidade da ressurreição era a essência divina, que daria eternidade ao Cristianismo.

A mensagem da alegria ressoou, então, na comunidade inteira. Jesus ressuscitara! O Evangelho era a verdade imutável. Em todos os corações pairava uma divina embriaguez de luz e júbilos celestiais. Levantava-se a fé, renovava-se o amor, morrera a dúvida e reerguera-se o ânimo em todos os espíritos. Na amplitude da vibração amorosa, outros olhos puderam vê-lo e outros ouvidos lhe escutaram a voz dulçorosa e persuasiva, como nos dias gloriosos de Jerusalém ou de Cafarnaum.

Desde essa hora, a família cristã se movimentou no mundo, para nunca mais esquecer o exemplo do Messias. A luz da ressurreição, através da fé ardente e do ardente amor de Maria Madalena, havia banhado de claridade imensa a estrada cristã, para todos os séculos terrestres.




É por isso que todos os historiadores das origens do Cristianismo param a pena, assombrados ante a fé profunda dos primeiros discípulos que se dispersaram pelo deserto das grandes cidades para pregação da Boa Nova, e, observando a confiança serena de todos os mártires que se têm sacrificado na esteira infinita do Tempo pela ideia de Jesus, perguntam espantados, como Ernest Renan, numa de suas obras:

— Onde está o sábio da Terra que já deu ao mundo tanta alegria quanta a carinhosa Maria de Magdala?


(.Irmão X)


Humberto de Campos
Francisco Cândido Xavier


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